O plano estava traçado para ser cirurgião vascular, mas a experiência como médico de clínica geral no Algarve trocou-lhe as voltas. Vieram os anos 80 e a dependência de heroína passou a ser uma constante nas consultas. A Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, de que viria a tornar-se um dos principais rostos, celebra 20 anos. Mudou o paradigma do consumidor criminoso para o doente. Hoje à frente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) João Goulão recupera a história que levou à descriminalização do consumo em 2001, os resultados e fala do momento atual, da falta de meios no terreno à canábis medicinal, mas também sobre o debate para legalizar o uso recreativo.
Um eurobarómetro de 1997 concluiu que a droga era a principal preocupação dos portugueses. Disse numa entrevista ao El País que havia um caso em cada família. Olhando para trás, parece-lhe que houve um momento em que o problema foi ignorado pelo Estado?
Penso que tivemos a felicidade de ter, em momentos chave, políticos que se comprometeram com esta questão. É evidente que, nessa altura, ser a principal preocupação colocou a droga e a toxicodependência num patamar elevado das prioridades, mas a preocupação começa mais cedo. Almeida Santos criou as primeiras respostas de saúde e prevenção ainda nos anos 70. Paradigmaticamente estavam na alçada do ministro da Justiça. Não foi uma questão de se ter ignorado, o problema é que em Portugal os problemas da droga explodiram com a revolução. Antes havia algumas pequenas bolsas de utilizadores, mas não era um problema de massas.
Lembra-se do seu primeiro contacto com a droga?
Tinha 20 anos no 25 de Abril. Fiz o final do liceu em Portalegre e não me lembro que houvesse, nem sequer haxixe, erva, não foi um tema na minha juventude. É depois do 25 de Abril e do processo de descolonização que começa a aparecer abundância de erva por todo o lado. Podemos comparar um bocado a situação em Portugal nessa altura com os americanos no Vietname. Cá a utilização de drogas era severamente reprimida, mas nas colónias era tolerada, era a maneira de os manter mais ou menos alienados relativamente a uma guerra com a qual a maioria não concordava. De repente voltam quase um milhão de pessoas para a metrópole, entre soldados, colonos, famílias. Voltam para Portugal num período em que o país estava a atravessar alterações sociais e havia uma grande avidez para a experimentação.
Também chegou ao seu círculo de amigos?
Tinha vindo para Lisboa estudar Medicina e começou a aparecer. Lembro-me de circular um charro. Não estou a dizer que nunca experimentei, claro que experimentei, mas nunca fui um grande entusiasta nem tive um uso continuado. Nunca gastei um tostão a comprar. O que acontece é que daí a pouco tempo organizações criminosas tornaram disponíveis todas as outras drogas no mercado português. Em poucos anos passou a haver de tudo: heroína, cocaína, LSD, tudo o que se quisesse.
De onde vieram esses traficantes?
Provavelmente eram organizações que introduziam as substâncias noutros países europeus e encontraram aqui um mercado emergente. E depois há uns fenómenos paralelos. Fala-se muito no Casal Ventoso, o maior supermercado. Era um bairro de gente trabalhadora em grande parte ligada à atividade marítima, ao Porto de Lisboa. Com o processo de descolonização, a nossa marinha mercante foi ao fundo, houve ali um enorme desemprego.
A droga foi uma oportunidade.
As pessoas conheciam gente no mar, nos navios, e como economia de subsistência começaram a contrabandear um bocadinho de tudo. Máquinas fotográficas, aparelhagens, até que perceberam que havia esta oportunidade.
Recorda-se do momento em que deixou de ser isso para ser o supermercado?
Na altura não me apercebi, não estava tão desperto, estava a tirar o curso.
Já com vontade de seguir medicina familiar, saúde pública?
Quando vim para Medicina não tinha ideias muito claras sobre isso.
Tinha um tio médico.
Sim e era uma inclinação de miúdo. Com cinco, seis anos jogava à bola com os amigos e ia sempre para o campo com uma caixinha de primeiros socorros. Esfregava as mãos para que alguém fizesse um arranhão no joelho para ir a correr buscar a caixa, pôr-lhes um penso. Depois fiz os testes de orientação profissional.
Que lhe deram para padre.
