Aminuddin Muhammad. “O Islão não é só dogmas, é um modo de vida completo”

Aminuddin Muhammad. “O Islão não é só dogmas, é um modo de vida completo”


O Ramadão é o mês em que os muçulmanos jejuam, meditam e recarregam baterias para o resto do ano, explica Aminuddin.


O Ramadão é um dos momentos mais importantes do ano para os muçulmanos e começou este mês, a 5 de maio. O i foi falar com o Presidente do Conselho Islâmico de Moçambique, o sheik Aminuddin Muhammad, teólogo e autor de uma das mais recentes traduções do Corão para português. Quisemos conhecer melhor esta religião pela voz de um dos seus próprios líderes.

Porque é que este mês, o Ramadão, é tão importante para os muçulmanos?

É um mês de reflexão e de meditação, algo de grande importância. O Ramadão é quando o crente se dedica à prática do jejum. É um mês de solidariedade, de paciência, de grande caridade. Quando se sente como outros, menos favorecidos, passam o ano inteiro. O jejum concede a liberdade dentro de si mesmo. É a demonstração de todos os valores islâmicos de uma só vez. Por isso é que é um mês de grande transformação para todo o crente. Noto que mesmo quem não reza durante o ano todo dedica-se a orar. Essa transformação permite recarregar baterias, para podermos ter uma vida nobre, de virtude e de mérito durante o ano inteiro.

Além disso também acaba por ser um momento de encontro da comunidade, certo?

Sim, sim. Eu costumo dizer que o mundo é composto de dois acampamentos. O primeiro só quer prazeres carnais, curtir a vida, comer, beber… O segundo acampamento não casa, não convive, vive a vida em mosteiros, condena os prazeres naturais. O Islão vem através do jejum mostrar que não é nem um nem outro, que o ser humano é composto de corpo e alma, dedicando-se a ambos durante 11 meses do ano. Mas no Ramadão dedicamo-nos só à alma. Não comemos, não bebemos, não temos relações. E as pessoas sentem alegria em conseguir cumprir com essa obrigação, por isso é que se felicitam tanto quando o sol se põe, é um momento de alegria.

Um maior conhecimento do que é o Islão poderá combater a descriminação das comunidades muçulmanas?

Na sua essência o Islão veio para estabelecer a igualdade. Nós acreditamos num Deus só. Se Deus é um, então a criatura também tem de ser uma. O Islão tem esse princípio bem estabelecido. Diz superioridade – socialmente ou de qualquer outra maneira – não, só base da piedade. Um árabe não é superior a um não-árabe. O não-árabe não é superior ao árabe. Um branco não é superior a um não branco e vice versa. Exceto quanto à piedade. O Islão estabeleceu a igualdade entre toda a humanidade. Todos somos iguais porque todos perante Deus somos a mesma criatura, da mesma origem. Temos o mesmo pai, que é Adão.

Como resumiria os valores fundamentais do Islão?

O Islão, ao contrário de outras doutrinas, não é só dogmas, mas sim um modo de vida completo. O Islão orienta o crente em todos os aspetos da vida, na vida social, na vida familiar, na vida comercial, na vida política. Não é só a parte dos rituais.

O facto desse código de conduta ser tão completo não o torna rígido?

Não, de todo. O ser humano já está praticando no mundo tudo aquilo que existe. O Islão veio só orientar essas ações corretamente. Recusamos que para alcançar um fim qualquer meio seja válido. Tanto o meio como o objetivo têm de ser corretos. Por exemplo, o caso do casamento. O Islão não proíbe o desejo sexual, mas orienta como deve ser satisfeito de maneira correta. Tudo o que é feito vai continuar a ser feito, mas o Islão orienta o crente a fazer as mesmas coisas de forma correta.

Pode explicar melhor a visão da sexualidade no islão?

O sexo é algo natural. Deus criou o ser humano e a procriação é necessária para pôr o mundo a andar. Agora, só pode ser praticado segundo o prescrito, ou seja, só depois do casamento. Fora disso não.

Então para si o Islão é incompatível com a liberdade sexual? Um muçulmano tem de ser sempre conservador?

Fala em liberdade sexual. No que toca às formas da prática do sexo, o homem e a mulher têm liberdade de praticar o sexo como entenderem, desde que seja com o objetivo da procriação. Noutros sentidos, não aceitamos aquela liberdade em que a pessoa pratica o sexo com quem quiser, como quiser. O Islão pôs alguns limites. Qualquer lei no mundo tem os seus limites, uma pessoa não pode fazer sexo com a sua irmã, com a mãe. Nunca há liberdade total. Agora, o Islão dá liberdade no sentido que se um mulher não for suficiente, você pode casar com uma segunda mulher, até quatro, mais que quatro não. Essa pergunta tem vários ângulos por onde se explorar.

