Em busca de cidades resilientes


Vivemos numa extensa massa de artificialidade cuja resiliência é permanentemente posta em causa pela dependência de bens e serviços que lhe são exteriores – alguns deles situados a milhares de quilómetros.


Com a greve recente dos motoristas de matérias perigosas, a sociedade portuguesa foi confrontada não só com as inconveniências da dependência do petróleo e dos sistemas de distribuição em que está assente, mas também com a fragilidade sistémica em que operam as sociedades contemporâneas. Alguns logo afirmaram que novas formas de locomoção, fontes energéticas ou tecnologias resolverão o problema. Contudo, o problema não reside na forma, mas sim na estrutura; e assentando o funcionamento estrutural das cidades contemporâneas na dependência de sistemas complexos e de uma cadeia logística global, não existem maneiras de evitar disrupções nestes sistemas, mas apenas mecanismos para atenuá-las quando acontecem – a isto chamamos resiliência. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) define cidades resilientes como aquelas que têm a capacidade de absorver, recuperar e preparar-se para choques futuros (económicos, ambientais, sociais e institucionais), promovendo desenvolvimento sustentável, bem-estar e crescimento inclusivo. Assim, as cidades resilientes, para além da capacidade de resistirem a catástrofes naturais ou impactos tangíveis nas suas infraestruturas e redes logísticas de distribuição de bens, devem também demonstrar ser socialmente coesas e autossustentáveis. O exemplo máximo de resiliência é o castelo medieval sitiado: dentro daquela fortificação, sem acesso ao exterior, os residentes deveriam ter capacidade para sobreviver e conviver em harmonia durante os meses ou anos que durasse o cerco dos exércitos inimigos. Na atualidade, o caso da dependência dos combustíveis demonstrou como as nossas cidades estão longe de atingir esse modelo de resiliência. Assim, enquanto alguns criticaram o caos gerado pela ausência de combustíveis, mas não questionaram o modelo de deslocação assente na combustão, outros afirmaram que a situação seria evitável se a sociedade caminhasse para a adoção generalizada de veículos elétricos. Mais uma vez, não estamos a olhar para o essencial daquilo que é o modelo falhado das cidades atuais: a total dependência da mobilidade (seja ela por combustão, elétrica ou outra) e a incapacidade para gerar modelos vivenciais de proximidade. Quando o arq.o Gonçalo Ribeiro Telles referia a importância de unir o rural e o urbano, era nesses modelos que estava a pensar: a possibilidade de obter de um mundo rural contíguo os recursos necessários para sustentar a urbe. No entanto, esse modelo foi desprezado e a própria noção de pensar o rural em harmonia com o urbano (cidade- -região ou ecocidade) ainda causa repulsa à maior parte dos planeadores, que veem na cidade uma imagem unificada e infinitamente expansível de betão e metal que não pode ser obstaculizada com a intrusão da ruralidade. O resultado desse preconceito é simples: eis que vivemos numa extensa massa de artificialidade cuja resiliência é permanentemente posta em causa pela dependência de bens e serviços que lhe são exteriores – alguns deles situados a milhares de quilómetros de distância. Os impactos ecológicos e a quantidade de dinheiro, energia e tempo despendidos para aceder a esses recursos são prova da sua insustentabilidade. Dirão os leitores em uníssono que não é possível ou desejável contrariar a globalização (de que outra forma conseguiríamos telemóveis, automóveis e outras bugigangas?). Essa afirmação até pode ser verdadeira. Mas o que realmente interessa perguntar é: o que estamos a fazer para reforçar e beneficiar sistemas de produção e vivências locais/regionais, reduzindo dependências e aumentando a resiliência?

 

Mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental

Escreve quinzenalmente