Deu para padre ou para médico. Tinha sido um padre adequado [risos]. Mas não tinha pensado em saúde pública. No decorrer do curso comecei a trabalhar com um cirurgião vascular, que ainda hoje é o meu modelo enquanto médico, o professor Américo Dinis da Gama. Estava tudo talhado para isso. Depois acabei o curso e na altura éramos obrigados a fazer o serviço médico à periferia, que me atirou para Faro. Era suposto ficar um ano e regressaria para o tal percurso na cirurgia. Gostei tanto da clínica, daquele contacto direto com as pessoas de carne e osso, que fiquei.
A carreira hospitalar seria muito diferente?
Quer queiramos, quer não, na medicina hospitalar as pessoas são muito o “doente da cama tal”, não têm um nome. Sabia o nome completo dos meus doentes, entrava a dona Joaquina e perguntava-lhe pelos filhos, cria-se uma relação. Foi isso que me apaixonou. Fiz o início da carreira no Algarve e em vez de regressar a Lisboa decidi ficar por lá. Fiquei 17 anos, desde o início dos anos 80, quando as coisas começam a ser problemáticas também no Algarve.
Quando começa a ficar preocupado?
Quando começam a aparecer na minha consulta famílias a pedir ajuda, jovens e menos jovens já atrapalhados, sobretudo com heroína. Éramos uma sociedade completamente impreparada para lidar com isto. Enquanto outros países foram aprendendo a conviver com a droga, houve tempo para campanhas de prevenção, nós não sabíamos nada e de repente a porta abriu-se. E era fácil saltar de umas drogas para as outras.
Acabou por aperceber-se então mais da dimensão no consultório do que no seu grupo de amigos e conhecidos.
Também havia esse lado. Hoje encontro amigos dos tempos da universidade, uns são arquitetos, outros advogados e falta um. Foi o que fez o percurso, rapidamente saltou para a heroína e acabou por morrer com sida poucos anos depois. Foram duas epidemias que cresceram a par. No final dos anos 70 aparecem as drogas, nos anos 80 a sida.
O consumo, a partilha de seringas, contribuíram para a dimensão da epidemia da sida, proporcionalmente das maiores da Europa Ocidental?
Sem dúvida. No campo da droga, o facto é que não tinha havido qualquer espaço de prevenção. Tinha havido uma campanha com uns cartazes com umas caveiras que diziam: “Droga, loucura, morte”. Uma campanha meio terrorista a que ninguém passava cartão. À luz do que se sabe hoje este tipo de campanhas são completamente ineficazes. Ainda no final dos anos 70 surgem então as primeiras respostas, depois há ali um vazio de uma série de anos em que aparece, ainda assim, uma consulta para toxicodependentes no Hospital de Santa Maria. Neste período surgem respostas privadas, clínicas de reabilitação.
Para os ricos?
Para os ricos e para os pobres que se endividavam e que eram completamente esmifrados até ao tutano, com cheques pré-datados, livranças, casas hipotecadas para poder pagar esses tratamentos. Eram pagos à cabeça.
Quanto custavam?
Quinhentos contos, por aí. As famílias pagavam e se a pessoa abandonasse o tratamento no dia a seguir o dinheiro ficava lá. E houve muitas comunidades terapêuticas com práticas muito complicadas até no respeito pelos direitos humanos, com violência, com exploração de trabalho quase escravo, sem técnicos. Os mais antigos tomavam conta dos mais novos.
Aí o Estado demitiu-se?
Estava remetido às tais respostas do Ministério da Justiça, tudo o resto era completamente selvagem. Chegamos a 87 e aí pela primeira vez há um desejo de pegar na questão. É criado o projeto Vida, uma coordenação interministerial, que envolvia oito ministérios, na dependência do conselho de ministros e que previa uma data de medidas, entre as quais a criação de um centro para tratamento de toxicodependentes na alçada do Ministério da Saúde, que veio a ser o Centro das Taipas. Finalmente passa a haver um sítio de referência para onde podemos mandar os doentes. Eu até aqui não tinha preparação nenhuma para lidar com estes casos.
O que faziam?
Era um coaching baseado no bom senso, investidos da autoridade enquanto médicos, mas pouco mais.
E terapêuticas de substituição, a metadona?
