José António Saraiva. Uma espécie de memórias

José António Saraiva. Uma espécie de memórias


Depois do controverso Eu e os Políticos, José António Saraiva regressa ao registo autobiográfico com Eu e os Outros (ed. Gradiva). Se no anterior mostrava algumas figuras públicas tal como as conheceu, agora, o antigo diretor do Expresso e do Sol revela-se sobretudo a si próprio: a infância e a adolescência; a família, os amigos…


Um pai com dificuldades económicas

“O meu pai vivia com notórias dificuldades económicas, porque não recebia um grande ordenado no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, onde trabalhava, e tinha de mandar algum dinheiro para a família. Só depois de se mudar para a Holanda, onde foi professor catedrático em Amesterdão, passou a ganhar bem. Mas isso apenas aconteceu quase no fim do exílio.

Devo dizer, no entanto, que ele não se preocupava muito com a modéstia em que era obrigado a viver e com as férias económicas que fazíamos, porque ele próprio era um homem frugal e gostava do contacto com a natureza, que os parques de campismo lhe proporcionavam. Gostava de acordar, abrir o fecho éclair da tenda e estar no meio da Natureza.

Viveu em grandes cidades, como Paris e Amesterdão, mas nunca deixou de ser um homem rural. Nas férias obrigava-nos todos os dias a andar de manhã à noite por montes e vales. Quando voltou definitivamente a Portugal e fui com ele à terra dos pais – Donas, perto do Fundão -, percebi que a serra da Gardunha nunca deixou de ser o seu Paraíso. Era o sítio do mundo em que se sentia melhor.”

O exame da 4.ª classe

"O exame da 4.ª classe foi o meu primeiro exame a sério. Também havia exame na 3.ª classe, o da 4.ª é que determinava se um aluno estava preparado para deixar a primária e partir para o liceu ou se devia ficar a marcar passo na primária. Assim, o exame da 4.ª classe adquiriu para os miúdos um aspeto solene.

Lembro-me de os meus colegas irem nesse dia todos bem vestidos e penteadinhos, como se fossem para a missa. Pela importância da prova, a minha mãe deixou-me levar uma Parker de tinta permanente com aparo de ouro, que usei pela primeira vez na vida nesse exame (o que foi uma parvoíce, porque nunca tinha escrito com aquela caneta e tive enormes dificuldades de adaptação. Penso que ainda me caiu um borrão na prova, que podia ter estragado tudo). Levei ainda um relógio de bolso de prata também cedido excecionalmente pela minha mãe, para controlar o tempo da prova.”

O homem do futuro

“Com o progresso das novas tecnologias, o isolamento dos seres humanos aumenta. Cada um mete-se no seu canto com o seu computador a ver o seu programa diferente, a jogar ou a navegar nas redes sociais. Contam-me que em certas famílias as pessoas já quase não falam umas com as outras.

Mesmo à hora da refeição, cada qual come no seu “posto”, sem tirar os olhos do ecrã.

Há um par de anos, numa conferência em Bragança, procurei retratar o homem do futuro: um indivíduo que não sai da frente do ecrã do computador, exercendo a profissão a partir dali, recolhendo informação na internet, relacionando-se com amigos através das redes sociais, encomendando as compras

por email, fazendo sexo virtual, vendo filmes, jogando videojogos… Ora, hoje já há quem viva quase assim. Esta terrível imagem de ficção já faz parte da atualidade. Mas será isto viver?”

Da arquitetura para os jornais

Formei-me em Arquitetura em 1973, na Escola Superior de 

Belas Artes de Lisboa, e durante 15 anos, como foi dito, trabalhei a tempo inteiro como arquiteto, numa equipa chefiada por um dos grandes arquitetos portugueses da geração anterior à minha: Manuel Tainha. 

Nesse tempo, era nos ateliês privados, como aquele em que eu trabalhava, que se aprendia de facto a projetar. Na Escola de Belas Artes havia muitas cadeiras, o curso era longo (seis anos, mais pelo menos um de estágio) mas o que se aprendia no que respeita ao projeto era pouco. Assim, foi no ateliê de Manuel Tainha que comecei a projetar a sério – e tive a sensação única de fazer uns desenhos no papel e ver depois esses desenhos traduzidos em realidade, em coisas concretas, que se podiam apalpar. 

Depois do 25 de Abril comecei a colaborar no Expresso. Antes já escrevia para vários jornais e revistas, sobre temas diversos, seguindo uma tradição familiar. Mas sempre como hobby. Como colaborador externo. A minha profissão era a arquitetura – e era por aí que eu queria fazer a minha vida. Sucede que em 1981 Marcelo Rebelo de Sousa saiu do Expresso para o Governo, deixando livre, para lá do lugar de diretor, o de analista político. Então, o chefe de redação na altura, Vicente Jorge Silva – de quem eu era amigo – convidou-me para ocupar esse espaço de análise. Ao fim de algum tempo acabei por ceder, com esta ressalva: não trataria semanalmente de uma variedade de temas, como fazia Marcelo, mas apenas de um, que me parecesse mais interessante. Ele concordou – e assim nasceu em 1981 a coluna Política à Portuguesa, que foi bem recebida pelos leitores.”

Deixar de fumar.

“Balsemão sempre fumou muito. E, quando dois fumadores se juntam, a tendência é para fumarem mais. Assim, nessas prolongadas tardes de trabalho eu consumia bastante mais cigarros do que habitualmente. Foi o que sucedeu nesse sábado. Quando acabámos de trabalhar, por volta das oito da noite, Balsemão convidou-me para jantar. Eu tinha levado comigo a minha mulher – e lá fomos os quatro (eu, ela, Balsemão e Tita) ao restaurante Beira Mar em Cascais. Não me lembro do que comi, mas sei que a refeição foi abundantemente acompanhada por cigarros. 

Quando cheguei a casa sentia-me intoxicado. A roupa tresandava a tabaco e tinha os pulmões afogados em fumo. Tomei assim a decisão corajosa de não voltar a fumar nessa noite. Na manhã seguinte, ainda meio abalado, também não fumei. E depois do almoço pensei: se não fumei ontem à noite e hoje de manhã, por que não faço mais um sacrifício e fico o resto do dia sem fumar? E, a partir daí, eu dizia de mim para mim: “Já fiz o sacrifício de estar x dias sem fumar. Ora, vou pôr em causa todo esse esforço por causa de um único cigarro?”. A questão é que, quando se deixa de fumar, para voltar a fumar há sempre um “primeiro cigarro”. E foi esse primeiro cigarro que nunca mais fumei.”

A Noite da má-língua.

“A Noite da Má Língua começava com uma reportagem sarcástico-humorística da autoria do jornalista Vítor Moura Pinto onde se fazia crítica social e política e que acabava sempre com uma espécie de cartoon animado onde se via um exemplar do Expresso ser metido na sanita, ouvindo-se a seguir o inconfundível ruído de um autoclismo a descarregar! Parece mentira mas era isto o que se passava invariavelmente semana após semana. A situação era estranha, pois o Expresso e a SIC faziam parte do mesmo grupo empresarial, não sendo muito compreensíveis aqueles ataques sistemáticos. Mas aceitei-os sem um protesto. A coisa magoava-me, mas eu engolia. Eram os ossos do ofício.”