Que faz o leitor com as cintas dos livros? Guarda-as carinhosamente porque aprecia listras? Usa-as para remendar o papel de parede que entretanto descolou, deixando na sala aquela inestética frincha que o desgosta e o compromete perante as visitas? Forra a gaiola do pássaro? Ou, simplesmente, livra-se delas com o mesmo desprendimento com que se desembaraça de uma abraçadeira estalada? Se é certo que, hoje, o livro, sujeito a uma acelerada velocidade de rotação, tem uma curta esperança de vida, o destino da cinta é deixar-se morrer jovialmente no próprio momento em que cai na mão do leitor, vítima daquilo que a fez nascer: o efeito do momento, a erupção festiva, o desejo de visibilidade. O que sugere que as cintas são, afinal, como certas peças de vestuário.
No guarda-fatos do marketing editorial dependuram-se capas, sobrecapas (um traje que tantas vezes mais estorva que resguarda), bandas e até uma espécie de aliciante saco-cama de gaze estrelado onde certos livros repousam, enfim, variadas farpelas de que o mercado livreiro, que não dá ponto sem nó, vai lançando mão num desfile de Carnaval acabado. Ali abundam as cintas de todos os tamanhos: de um modesto small de discreta eficácia comercial a um extra-large mais ambicioso. Este modelo, que pode bem vestir o livro quase por inteiro, chega a exibir “indispensáveis” textos que vêm contrariar a natureza efémera e descartável da cinta. E não é raro, ao percorrer as páginas de um livro de cinta larga, termos a sensação de nos encontrarmos diante de uma farpela demasiado grande para uma magreza literária sem remédio, como se aquela vestimenta exercesse, afinal, sobre o livro cingido um estranho poder adelgaçante. Sinal de que o hábito não faz o monge.
Uma cinta, ou minijaqueta, como apropriadamente lhe chamou Genette, é um lugar carregado de cálculo mercantil. E, por isso, é comum vê-la acrescentar-se de novas gangas, acompanhar a trajetória social do livro: mais um prémio, mais uma edição (de quantos exemplares, não sabemos). Há-as para todos os gostos. E desgostos. Há uns anos, os círculos literários quase empalideceram ao pousarem o olhar na cinta que apresentava Margarida Rebelo Pinto como “a autora mais lida em Portugal”. Já António Lobo Antunes há de ter-se desgostado com as cintas que apareceram a envolver os romances Conhecimento do Inferno e Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, a registarem ambas o número de edições. E isto levando em conta as seguintes declarações do escritor à revista Visão: “A Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo, cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há de vender muito mais do que isso”.
Bem vistas as coisas, uma cinta é uma espécie de testemunha abonatória: diz dos prémios arrecadados (oh ilusões canónicas!), do alto número de vendas alcançadas, da repercussão além-fronteiras e outras coisas de similar reputação. E diz também dos lugares muito comuns da publicidade e do espetáculo do consumível em que tudo ameaça transformar-se nestes tempos desalmados. Uma cinta não deve falar pelos cotovelos, antes ventilar frases sintéticas que se sucedem num rodízio de diversidade monótona. Estilo: “Melhor livro do ano”, “Uma obra-prima”, “Um marco na nossa literatura”.
Sucede que, em tempos como os que atravessamos, uma cinta vale o que valem hoje as testemunhas abonatórias: é mau não as ter mas, ao fim e ao cabo, pouco interessa o que dizem quando se dispõem a falar. Mesmo tratando-se dos mais subidos figurões. As suas aparições propagandísticas nas cintas dos livros são, por vezes, as criadoras do criador. Com razão disse Pierre Bourdieu que “o artista que faz a obra é ele próprio feito, no interior do campo de produção, por todo o conjunto dos que contribuem para o ‘descobrir’ e para o consagrar enquanto artista ‘conhecido’ e reconhecido por críticos, prefaciadores, marchands, etc.”.
Ora acontece com perturbante frequência toparmos com livros, sobretudo no domínio da atual ficção narrativa – o género que menos resiste a este tipo de fatiota –, que exibem nas cintas, além de um rol de prémios, frases onde rapidamente se percebe, se não que o livro vai nu, que a bota não bate com a perdigota. Casos há em que a cinta, ausente, seria vestimenta útil, obedecesse ela ao paradigma testemunhal que diz “eu, a verdade falo”. A um romance como Eliete, de Dulce Maria Cardoso, calçaria bem uma cinta que exibisse a frase: “Eliete, a Ema desflaubertizada”. E a uma cinta que envolvesse o mais recente livro de Inês Pedrosa não vestiria mal a frase- -apreciação de Carlos Maria Bobone: “Processo Violeta. Veredicto: falhado”.
Se é verdade que a multiplicação de prémios põe em cena instâncias de consagração que estão longe de ser exclusivamente literárias, conduzindo à trivialização deste instrumento e à consequente perda do valor simbólico que em tempos guardavam, acabando por favorecer a mercantilização do livro, também o é que as cintas criam um efeito de redundância, logo de banalização. A certos prémios literários há até quem os sacuda das cintas, como que acautelando a possibilidade de eles lhe infamarem a caderneta literária.
Em todo o caso, as cintas dos livros, submetidas à ditadura do gosto popular, funcionam para certos autores como as cintas modeladoras: não mudam nada, não fazem prever futuros cuidados com o corpo textual, mas estão na moda, aconchegam e ajudam a aumentar a autoestima. É aqui que o livro começa por mostrar – e até acumular – capital de distinção. E a diferença a nível de imagem pode ser muita. Uma boa cinta pode tornar um livro apetecível, desejável. A sua aparência é essencial, podendo fazer dele um sucesso antes mesmo de ser folheado. Da cinta pode dizer-se o mesmo que Furetiére disse sobre o título: “(il) est le vrai proxénète d’un livre”. Por outro lado, as cintas são também um meio auxiliar de diagnóstico do estado social e literário de uma nação. E basta pensar nas tenebrosas cintas com que por vezes as editoras rodeiam certos clássicos da literatura: “O livro que deu origem ao filme”.
Há, no entanto, livros que, não prescindindo dela (nem da sua valia comercial), fazem ouvidos moucos aos chamados “lugares da quantidade” e da qualidade, mesmo porque nem tudo o que é abundante é bom. É o caso da cinta que envolvia o romance Os Naufrágios de Camões, de Mário Cláudio. Aparentemente indiferente às glórias do mundo literário, esta cinta deixava de parte palmarés e contabilidades para nos atirar uma pergunta que abala as nossas convicções mais acomodadas, ao mesmo tempo que sobressalta o mais instalado dos camonistas: “E se Os Lusíadas não tivessem sido escritos por Camões?”
Talvez valha a pena lembrar que houve um tempo em que os livros vinham ao mundo, se não nus, sumariamente agasalhados – e sem o berro da aparição. Hoje muito amplificado, esse berro atinge decibéis que, se são capazes de eriçar os cabelos de alguns, a verdade é que se mostram manifestamente insuficientes para alcançar o ouvido de um público cada vez mais indiferente. Os primeiros textos impressos principiavam no rosto da primeira folha, espécie de resguardo que zelava pela boa apresentação. E o uso da capa, tal como a conhecemos hoje, é uma criação do séc. xix, executada a pedido. Há muito que a capa deixou de ter apenas uma função protetora do miolo. Hoje é uma côdea que se foi reinventando, acumulando camadas que têm um efeito perversor sobre a literatura. O mercado não está a transformar apenas o escritor em produtor de textos de bom traje, está a consumir a própria literatura.