Nem pouco mais ou menos. Foi criado bastante cedo um programa no Porto, por um médico que tinha trabalhado nos Estados Unidos, o dr. Eduíno Lopes, que trouxe a metadona para Portugal. Mas só estava disponível no Porto. É criado o Centro das Taipas e os responsáveis, o dr. Nuno Miguel, o dr. Luís Patrício, puseram-se em campo a ver onde é que havia colegas que pudessem ser envolvidos e funcionar um pouco como antenas na periferia. Encontraram-me no Algarve, com disponibilidade, que era a única arma que eu tinha. Convidaram-me para um estágio e depois regressei.
Quando viu a dimensão do problema em Lisboa, a preocupação aumentou?
Sim, nessa altura já tive contacto direto com alguns spots.
Lembra-se da primeira vez que foi ao Casal Ventoso?
Era uma realidade chocante. Quase todas as manhãs havia pessoas mortas, as overdoses eram a um ritmo tremendo.
Quantas pessoas morriam por ano em Portugal por causa da droga?
No mínimo uma por dia, as estatísticas que temos da altura são 360 casos por ano.
O que muda no regresso ao Algarve?
Abrimos um centro inspirado no modelo das Taipas. Nas Taipas havia uma abordagem integrada, capacidade para internar as pessoas. No Algarve não tínhamos essa possibilidade, não havia ainda a substituição opiácea, mas havia medicação que usávamos para promover a paragem. E muitas vezes conseguíamos, no domicílio, com o apoio da família.
Estiveram dez anos nesse modelo.
Sim. Abrimos o que viria a ser o Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) do Algarve, como abriram em Leiria, no Porto. E fomos evoluindo.
Quando é que se começam a aperceber das limitações da abordagem, da ideia de que a toxicodependência tinha de passar a ser encarada como problema de saúde?
Penso que um momento marcante foi a aprovação da lei da droga em 1993. Fui a uma rádio em Portimão a uma entrevista em que estava eu e o responsável pela Polícia Judiciária do Algarve. Foi a primeira vez que me debrucei sobre os aspetos legais e achei que era um bocado assustador. Mas havia muita criminalidade associada: as senhoras não podiam andar com a mala no ombro porque havia roubos de esticão, não se podia deixar nada no carro. Isto incomodava muito as pessoas mas ao mesmo tempo havia esse lado de todas as famílias terem alguém com este problema. E o que sinto é que esta visão, compreensão, a senhora confidenciar ao padre “tem problemas mas é um bom rapaz”, fez o seu caminho na sociedade portuguesa.
Mas, no consultório, o consumo ser crime tinha algum reflexo? Tinham de denunciar os doentes?
Não se chegou a esse ponto, mas lembro-me de que quando abrimos o CAT do Algarve um dia estava a dar consulta e entra uma assistente esbaforida a dizer que na sala de espera estava a polícia a identificar todas as pessoas. Havia essa pressão.
Havia medo de procurar ajuda?
Ainda estávamos próximos do fascismo, ainda havia ali alguns resquícios de autoritarismo. Algumas pessoas, as mais velhas sobretudo, receavam aproximar-se do sistema. Eu tinha um telefone de secretária que parecia um intercomunicador. Um dia numa consulta estava a falar com um rapaz e ele às tantas pára, olha para mim, olha para o telefone, levanta-se e arranca-o da parede. “Está aí a bófia a ouvir-me?”. Havia alguns fantasmas. Mas não posso dizer que fosse algo muito sentido, não tínhamos as prisões inundadas de meros utilizadores. Havia alguns mas não muitos. Na prática as coisas começavam a ser consagradas como um problema de saúde e social.
Então o que vos moveu para a estratégia?
Consagrar tudo isto e organizar a resposta. Voltando à importância que os políticos podem ter, Jorge Sampaio foi fundamental, quer como presidente da Câmara de Lisboa quer como Presidente da República, patrocinando grandes discussões, trazendo a Lisboa especialistas internacionais, novas visões. E colocou-se a questão do quadro legal das drogas. Depois há o Governo de Guterres, com José Sócrates como ministro-Adjunto com a pasta da Juventude. É José Sócrates que cria a comissão que prepara a estratégia.
Num ano a estratégia que preparam é aprovada em conselho de ministros. Alguma vez sentiu que podia haver um recuo político?
