A varejeira é o animal de estimação da nossa época. Ouvimos-lhe o voo, que nos inquieta e arrelia como uma frase ominosa repetida por lábios podres. Tantas vezes, a sua bala rasa-nos o juízo. E se parece falhar o alvo, vai descascando as paredes do subconsciente. Peter Dendle, um reputado académico norte-americano que estuda o folclore e as suas representações nos séculos XX e XXI, e que tem um particular interesse por temas arrepiantes, as heranças da Idade Média, os demónios na literatura, os monstros na cultura popular, escreveu há uns anos um curioso ensaio com o título “O zombie como barómetro da ansiedade cultural”. Neste texto, Dendle diz-nos que o zombie provou ser um dos mais resilientes protagonistas no panteão dos monstros que o cinema tornou populares ao longo de sete décadas. E adianta que, nesse período, esta figura tem evoluído desde que foi descolada do folclore haitiano, estando inicialmente ligada a uma ideia de opressão, em que o zombie aparece como uma parábola do trabalhador explorado nas modernas estruturas industriais e das populações nativas exploradas pelas nações colonialistas. Desde então, como é fácil observar nos nossos dias, o zombie tornou-se esta metáfora canibal, que se ergue de entre a nossa ansiedade face a um apocalipse disseminado, aos sinais dos abusos de uma apoteótica civilização cujas miríficas conquistas são conseguidas à custa da negligência e desprezo pela deterioração dos recursos naturais e do planeta. Em consequência, e diante dos avisos de que caminhamos alegremente para o sexto episódio de extinção em massa na Terra, a sensação de impotência que toma conta de nós leva a que muitos prefiram metabolizar os seus receios e ansiedades assistindo a filmes e séries em que os protagonistas lidam já com os efeitos da catástrofe, e estão perante escolhas de vida ou morte, em que o imperativo é sobreviver, custe o que custar.
Foi há três décadas que os alarmes soaram na comunidade científica, tendo a questão do aquecimento global subido ao primeiro lugar na lista das ameaças que irão aniquilar um milhão de espécies no planeta – e isto segundo as conservadoras projeções das Nações Unidas -, mas (e o que é pior, para muitos) está em risco o estilo de vida a que nos habituámos nas economias hiperindustrializadas do ocidente. E nestes trinta anos que levou para que esta perspetiva aterradora se generalizasse, as emissões de carbono superaram o total do que se tinha emitido desde o início da era industrial. Face a isto, restam-nos outros 30 anos, não para impedir a catástrofe, pois o aumento de dois graus centígrados é, neste momento, algo de inescapável, mas o objetivo delineado no Acordo de Paris, que é conter o aquecimento global abaixo desse limite, passa apenas por garantir que mesmo a possibilidade da vida humana não se torna insustentável na maioria das regiões hoje habitadas. E vale a pena notar que nem uma só das grandes economias mundiais está, neste momento, em linha para atingir as metas daquele acordo.
Espera-se que o impacto da escalada das temperaturas afete decisivamente o PIB mundial. Estima-se que a perda ronde os 30%, o que é duas vezes o efeito da Grande Depressão, e não se tratará de uma crise temporária, mas de uma nova realidade com a qual as economias terão de aprender a viver. De resto, como David Wallace-Wells, o jornalista que escreveu o justamente alarmista artigo “The Uninhabitable Earth”, que ocupou, no início do verão de 2017, todo um número da New York Magazine (e, entretanto, expandido num livro), se tem fartado de repetir em entrevistas que, mesmo que nos fiquemos pelo melhor dos cenários, ou seja, uma subida das temperaturas abaixo dos dois graus, 153 milhões de pessoas irão morrer em consequência do aumento da poluição. Para ilustrar a dimensão do problema, o jornalista gosta de lembrar que isto seria o equivalente a 25 Holocaustos.