Mas essa liberdade limita-se ao homem.

Sim, limita-se ao homem.

Porquê esta distinção?

O que está a falar chama-se poliandria. Em primeiro lugar, nas culturas atuais não conheço nenhuma que permita uma mulher case com vários homens. Não sei se há alguma cultura que o faça. O segundo aspeto é biológico, para evitar confusões em questões de paternidade. E se uma mulher coabitar com vários homens ao mesmo tempo ela não vai conseguir cumprir com as suas tarefas direito. O casamento tem um objetivo nobre, não é só a prática do sexo. Serve para se cuidar de uma família. E uma mulher com vários homens não vai conseguir cumprir com as suas obrigações familiares. O Islão proíbe a poliandria mas permite a poligamia porque na poligamia não há problema nenhum. Uma mulher está com um homem e mais nada.

Como reage às críticas de que o Islão oprime a mulher? Por exemplo, quanto ao uso do véu.

O Islão não oprime a mulher, pelo contrário, o Islão é que libertou a mulher. Concedeu todos os direitos às mulheres, quando na altura antes de Maomé eram privadas de tudo isso. Quanto ao véu, é um preceito religioso. Nós sabemos que não é só o Islão que utiliza o véu. Por exemplo, quando éramos mais novos, e até hoje, na Igreja Romana Católica, as irmãzinhas tapam o corpo todo, até a Madre Teresa. Faz parte da moral, das virtudes, da proteção da segurança da própria mulher. Não é nada de opressão. A mãe de Jesus também estava bem tapada. São orientações que vieram de todos os profetas.

Disse que o véu servia para proteção da mulher. Proteção do quê?

Proteção contra imoralidades. Porque a tendência é que uma mulher que não anda bem tapada, anda exposta na rua, é mais vulnerável à cobiça de maldosos do que uma mulher coberta.

Ou seja, a mulher tem de se limitar devido ao olhar de terceiros?

Isso faz parte da modéstia.

Uma mulher que recuse usar o véu, pode ser muçulmana?

Pode, pode. Embora seja desobediente, pode ser pecadora, mas o pecado não tira a pessoa da religião. Essa pessoa depois pede o perdão e Deus perdoa.

Como disse, o Corão, além de livro sagrado, funciona também como código social e legal. Essa lei é dinâmica? Adapta-se a novos desafios?

Os desafios são os mesmos. A natureza e o instinto do ser humano são os mesmos. O primeiro homem e o de agora têm a mesma natureza. O que muda são as formas, sofisticaram-se certas coisas. O homem cobiça o material. O primeiro homem também cobiçava. O homem gosta de mulheres. O primeiro também gostava. Na essência da humanidade não há diferença nenhuma. Portanto, o Corão vem da parte de Deus. Tem soluções para tudo, a essência está lá. Os pormenores, isso adapta-se. Mas o que era justo no passado não passa a ser injusto agora.

No Islão sunita existem quatro grandes escolas de jurisprudência, que diferem quanto à forma de interpretar o Corão ­– a escola hanafi, maliki, shafi’i e hanbali. Dentro de qual se enquadra e porquê?

Isso são interpretações. O árabe é uma língua muito rica. Às vezes há frases que um interpreta de uma maneira e outro interpreta de outra. Eu enquadro-me na escola hanafi. Mas isso não altera nada, isso são interpretações, estão todas corretas. O princípio dos princípios, em que todas estas escolas se basearam é o Alcorão, a tradição do Profeta, que usam para guiar a umma [comunidade muçulmana]. As quatro são unânimes nesse ponto.

Mas a escola hanafi também admite como precedente jurídico a razão e os costumes do tempo.

Está correto.

Acha que isso facilita a adaptação da leitura do Islão à atualidade?

Sim, isso facilita. Podemos considerar a escola hanafi um bocadinho mais flexível nestes aspetos. Noutros pode ser considerada um pouco mais restrita. Mas as diferenças estão nos pormenores. No fundo, partilham o mesmo centro comum.

Diria o mesmo em relação ao movimento salafita, o chamado wahabismo [a inspiração da Al Qaeda e o Estado Islâmico]?

Bem, o wahabismo, que surgiu agora, há uns 100 anos – na essência eles são hanbalis, na essência é uma escola. Mas porque veio o senhor Abdul Al Wahhab, com umas interpretações muito, muito rígidas quanto a alguns princípios do Islão, é nisso que difere da maioria dos muçulmanos. Mas na essência seguem um dos imãs, Ahmad ibn Hanbal. O problema do movimento wahabita, que muita gente não sabe, é a Arábia Saudita, porque estão lá lugares sagrados, muitos santos estão lá enterrados. E algumas pessoas estavam a desviar-se do caminho certo, que era o monoteísmo puro que o Islão sempre defendeu e pregou. Entretanto já se estavam a misturar algumas coisas com o politeísmo, idolatria, essas coisas. E o tal Abdul Al Wahhab quando veio foi muito rígido nessa matéria, no combate ao politeísmo na Ásia. Usou métodos muito rígidos, de que muitos discordam, interpretou alguns textos para justificar a sua ação. Mas é uma interpretação, não é algo que tenha de ser seguido por todos.