Não. Houve balizas que nos foram colocadas de forma clara: podíamos propor aquilo que quiséssemos desde que nos mantivéssemos no quadro das convenções da ONU, com um paradigma proibicionista. Montámos a nossa proposta, com questões na área da redução da oferta mas sobretudo na área de redução da procura, prevenção, tratamento, reinserção social, tudo isto baseado na ideia de que estávamos a lidar com uma problemática muito mais da área da saúde do que criminal. Pedimos um parecer ao professor Faria e Costa, que nos disse que podíamos propor a descriminalização desde que mantivéssemos sanções administrativas. Portanto, conferir ao ato de consumir drogas o mesmo estatuto de quem não usa o cinto de segurança quando conduz. A polícia intervém, pode aplicar uma multa, em tese podem forçar-me a ter um curso para treino de condutores, mas não fico com registo criminal, não vou para a cadeia, há essa nuance que é importante.
A ONU não criticou?
A lei da droga mantinha-se a de 93 e só propúnhamos a alteração de um artigo que era o que tinha a ver com o consumo e posse para consumo. A estratégia foi aprovada quase sem tirar uma vírgula mas a descriminalização teve de ir ao Parlamento, o que só aconteceu um ano depois. Aproveitámos esse tempo para organizar sessões públicas de discussão, cinemas cheios de gente, famílias. Houve um apoio popular massivo à ideia. Foi fundamental. Até da igreja católica. O padre Vítor [Melícias], que era o alto comissario do projeto Vida, foi uma voz progressista de apoio à ideia nos fundamentos do humanismo. Chega-se ao Parlamento e o cenário é diferente: temos a esquerda a apoiar, a direita contra. A ONU era o papão: “Vai-nos pressionar, vai ser contra”.
Mas havia pressões de facto?
Ao nível político das grandes instâncias não sei se chegou a ver. Mas a pressão era essa, a ONU, a ideia de que íamos ser um paraíso de drogados com aviões a virem todos os dias.
Tiveram sempre a certeza de que isso não ia acontecer?
Não tínhamos a certeza. Houve sempre algum receio, mas à partida sentimos que os ganhos seriam maiores do que as perdas. Foi uma discussão muito acesa mas a lei acabou por passar. Entra em vigor em 1 de julho de 2001. Isto para dizer que a estratégia não marca um momento de rutura, indicou caminhos, apontou soluções. Por exemplo estávamos ainda muito titubeantes em relação à utilização da metadona.
Quando perceberam que a estratégia estava a ter resultados?
Indicadores como o decréscimo de sida entre os utilizadores de drogas. Vinha de trás, claro, em 1993 tinha sido lançado o programa troca de seringas pela mão da prof. Odette Ferreira. Mas com o aumento dos programas de substituição opiácea, retira-se pressão para os utilizadores consumirem a qualquer custo e em qualquer circunstância. Se alguém está a morrer de fome, vai aos caixotes de lixo apanhar restos. Se tiver comido um papo seco que seja, a fome já é mitigada. Isto foi assim, já não tem de partilhar a seringa com o outro, já não tem de encher a seringa com água da poça.
Havia 100 mil utilizadores de heroína no país. E hoje?
Hoje o que estimamos é que devemos ter 50 mil utilizadores problemáticos de todas as drogas, sendo que 30 mil estão em tratamento. Dantes eram 100 mil à solta. É uma diferença significativa.
Imaginava este resultado?
Desejava que fosse. Foi muito bom. E tivemos aqui uma intercorrência que nos levou a números hoje superiores ao que seria expectável.
A crise.
Sim, houve muitas recaídas.
Para alguém que viu o percurso de muitos doentes, foram relatos dolorosos?
Muito. Tínhamos pessoas controladas, equilibradas, funcionais há anos. Tinha havido políticas de discriminação positiva para o emprego através do programa Vida e tudo isso parou.
O Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) foi extinto em 2011, no auge da crise. A transição acabou por ser um fator destabilizador?
Sim, foi complicado. Há tantos fatores que é difícil atribuir responsabilidades. Da mesma forma quando se pergunta quais foram os resultados da descriminalização. Não sei dizer. O que sei dizer é que o pacote completo da estratégia e da descriminalização, conduziram-nos até aqui. E há evoluções que vemos também noutros países. Os consumos de heroína também decresceram. Em Espanha desapareceu do mercado quase de um dia para o outro e subiu a cocaína.
