Era pleno verão na Guatemala e João Amorim nem acreditava no que estava a viver. Deitado em cima de um templo na cidade maia de Tikal, a olhar para a estrelas, num lugar com mais de 2000 anos de história situado no meio de uma floresta, só pensava na sorte que tinha. “Só pensava: sou o primeiro português a dormir nesta cidade”, lembra ao i.
Foi um misto de sorte e curiosidade. Depois de visitar a cidade durante o dia, João e a namorada, Tamára, não se sentiram satisfeitos com o roteiro tipicamente turístico. Ao apanharem boleia para o parque de campismo mais próximo, conheceram dois locais que lhes falaram sobre como era a cidade arqueológica há uns anos. Em conversa, confessaram ao casal português que uma vez tinham conseguido pernoitar em Tikal, quando não existia nenhum tipo de controlo. João ficou intrigado. Quando chegou ao parque de campismo, decidiu questionar os guardas sobre a possibilidade de fazer o mesmo. Todos lhe disseram que não era possível, visto a segurança ser muito apertada. Passadas umas horas, quando ambos já tinham perdido a esperança, um dos guardas chegou ao pé deles e, sem mais nem menos, levou-os até Tikal.
Apesar de o local se encontrar no meio de uma floresta com “jaguares, crocodilos, escorpiões e todo o tipo de animais selvagens”, João estava demasiado ocupado a observar o Templo do Jaguar e a noite numa das cidades arqueológicas mais importantes do mundo maia para pensar nos perigos. Valeu a pena e é a experiência que o jovem de 28 anos guarda como mais marcante durante o seu gap year – ano de pausa.
As aventuras, está claro, não se ficaram por aqui. Aos 24 anos, João e Tamará viajaram por 14 países da América do Sul durante oito meses, nos anos 2015 e 2016.
Muito mais do que viagens O casal passou pelo sul do Brasil, Uruguai, Norte da Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Guatemala, México e Nova Iorque. Com o mote, "Follow The Sun" – seguir o sol, em português – Tamará e João percorreram o continente americano atrás do verão.
O mais importante para ambos era aproveitar a experiência ao máximo e para o garantir decidiram trabalhar em diversas experiências de modo a conseguirem fazer o máximo de aprendizagens possíveis. Durante oito meses, envolveram-se em quatro projetos completamente diferentes. Fizeram voluntariado numa quinta Hare Krishna no Peru, “algo que não estava nos planos” mas que João descreve como uma experiência engraçada. Em conjunto com o resto da equipa, participaram na organização de um festival de música tradicional peruana.
Além dos diferentes trabalhos, desde o início fizeram amizades que ainda hoje perduram. De volta à Europa, João já foi a Londres visitar um dos voluntários que conheceu na quinta peruana. “Criámos uma ligação incrível”, admite.
No Equador, decidiram ensinar inglês a crianças e adultos, algo que apesar de simples, visto as pessoas terem pouco ou nenhum conhecimento da língua, foi um novo desafio. No Panamá, juntaram-se a uma associação que trabalhava com crianças com leucemia. “Esta associação tinha criado um local para acolher as crianças doentes de todas as regiões, visto ser o único local do país onde tinham acesso a cuidados médicos específicos. Além das crianças, as famílias também podiam ficar lá alojadas, enquanto a criança estava em tratamento”, conta João, orgulhoso por ter contribuído para o projeto. Um dos eventos que organizaram foi um festival que promovia o estilo de vida saudável, apelidado de fest4you, com workshops de ioga, palestras sobre como adotar um estilo de vida diferente e concertos.
Na Nicarágua trabalharam num hostel durante três semanas, em troca de alojamento. O jovem confessa que este foi “um dos países mais desafiantes que visitámos. Foi onde vimos pessoas muito pobres, agarradas às drogas, a pedir na rua”, mas foi também “um local onde conhecemos pessoas incríveis”.