A grande ilusão que se tem criado junto da opinião pública é a de que as condutas individuais terão algum impacto neste problema, e que a diminuição da pegada ecológica de cada um de nós pode ser reduzida com ações conscienciosas no dia-a-dia, sem necessidade de uma drástica mudança ao nível da macropolítica. Vários especialistas têm demonstrado como só coletivamente será possível impedir o pior dos cenários, mas se nos EUA, como em muitos dos países mais desenvolvidos, hoje, a larga maioria dos eleitores já não embarcam nos delírios negacionistas, e entre os democratas, especialmente os millennials, este é já o tema que reúne maior consenso, a questão é saber se este sentido de urgência se irá traduzir em políticas como a aplicação de uma taxa de carbono, ou se, na guerra com os lóbis industriais e financeiros, se provará de uma vez que a democracia só triunfa quando alinhada com estes interesses.
Sendo quase uma anedota, o episódio que vamos relatar, serve para ilustrar o grau de imprevisibilidade deste período de horror que irá enegrecer as águas antes de secá-las para as gerações que esperam viver a grande guerra e a devastação que irá marcar as próximas décadas. Nas entrevistas que tem dado para promover o livro, Wallace-Wells vem repetindo que, entre todo o levantamento que fez, o que mais o horroriza é a forma como, há quatro anos, no mês de maio de 2015, uma espécie de antílopes anões, os Saiga, há muito colocada na lista das espécies em risco de extinção, viu os seus números descerem abruptamente num período de três semanas. Em alguns casos, nas estepes do Cazaquistão, houve manadas inteiras, dezenas de milhares de antílopes, que foram aniquiladas em poucas horas. Este episódio de extinção em massa teve bastante impacto não só a nível regional mas mundial, com as cerca de 200 mil carcaças a cobrirem vastas regiões na Eurásia, num território que se estendia por mais de 168.000 km² – quase duas vezes a dimensão de Portugal. O mistério levou a que despontassem uma série de teorias rocambolescas, com os maluquinhos que explicam tudo com a intervenção dos aliens a saltarem para as carrinhas de caixa aberta para patrulhar as redes sociais em busca de algum tipo de provas.
E mesmo se esta história não acaba com naves voadores a riscarem os céus, na busca por respostas, aquilo que apurou uma equipa internacional, financiada por um fundo de urgência britânico e por uma série de donativos de entidades ambientalistas e de privados, não foi muito menos inquietante. Estes antílopes do tamanho de cabras conhecidos pelos narizes altos e alongados e que, por andarem com eles junto ao chão, por piada, os cientistas alcunharam de “aspiradores de pó das estepes”, ficaram reduzidos a apenas 40% (cerca de cem mil indivíduos), porque uma bactéria que trazem no nariz há milhões de anos encontrou a humidade e o calor ideais para evoluir e reproduzir-se a uma velocidade tal que deu cabo do seu hospedeiro. Assim, com este exemplo, David Wallace-Wells lembrou como a temperatura não afeta apenas o nosso desempenho cognitivo ou humor, mas também a nossa biologia, e como há uma série de perigos ligados ao aquecimento global que podem vir, não de fora, mas de dentro. “Nós temos milhões senão mesmo biliões de bactérias e vírus a viver dentro de nós, a colaborar com o nosso organismo nas suas funções vitais”, diz o jornalista, adiantando que, “se é certo que o aumento de 2, 3 ou até 4 graus pode não afetar esse balanço, a hipótese de algum, ou alguns deles, se transformarem é um risco bastante plausível”.
E com isto voltamos aos zombies, à forma como a imaginação regista um perigo iminente e zarpa desabridamente pelos territórios da ficção-científica. E, no entanto, se estas visões pós-apocalípticas nos parecem sinais de um subconsciente atazanado pelo voo das varejeiras, o certo é que se pensarmos em termos de zombies, estamos a criar uma fuga, pois, no fim de contas, toda a gente sabe que os zombies não existem. Até ao dia…