E a canábis? Hoje é a droga mais consumida.
Sempre foi, mas na altura as pessoas pediam ajuda. Os CAT estavam assoberbados com heroína. Ou heroína com cocaína, o speedball. De repente tudo isto vai diminuindo de importância e a canábis que já estava presente começa a aflorar como um problema. O que é facto é que a canábis de hoje é diferente da que havia no início, é mais forte, provoca mais sustos. Temos surtos psicóticos, ataques de pânico.
Mais do que viam no passado?
Sim. Tínhamos canábis com 3% de THC e agora tem 20% ou mais.
Um dos argumentos para a legalização da canábis para fins recreativos, tema que o PSD já anunciou que quer relançar na próxima legislatura, é precisamente controlar o tipo de substância a que se tem acesso. O caminho é por aí?
Não sei se é. Mas também já vi referirem-me como opositor acérrimo da ideia. Não sou, muito menos da discussão. Gostava era que isto fosse feito com o máximo de base científica possível. Acredito que o caminho seja a regulação mas assentando num princípio: que haja menos pessoas a consumir e sobretudo menos gente a ter efeitos nocivos. Não pretendo uma regularização que se dirija apenas a uma determinada clientela que quer consumir à vontade e algumas iniciativas político-partidárias podem sofrer desse viés.
Mas se tivesse de tomar uma posição hoje?
Provavelmente recomendaria a regulação do mercado.
Com venda nas farmácias?
Não. Esse aspeto, por exemplo na proposta do PSD, não me faz sentido. Andou muito embrulhada, mas conseguimos separar a questão da canábis medicinal da canábis social. Os partidos acabaram por entender que era importante avançar.
Mas não há nenhum medicamento à venda.
Creio crer que em pouco tempo estará, mas uma coisa são medicamentos preparados à base de canábis.
Preparações vaporizadas, infusões, mas não canábis fumada.
Sim. Em todos os países em que a canábis terapêutica está aprovada não está aprovada para uso fumado. Não vai encontrar nenhum médico que lhe prescreva três pezinhos de erva para fumar.
As propostas iniciais de autocultivo eram uma forma de abrir caminho ao consumo recreativo?
Eram, claramente. Feita esta separação, temos de tratar o uso recreativo com a seriedade que exige.
Onde seria vendida?
Nas coffee shops, nas tabacarias. Por que não? A maiores de idade.
Já há quatro empresas licenciadas para cultivar canábis para fins medicinais em Portugal. Projetam-se receitas de milhões a nível internacional para este mercado. É uma área promissora ou parece-lhe também uma forma de abrir caminho ao uso recreativo?
Acho que é importante descascarmos o trigo do joio, seja em relação ao estudos apresentados, seja em relação a esses estudos económicos e a esses milhões com que nos acenam, com que se pretende também ganhar o beneplácito político dos governos que veem aí tanto dinheiro em taxas. Não acredito que isto seja tudo para uso medicinal. O mercado do uso medicinal não absorve estes milhões de investimento. Penso que é produção a mais para alimentar o mercado farmacêutico. É uma antecipação de um investimento relativamente a um caminho que se quer fazer.
Preocupa-o que depois da descriminalização ter sido considerada um exemplo, que se dê um passo em falso?
Acho que não temos de estar na primeira linha. Tomámos a decisão da descriminalização quando se vivia uma situação catastrófica, não é o caso hoje. Temos problemas mas não são grandes problemas. A droga já não lidera as preocupações da sociedade. Claro que com isso baixou também nas prioridades políticas e isso é o lado mau. Perdemos visibilidade, importância política, orçamento, meios. E entretanto foram-nos atribuídas novas responsabilidades para as quais precisamos de meios, profissionais. Há realidades relacionadas com problemas aditivos que estão a tornar-se centrais na nossa sociedade, nomeadamente os ecrãs, as redes sociais. Precisamos de ter meios, massa crítica.
Disse que nos anos 70/80 era um problema transversal. Passou a ser um problema mais confinado a estratos mais pobres?