Uma das medidas da Arábia Saudita na altura foi a destruição dos túmulos de vários companheiros do profeta. Não há espaço para santos no Islão?

Não, esse tal Abdul Al Wahhab também se baseou em certos ditos do profeta. De facto, o Islão não advoga nem encoraja a edificação de túmulos e jazigos. Mas as pessoas às vezes interpretavam que se fossem túmulos de santos podia-se fazer alguma coisa, algum sinal. São questões de interpretação. Mas esse foi o motivo principal do surgimento dessas ideologias idólatras e politeístas, que tiraram a atenção de um único Deus para outras figuras, que se pensa que possam ter influência nas divisões divinas. Talvez o Abdul Al Wahhab tenha ultrapassado os limites, mas baseou-se numa tradição do profeta.

Não vê ligação entre o crescimento do wahabismo e o de grupos terroristas de inspiração islâmica?

Não, eu não vejo isso dessa forma. O problema da violência que está a ocorrer no mundo não nada a ver com o wahbismo. Talvez as pessoas relacionem porque aquele grupo é muito rígido. Mas hoje a violência está a gerar violência. E também há muita violência contra o Islão e os muçulmanos. Por exemplo, volta e meia surgem caricaturas contra o Profeta. Há problemas no mundo islâmico, regimes opressores, não dão direitos humanos à sua própria população. Tanta injustiça, que leva a violência, que gera violência. Veja lá o que aconteceu na Síria, por exemplo. O Bashar Al-Assad destruiu o seu país inteiro, milhões de refugiados, mas este senhor tem o apoio de alguns países. O que não acontece no Ocidente. Nós queremos democracia, todos os países islâmicos querem democracia. Mas estão-nos a privar desses direitos. Nos países islâmicos é só ditadores, que oprimem, maltratam, prendem.

Mas alguns ataques que têm ocorrido são em países ocidentais, levados a cabo por jovens nascidos aqui. Com o que é que relaciona isso?

Eu não estou a dizer que o motivo é só este, há muitos jovens que, na sua ingenuidade, estão sendo recrutados por gente com más intenções. Há jovens muçulmanos que conhecem pouco da sua religião. O Islão está contra a violência, contra o terrorismo. E não há terrorismo só no Islão. O profeta Maomé sempre disse que locais de culto são sagrados. Mesmo em tempo de guerra. Não pode atacar os fracos. Não pode atacar os velhos. Não pode atacar as crianças. Tudo isso. Mas há gente que é levada a praticar coisas que o próprio Islão condena, em nome do Islão. É muito mau. Os agentes disso tudo têm de ser presos, julgados e castigados exemplarmente. Isso é o que o Islão nos ensina. A vida de um ser humano é mais valiosa que a humanidade toda. O Islão até nos ensina a tratar bem os animais, quanto mais a vida de um ser humano. Há jovens a serem enganados mas isso não tem nada a ver com nenhuma escola do Islão.

Face a tudo isso, qual a sua leitura do conceito de jiade?

A definição de jiade, contrariamente ao que se lê no ocidente, nunca foi guerra santa, nunca. Jiade é uma palavra árabe que significa ‘esforçar-se ao máximo’, num sentido interior, num sentido de reforma pessoal. Esforçar-se na prática de boas ações, na ajuda aos pobres, esforçar-se na adoração, na dedicação. Na minha tradução do Corão, em nenhuma parte se lê sobre guerra santa. A guerra nunca é santa. Nunca o Islão conduziu uma guerra de conquista religiosa. Quando Maomé foi para Medina ele foi perseguido. Nem é permitido a um muçulmano obrigar alguém a seguir o Islão.

Para terminar, quais são os pilares fundamentais do Islão?

O primeiro pilar é a crença em Deus, um monoteísmo puro. Como diz também na Bíblia, como dizem todos os profetas. O segundo pilar é a oração diária, que um muçulmano tem de cumprir, não há nenhuma desculpa, em todas as condições tem de cumprir com a sua palavra. O terceiro é o zakat. Um fiel tem obrigatoriamente de dar 2,5% da sua riqueza aos pobres. O quarto é o jejum de Ramadão, o mês inteiro a jejuar desde a aurora até ao pôr-do-sol. O quinto é que quem tenha posses financeiras e possibilidade disso cumpra a peregrinação a Meca, o haj, pelo menos uma vez na sua vida.