Segundo informava o Diário de Notícias na sua edição de 7 de Outubro de 2018, os dados da Comissão Europeia relativos ao apoio judiciário indicam que Portugal, Escócia e Mónaco são os três países da Europa com maior número de casos de apoio judiciário por cem mil habitantes, mas também aqueles que pagam honorários mais reduzidos aos advogados. No caso específico português, os dados da Comissão Europeia referiam que, em 2016, o Estado estava a pagar em média aos advogados, por cada um dos processos de apoio judiciário, o valor de 389 euros, enquanto a média da remuneração respeitante aos 47 países abrangidos no estudo era de 429 euros.
Tão grande desfasamento relativamente à remuneração dos advogados que prestam serviço no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT) resulta essencialmente de a remuneração estabelecida para o trabalho neste sistema não ser actualizada desde 2004, permitindo-se assim uma enorme degradação dessa remuneração. A situação já devia ter sido corrigida há muito uma vez que, por proposta do PCP, foi aprovada pela Assembleia da República a lei 40/2018, de 8 de Agosto, cujo art.o 2.o determina a actualização anual dos serviços jurídicos prestados pelos advogados no âmbito do apoio judiciário. O art.o 3.o dessa lei estabeleceu ainda que o Regime do Acesso ao Direito e aos Tribunais (lei 34/2004, de 29 de Julho) seria revisto no prazo de um ano a contar da data de entrada em vigor da lei, com o objectivo de atualizar a tabela de honorários para a proteção jurídica e compensação das despesas efetuadas, no intuito de assegurar o efectivo, justo e adequado pagamento de honorários e despesas.
Só que, em lugar de actualizar a referida tabela de honorários como a lei impõe, o Governo anunciou na passada quinta-feira a aprovação de um novo Regime do Acesso ao Direito e aos Tribunais. O anúncio não poderia ter ocorrido em data mais insólita, dado que o próprio Governo tinha colocado a sua cabeça no cepo, anunciando que se demitiria caso a recuperação do tempo de serviço dos professores viesse a ser aprovada pelo Parlamento. Não se vê, assim, que sentido faria aprovar reformas na véspera da sua eventual saída. Tal só demonstra que a demissão do Governo sempre foi a fingir, apenas para pressionar os outros partidos a reprovar essa iniciativa, o que eles na verdade fizeram. O Governo mostrou assim ao Parlamento quem é que manda. E com este novo Regime do Acesso ao Direito e aos Tribunais, o Governo está mais uma vez a trocar as voltas ao Parlamento.
Efectivamente, em lugar de actualizar a tabela de remunerações dos advogados no SADT, conforme é sua obrigação, o que o Governo faz é tentar reduzir essa remuneração ao passar a abrir o SADT aos solicitadores. Na verdade, pese embora o enorme respeito que nos merecem os solicitadores, não oferece quaisquer dúvidas de que são profissionais com qualificação inferior à dos advogados, pelo que o facto de poderem participar no SADT em concorrência com os advogados só pode levar ao abaixamento das remunerações destes.
O facto de a intervenção dos solicitadores no SADT estar prevista na lei não justifica que a mesma venha agora a ser implementada, uma vez que essa participação nunca se tinha concretizado. Na verdade, o Regulamento do Acesso ao Direito, constante da portaria 10/2008, de 3 de Janeiro, fazia depender a participação dos solicitadores de um protocolo celebrado com a Ordem dos Advogados (art.o 11.o). Da mesma forma, dependia da Ordem dos Advogados admitir a participação de advogados estagiários nesse sistema (art.o 12.o), o que esta deixou de permitir, exigindo a plena qualificação e valorização dos profissionais que prestam serviço numa área tão nobre como é a do acesso à justiça.
O Governo, no intuito de pagar menos a quem presta serviço nesta área, passou assim a permitir agora a prestação desse serviço por profissionais com menores qualificações. Claro que a seguir anuncia a criação de um observatório, “responsável por assegurar o controlo de qualidade e a supervisão contínua do sistema”, ao mesmo tempo que promete “formação adequada a todos os profissionais inscritos no sistema, envolvendo no processo o Centro de Estudos Judiciários”. De nada disso precisaria, no entanto, se não quisesse efectuar esta abertura do sistema a outros profissionais, sem qualquer necessidade.
Na verdade, já há uma entidade que desde 1926 garante o controlo de qualidade e a supervisão contínua dos profissionais que exercem advocacia, ao mesmo tempo que lhes assegura a formação adequada. Essa entidade é a Ordem dos Advogados. Estranha-se, por isso, que a mesma esteja presentemente a pactuar com esta desvalorização do apoio judiciário. Remunere o Governo adequadamente os advogados inscritos no SADT, como a lei impõe, e deixe-se de iniciativas destinadas a desvalorizar o apoio judiciário que é prestado aos cidadãos.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990