Sim, está mais à margem, o que também retira alguma visibilidade. Temos realidades que estão a emergir, sobretudo a partir da crise, e que nos obrigam a procurar respostas para nichos e também uma população envelhecida dificilmente mobilizável para reentrar outra vez no ciclo de tratamento. Os espaços de consumo assistido que pretendemos abrir têm também a ver com isso.
Foi anunciada uma sala de chuto no Porto.
São respostas para pessoas que consomem em situações degradantes e a que não conseguimos chegar, muitas vezes com problemas associados a doença mental e muitas desiludidas. Há pouco falei do programa Vida Emprego: assentou em microempresas, arranjaram-se empregos para milhares de pessoas. Veio a crise e as empresas foram à falência. Algumas pessoas tinham comprado ou alugado casa, constituíram família e de repente foi tudo por água abaixo.
Houve casos de pessoas que estavam sem consumir há quanto tempo?
Dez anos, mais.
Tornou a ver seringas na rua nos últimos tempos?
Há pouco tempo fui revisitar a zona do Casal Ventoso com uma equipa de uma televisão estrangeiras e voltei a ver montes de seringas, montes de pacotes.
Não estavam lá há dez anos?
Durante algum tempo não havia aquela quantidade. Não é tão visível como foi antes da grande intervenção do Casal Ventoso em 1997…
Mas não estava à espera?
Já tinha relatos, mas ver fez-me tocar campainhas.
Ficou desiludido quando esta semana a ministra da Saúde anunciou que o SICAD não voltará a um modelo autónomo como era o Instituto da Droga e da Toxicodependência?
Não ambiciono o modelo do IDT, o que queria e tenho defendido são mais meios. Não sei qual vai ser o modelo adotado, a ministra da Saúde falou de um reforço de competências do SICAD mas também das Dicad (Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, na dependência das Administrações Regionais de Saúde). O que eu gostava era de ver as unidades no terreno com mais autonomia, mais meios, mais capacidade de intervenção.
O que é que hoje não funciona?
A articulação entre as estruturas de redução de danos e as equipas de rua e o acesso direto e sem listas de espera às estruturas de tratamento. As ONG que trabalham connosco têm dificuldade em inserir as pessoas nos Centros de Respostas Integradas (CRIs), nos centros de tratamento. O que nos dizem é que muitas vezes não conseguem ter resposta.
O problema não pode tornar-se maior?
Tenho feito vários alertas. Dependemos diretamente da secretária de Estado da Saúde, que é uma pessoa com experiência com esta realidade, foi responsável pelo programa da tuberculose. Sei que está sensível a este problema, espero que haja em breve uma definição. O pior que está a acontecer neste momento é a indefinição. As pessoas estão insatisfeitas, mas tenho a sensação que seja qual for a solução, o importante é as coisas estabilizarem. E é preciso reforçar os meios, recrutar. A grande fornada de profissionais que trabalha nesta área entrou na mesma altura que eu. Fiz 65 anos. As pessoas estão cansadas, isto é uma atividade também desgastante.
Há muitas lições de vida?
Sim, mas quem trabalha nesta área também aprende a valorizar pequenas mudanças, pequenas conquistas. A pessoa que injeta e deixa de injetar, mesmo que continue a consumir por outra a via. A pessoa que se prostitui por causa da droga e deixa de o fazer. A pessoa que tem VIH, sistematicamente falha as consultas e passa a ir. São vitórias. Com estas migalhinhas fazemos croquetes, mas é desgastante. Estamos a falar de uma doença crónica recidivante, a recaída faz parte do processo. O nosso objetivo é que tenham períodos livres de dependência tão longo quanto possível. Se possível ad vitam, mas nem sempre é.
Tem chamado a atenção para o consumo de álcool. Que aspetos o preocupam?
Há alguns recrudescimento do consumo entre as mulheres, em pessoas na casa dos 30, 40 anos, adultos ainda jovens que estão a beber em excesso. Se calhar estamos apanhar neste grupo etário pessoas que tiveram hábitos precoces de consumo de álcool e que os transportam para a idade adulta. Mais uma vez precisamos de meios para uma intervenção mais consistente.
Também já defendeu o aumento do preço do álcool, que uma imperial a um euro é demasiado barato.
Vemos hordas de turistas que circulam pelas nossas cidades e ficam extasiados com o preço do álcool. Era importante que houvesse um preço mínimo por unidade de álcool.
Faz sentido o IVA a 13%?