João lembra Alice, uma das mulheres que a viagem lhe apresentou. “Era muito simpática. Todos os dias nos trazia um pequeno presente, como um bolo, ou um pão”. Um dia, convidou João e Tamára para jantarem em sua casa, algo que aceitaram prontamente, sem imaginarem o que iriam encontrar. “Quando chegámos e vimos a casa, era basicamente um corredor com um pedaço de madeira a separar o quarto da Alice e do marido do quarto dos seus quatro filhos”. O jovem ficou surpreendido por Alice viver num local assim, com dificuldades financeiras, e mesmo assim todos os dias se recordar de oferecer alguma coisa ao casal. “Pessoas tão humildes e simples que têm tanto para dar”, desabafa.
Porquê fazer um gap year? Como muitos gap years, a aventura de João começou quando sentiu que tinha necessidade de parar para pensar no seu caminho. Depois de ter terminado o mestrado em Bioquímica, na Universidade do Porto, e de ter entrado no mercado de trabalho, João percebeu que não era feliz ao trabalhar na área para a qual estudara durante cinco anos. “Percebi que estava num sitio que não gostava e que fazia uma coisa de que não gostava. Os meus amigos faziam planos sobre onde queriam trabalhar e eu só pensava em viajar e sair daqui, não sei porquê, mas achava que era na viagem que iria encontrar as respostas que procurava sobre quem eu era e o que deveria fazer”.
Quando pesquisava por viagens, descobriu a associação Gap Year Portugal, que o fez sentir que a sua ambição e desejo pela viagem “não era algo estranho, mas sim algo que se fazia muito em outros sítios”. Foi aí que percebeu que tinha sido lançado um concurso para apoiar monetariamente pessoas que tinham o desejo de fazer um ano de pausa. Falou com a namorada, Tamára, e decidiram candidatar-se. “Nunca achei que fosse ganhar. A Tamára sim, mas eu não. Participei impulsivamente. Quando comecei a fazer o planeamento é que percebi mesmo que era aquilo que eu queria. Perdi dias e dias a fazer o plano”. Deu-lhe quase mais trabalho que a tese de mestrado, brinca.
João e a namorada criaram o plano Follow the Sun, que implicava a corrida atrás sol, ou seja, seguir o verão pelo continente americano durante oito meses. E foi assim que acabaram por ganhar a primeira edição do concurso Gap Year Portugal, que lhes deu 6.500 euros para passarem do plano à prática.
Concurso fecha dia 9 de junho Desde então, somam-se cinco edições do concurso e as candidaturas da edição de 2019 terminam no dia 9 de junho. A associação diz que o objetivo é os jovens organizarem um plano detalhado do seu ano sabático e explicarem todas as ideias e projetos que colocariam em prático caso ganhassem o prémio de 5.000 euros – no caso de uma candidatura individual – ou 6.500 euros – no caso de candidatura dupla.
Nesse plano, os candidatos devem colocar as experiências, como voluntariados, estágios ou trabalhos remunerados que pretendem realizar, e apresentar o orçamento necessário, incluindo gastos na alimentação, transporte e alojamento.
João Pedro Carvalho, presidente da associação Gap Year Portugal, lembra ao i que o projeto nasceu “da vontade de tornar o gap year numa possibilidade para todos os jovens portugueses”. O concurso, explica, “é uma forma de atenuar uma das grandes barreiras – o dinheiro”.
Para João Pedro Carvalho, “um gap year, em qualquer fase da vida, tem um impacto difícil de comparar com qualquer outra experiência”. O responsável aponta algumas das formas como pode enriquecer quem o vive: “Permite-nos sair da nossa zona de conforto, depararmo-nos com realidades desconhecidas, quebrar a rotina e adaptarmo-nos a um ritmo diferente daquele a que estamos habituados”.
Ao fim destes anos, outra coisa parece certa. João diz que grande parte dos jovens que decidem fazer um ano sabático procuram respostas, muitas vezes sobre qual o caminho académico ou profissional a seguir. Outros procuram conhecer um pouco mais sobre si próprios e o mundo onde vivem. “Sem sabermos, durante muitos anos, vivemos numa bolha e é no momento em que saímos dela que nos apercebemos das coisas de que realmente gostamos”.
