Este país vai mal, mal como “uma imensa casca de banana”. Diz e voltará a dizer Ana, uma atriz portuguesa no Rio de Janeiro à procura da voz de Carmen Miranda para um filme que sabe-se lá se chegará a existir, a ser rodado sequer, ou se ficará neste tempo irremediavelmente preso naquele turbante. Como foram os ensaios? “Correu tudo bem […] Ela foi morta. Costurada por três travestis. Cosida com pedaços de restos de fantasias de Carnaval. Grudaram os meus pedacinhos com gororoba, com bagunça, com bobagem. Estou viva.”
E Carmen Miranda? Carmen Miranda está morta, ou quase, numa dessas ruas da Lapa, morta às mãos deste Brasil de 2018. Morta entre despojos dessa utopia tropical brasileira que ajudou a construir ela própria. Segurando um espelho de mão, como segurava quando em 1955 encontraram o seu corpo num corredor da sua casa em Hollywood. A Hollywood que decidiu quebrar ao meio, botando “tempero no gosto e na garanta” dos norte-americanos – “todos broncos”.
“A minha voz é grossa, o meu sotaque é falso, eu sou a imitação de um lugar impossível. Eu sou a utopia tropical. Sou coberta de ouro e de foligem mas ainda assim… sou coberta de ouro e de foligem mas ainda assim eu sou mortal.”Poderia ter dito ao espelho Carmen Miranda num tempo em que o Brasil dava para imaginar a cores. 2018, este tempo em que incêndios em museus se tornaram metáforas para o estado a que pode chegar um país, o tempo em que se pede a cabeça de Carmen Miranda, decidiram o realizador brasileiro e Catarina Wallenstein filmar a preto e branco.
Estreado no início do ano no Festival Internacional de Cinema de Roterdão, “Tragam-me a Cabeça de Carmen M.”, que marca a estreia na realização da atriz Catarina Wallenstein, chega agora a Portugal, através do IndieLisboa, que esta noite volta a exibi-lo no Cinema Ideal. Será ela Ana, a atriz que se prepara para ser Carmen. Maria do Carmo, nascida em Portugal para chegar do Brasil a Hollywood como figura nada pronta, nada perfeita.
A partir dela, do interior do seu turbante, começaram a atriz e o realizador com quem já havia trabalhado em “Um Animal Amarelo”, ainda em fase de pós-produção, a construir esta história a passar-se agora – daí que entre o início da escrita do argumento e a estreia em Roterdão se tenha passado apenas um ano. “A gente chegou a dado momento a falar: isso aqui é uma vontade de se escrever um guião durante um ano sobre Carmen Miranda para depois aplicar em fundos e ser filmado daqui a três anos? Os dois sabíamos que a resposta era não”, recorda o Felipe Bragança.
“A idea era mesmo a de estabelecer uma urgência, essa sensação de que o movimento é um pensamento em processo, provisório. Uma das coisas que a Carmen traz é esse lugar, um certo elogio que ela faz da incongruência, da colagem. Ela como artista está se transformando e meio que acumulando coisas numa certa espiral de pensamento, que acho que é uma das coisas que de alguma forma precisam de ser elogiadas – ou de ser salvas – no Brasil agora.” Esse país que vai mal, esse país que se rendeu a um “projeto simplista e fascista, que se propõe a fazer uma síntese do Brasil pela simplificação e pela pureza cultural que Bolsonaro propõe”.
Carmen Miranda como figura imperfeita, cheia de “senãos, questões, dúvidas, questionamentos sobre o próprio processo criativo” a resultar numa acumulação de heranças da cultura negra e da cultura indígena por uma portuguesa branca. “Todas essas questões fazem com que ela seja uma espécie de quimera, uma espécie de monstro, e é exatamente o que nos interessa.”
Uma atriz a interpretar uma atriz que se prepara para interpretar Carmen Miranda, uma atriz que envia cartas ao irmão em Portugal, dando conta desse presente em que o filme foi rodado e montado e que veio confirmar o presente em que havia de ser estreado. Uma atriz que envia cartas ao irmão em Portugal “ou o Brasil que escreve uma carta a Portugal, ao país irmão”, completa Catarina Wallenstein. “Toda esta ideia esse mise en abyme tem a ver com o caráter do filme neste formato de ensaio: de lançar perguntas para o ar e não de chegar com uma receita pronta, com uma síntese ou com uma resposta.”
Perguntas sobre o presente, sobre este presente em que, descreve Felipe Bragança, “o Brasil está de alguma forma sendo desmontado por dentro, com toda a ideia de uma certa identidade brasileira – ou de uma certa utopia de identidade brasileira – em processo de desconstrução”, longe daquele projeto de identidade e de cultura que se foi construindo ao longo do século XX e que foi sendo abandonado. “É triste, mas não é surpresa nenhuma que Bolsonaro tenha sido eleito.”