Aumentar apenas o IVA acaba por não ser justo, porque vai encarecer os produtos mais caros, que à partida são os de maior qualidade. Enquanto a zurrapa que é vendida a um euro vai continuar a ter um preço extremamente acessível. Quem abusa verdadeiramente, o alcoólico, bebe a zurrapa.
Também há muitas promoções nos supermercados. Devia haver mais contenção?
Não diria tanto nos supermercados, mas por exemplo as happy hours que alguns estabelecimentos fazem, paga três, bebe seis, este tipo de comercialização, que atrai muito clientela, acaba por proporcionar mais abusos. Embora a venda no supermercado também pudesse ter mudanças. E depois é a complacência social em relação ao uso. Aqui há tempos vi no supermercado uns miúdos a querer comprar uma grade de cervejas. Ao chegar a caixa a rapariga pediu identificação, não tinham idade. A senhora a seguir na fila disse “ó filho, eu compro”. O rapaz pagou e ela comprou. Isto passa pela educação dos jovens mas também por uma mudança de atitude por parte dos adultos.
Nos EUA há cada vez mais alertas para a epidemia dos medicamentos opioides, casos em que as pessoas se tornam dependentes. Há 130 mortes por dia. Há relatos de casos destes cá?
Temos uma tradição de prescrição de opioides bastante cautelosa. O que aconteceu nos EUA, em meu entender, foi que sempre foram muito liberais, muito sujeitos à pressão da indústria. Os médicos tinham a caneta leve, para além da acessibilidade de opiáceos para coisas corriqueiras. No Algarve era muito chamado a hotéis para ver turistas. Os americanos vinham com opiáceos comprados nos supermercados para tratar diarreias e coisas assim. Quando as autoridades perceberam que havia sobre prescrição e muitos casos de dependência, fecharam a torneira. E as pessoas viraram-se para o mercado negro. Começou a aparecer o fentanil enviado pela internet, adicionado por vezes à heroína. Há pouco tempo desapareceram embalagens de fentanil de um armazém. Liguei para as Taipas a perguntar quantos casos tinham.
Quantos eram?
Dois, um americano com stress pós traumático, veterano de guerra, que pediu ajuda para se libertar. E um outro caso, creio que de um cidadão português a quem foi prescrito fentanil numa consulta da dor. Sempre que precisava de uma receita tinha de pagar 90 euros por uma consulta. Sei que já houve algumas interceções de encomendas, há alguma coisa que anda por aí. Felizmente não tem grande expressão, mas é algo que preocupa. Em Vancouver há quatro mortes por dia.
É uma alerta de como um problema pode ganhar escala em pouco tempo?
Completamente, o que é verdade hoje pode não ser amanhã. Andámos em pânico com novas substâncias psicoativas. Todos os dias aparecem novas. Felizmente na nossa realidade o problema está circunscrito, mas há tráfico pela internet e nada nos garante que não suba.
A propósito das comemorações dos 20 anos da estratégia, Jorge Sampaio disse que não se pode descansar nos louros. É isso que tem acontecido?
Não diria descansar nos louros, mas tem-se avançado menos. É determinante ter capacidade de intervir na área do tratamento, ter capacidade de responder às pessoas que nos procuram, redução de danos para os que não conseguem parar, dar-lhes melhor qualidade de vida. Há problemas que resultam deste impasse e desta perda de operacionalidade do sistema. Isto não é saudosismo, não estou a bater-me pelo IDT, mas pelos recursos que tivemos.
É disso que tem mais saudade quando pensa no ambiente há 20 anos?
Dos recursos, do entusiasmo. Havia uma vida orgânica, uma massa crítica, uma discussão no sentido de construir juntos soluções. Hoje estamos mais isolados, há menos espaço técnico. As pessoas estão cansadas e desmotivadas. Sobre esta questão da legalização: quero lançar um debate aprofundado, chamar pessoas com experiência noutros países que partilhem connosco. Estive agora numa conferência sobre redução de danos, onde estiveram muitos ativistas. Uma coisa é debatermo-nos pelos direitos, mas os não utilizadores de drogas presentes na conferência quase se sentiram coagidos a utilizarem drogas. A questão da regulação não pode ser para facilitar o acesso, mas para tornar o acesso mais seguro.