A base dos ‘gappers’ – forma como a associação apelida quem parte num ano sabático – que passaram pela associação é a viagem. “Arrisco-me a dizer que quase todos, senão mesmo todos os jovens incluem viagens no seu gap year”, conta ao i. Na opinião de João, a viagem é “o cerne de todo o projeto”. Os viajantes optam por viajar primeiro para um destino que pretendam conhecer e depois realizar experiências como voluntariado ou/e work exchange.
O impacto profissional e pessoal da experiência Foi assim com João e Tamára. Depois de oito meses e catorze países, estava na hora de regressar a Portugal. João reconhece que a viagem não lhe trouxe resposta para todas as suas dúvidas, mas diz que, acima de qualquer das soft skils que ganhou, a que mais valoriza é a tranquilidade. “Comecei a estar muito mais tranquilo em relação à procura de respostas. E foi a tranquilidade que me fez chegar às respostas”.
Ao fim de oito meses, o jovem regressou a Portugal e decidiu voltar às suas rotinas. “Era verão, peguei na carrinha de nove lugares do meu tio, como já fazia há uns anos e viajei pelo país com os meus amigos. Acampámos pelo país e conhecemos as cidades a fundo”.
Apesar de ser algo que já fazia há uns anos, a experiência fê-lo ver as coisas por outro prisma. “Percebi que era isto que me apaixonava. A viagem. Levar as pessoas que gosto e também as que gostam de viajar a novos sítios e a viver uma experiência única”.
Hoje em dia, João não trabalha na sua área de formação. É líder de viagens numa agência, a Landscape, e organiza roteiros para vários destinos, onde acompanha vários grupos. Já organizou diversas deslocações à Guatemala, Colômbia e ao Peru. Para o ano, o novo destino será a Islândia. “Não é clichê dizer que o gap year mudou a minha vida. Mudou. Faço aquilo que faço porque fiz um gap year e sou aquilo que sou porque fiz um gap year”.
Para o jovem, o ano sabático não lhe trouxe apenas respostas sobre a vida profissional, mas também para o seu desenvolvimento pessoal. “Viajar ajuda-nos a saber resolver problemas. Faz-nos melhores pessoas. Quando viajamos com coração e com vontade de aprender a não julgar o mundo que nos rodeia, o impacto é gigante e traz-nos aprendizagens que de outra forma não ganharíamos”.
Como concorrer a financiamento
Até que idade é possível concorrer a financiamento da associação Gap Year Portugal?
Os candidatos têm de ter entre 18 e 27 anos de idade.
Existem requisitos?
É preciso ter concluído um grau académico (ensino secundário, licenciatura, mestrado ou doutoramento) este ano letivo (2018-2019) ou no ano passado (2017-2018)
Como são escolhidos os vencedores?
As candidaturas são analisadas com base em diversos critérios: dedicação, detalhe, criatividade, desenvolvimento pessoal, criação de impacto
Qual é o prémio do concurso?
Em cada edição é atribuída uma bolsa de 5000 euros, no caso de ser selecionada uma candidatura individual ou de 6500 euros, no caso de candidatura dupla
Há limite mínimo e limite máximo para a viagem?
Sim. A viagem deve ter um plano de seis a 10 meses.
É possível concorrer com um projeto de âmbito nacional, que não implique viajar?
Sim. O desenho dos planos é livre.
Onde é feita a candidatura?
No site www.gapyear.pt. É preciso preencher um formulário e submeter a candidatura.
Posso concorrer com um plano que tenha um orçamento superior ao do prémio?
Sim. É preciso demonstrar que existe suporte financeiro para realizar o projeto, por exemplo mediante a apresentação de extrato bancário.
É preciso ter nacionalidade portuguesa para concorrer?
Não, mas um dos requisitos é ter frequentado pelo menos durante um ano o ensino regular português.
Quem só termina a licenciatura em julho pode concorrer?
Sim. É obrigatório ter o ciclo de estudos concluído antes da partida, que deve ser feita até dia 31 de dezembro.