Cannes me mata!

Cannes me mata!


Zombies, os ventos da revolução, realizadores em crise existencial e a nossa triste realidade. Tudo isto se passou no festival de Cannes, que termina no próximo sábado, antes de irmos a votos por uma Europa em mutação.


Curiosamente, Pedro Almodóvar, Ken Loach e Kléber Mendonça Filho cruzaram-se em Cannes com filmes em competição para a Palma de Ouro, vencida por Ken Loach. Regressam todos este ano. Agora, a questão que se coloca é esta: será a vez de Almodóvar?

Mesmo com chuva insistente e irritante, as constantes filas para passar a segurança, que fica com as nossas barritas de cereais (objeto perigoso, este!), a constante luta contra o tempo (e, para muitos festivaleiros, contra o sono), as multidões a fazer selfies em frente às escadas do Palácio dos Festivais ou os rostos ansiosos das centenas que todos os dias fazem uma barreira com cartazes a suplicar por uma “invitation s’il vous plaît!”, pode dizer-se que o festival de Cannes nos tem dado alguns momentos merecedores do seu estatuto. Mesmo sem grandes motivos (até agora) para grandes deslumbres. Um ou outro (já lá vamos).

Numa altura em que atravessamos a metade do festival de Cannes, é já possível auscultar a pulsação dos filmes que concorrem para a Palma de Ouro ou daqueles que mais nos surpreenderam – e que talvez até pudessem substituir outros que por lá andam.

A festa do cinema começou como deveria, com um filme espevitado, cheio de gente conhecida e até zombies. Foi assim a entrada em cena de Os Mortos Não Morrem, no regresso a Cannes de Jim Jarmusch e ao território camp muito série B, devidamente acompanhado por Bill Murray, Adam Driver ou Chloë Sevigny, bem como uma letal Tilda Swinton, numa serena homenagem a George Romero e a outros mestres do terror, como John Carpenter ou Dario Argento, que por acaso estavam em Cannes e acabaram por conhecer a equipa. Enfim, um filme de puro gozo e entretenimento, seguramente adequado a abrir o festival em tom de festa, embora talvez menos adequado a figurar num eventual candidato à Palma de Ouro.

Entre os diversos temas focados pelos diferentes filmes, sente-se a necessidade de espelhar o mundo em que vivemos. Sejam, por exemplo, os ventos de contestação política bem evidentes na obra de estreia do francês Ladj Li, intitulada Les Misérables, um trabalho muito realista sobre a panela de pressão nos bairros sociais de Paris escondida sob a calma. Um projeto conseguido, com a energia própria das séries de televisão, nascido numa curta homónima e focada no abuso da intervenção policial em bairros sociais, inspirada em registos captados pelo próprio e que haveriam de originar um processo judicial contra a força da ordem.

Ao tema acrescenta-se ainda o facto de ter sido naquele bairro que Victor Hugo terá escrito Os Miseráveis. Um filme que casa com o tema de denúncia e resistência de Bacurau, o filme do brasileiro Kléber Mendonça Filho, em parceria com Juliano Dornelles, que sucede a Aquarius, aqui em concurso há três anos, embora escrito há uma década. Desta vez no interior do Brasil, onde o realizador procura desmontar a forma como se faz a política que mina, ou elimina, as oposições indesejadas.

Um sentimento de angústia social é veiculado também em Atlantique, da atriz e cineasta senegalesa Mati Diop, que aqui se estreia no longo formato, ao dar voz às mulheres dos trabalhadores da construção forçados a emigrar para a Europa à procura de melhores condições de trabalho. Contudo, Diop opta por um estilo talvez demasiado sublinhado quando acaba por turvar a dimensão mais urgente do problema.

Entre Ken Loach e Pedro Almodóvar Parece tão fácil e singelo o cinema de Ken Loach. Toca-nos uma vez mais pela forma como nos aproxima das personagens de Sorry We Missed You. O veterano britânico vencedor de duas Palmas de Ouro (a mais recente em Eu, Daniel Blake, em 2016), recorda agora o drama de um condutor de entregas rápidas que se torna escravo depois de comprar uma carrinha e assumir o trabalho de franchise, sem horários nem direitos. Loach devolve-nos uma pureza de sentimentos e de cinema também.

Por fim, o espanhol Pedro Almodóvar tem gerado uma corrente de ternura em redor de Dolor y Gloria, o seu 20.o filme, sobre um realizador num momento de introspeção em que reavalia a sua carreira. Daí talvez o título de 20 ½, quanto mais não seja pela proximidade de 8 ½, de Fellini. Inegável é, de facto, a presença de um lado biográfico, de resto assumido pelo próprio, onde não se exclui até um lado meta. Antonio Banderas acaba por ser um adequado alter ego nesta viagem ao passado, à movida madrilena, às paixões amorosas que não se esquecem.

Almodóvar parece estar mais próximo do que nunca da Palma de Ouro. Só que falta ainda muito cinema passar pela tela. Como o novo de Terrence Malick, dos manos Dardenne, de Abdellatif Kechiche, de Quentin Tarantino, todos eles vencedores da Palma de Ouro.