A “uberização” da política


A canalização do descontentamento popular para startups políticas é uma velha doença das democracias.


Aristóteles não falava inglês mas deixou, já no século iv a.C., descritos os mecanismos que podem perverter o governo democrático, em particular as fórmulas demagógicas e populistas. O imediatismo na gratificação de todas as necessidades, característica dos tempos coevos, também chegou à política. A democracia directa à distância de um clique é um desejo recalcado que olha com desdém para os mecanismos tradicionais de representação política. A vontade de abolir os intermediários por via de fórmulas encantatórias que eliminem os representantes políticos não tem, para além do fraseado em línguas bárbaras, nada de novo. A “uberização“ da política por via da promoção de uma startup para exterminar os políticos e os partidos e para “acabar com as divisões artificiais entre esquerda e direita” remonta, em Portugal e na sua mais recente encarnação, ao programa político do Estado Novo.

Quarenta e cinco anos depois do 25 de Abril assistimos ao ritual celebratório na Assembleia da República, com um unanimismo dos actores políticos em torno da necessidade de maior justiça social. O programa das festas repete-se de ano para ano, dando como garantidos e de boa saúde os mecanismos tradicionais de representação política.

Na forma, os celebrantes, encabeçados pelo Presidente da República (sabiamente auto-eleito sem apoio partidário), parecem ter razão. Todos os partidos com assento parlamentar participam ou participaram, directa ou indirectamente, na governação do país. Não há, como na Alemanha, em França ou, a partir de domingo, em Espanha, partidos pestíferos que tenham de ser objecto de um cordão sanitário. Graças ao sistema eleitoral proporcional também não há em Portugal, como acontece noutros Estados da União Europeia (Reino Unido, França), um conjunto significativo de votantes que não consegue eleger representantes. O sistema partidário é, do ponto de vista do exercício do poder, muito inclusivo, descontada a abstenção galopante.

A realidade sociológica também parece dar razão aos celebrantes. As tentativas de importação de marcas estrangeiras (gilets jaunes, Extinction Rebellion, Stay Grounded…) para startups políticas na Lusitânia não têm tido sucesso. Já as recentes startups sindicais nos sectores da educação, saúde e transportes eliminaram os intermediários tradicionais, CGTP e UGT. A “política colaborativa” representa um risco maior para os “velhos” sindicatos do que o Governo de Passos Coelho…

No admirável mundo novo da política sem intermediários, os perigos espreitam os actores tradicionais mas ameaçam também as startups políticas. Esta semana, a gestão do WhatsApp em Espanha decidiu fechar as contas do Podemos, justificando tal decisão com o envio abusivo de grandes quantidades de mensagens. A poucos dias das eleições, a perda de acesso a um mecanismo fundamental de comunicação política põe em causa o pluralismo da campanha eleitoral.

A desintermediação da actividade política não pode traduzir-se na desregulação desta actividade. A partir do momento em que o acesso a bens e serviços de comunicação (leia-se as redes sociais) é fundamental para o jogo político tem de passar a existir uma regulação forte da política colaborativa, das startups e das redes sociais.

Parafraseando Clemenceau: a política é demasiado importante para ser deixada aos políticos, sobretudo aos que se anunciam como antipolíticos e se vangloriam de não ser políticos. Os representantes dos eleitores podem ser substituídos. Mas nada justifica o não exercício do direito de voto.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990