A fanfarronice que açula as expectativas é de tal ordem que não fica já qualquer margem para que a vida possa ser outra coisa que não uma tremenda desilusão. Comecemos por aí. Como poderia o embate entre Jordan Peterson e Slavoj Zizek, na sexta-feira passada, estar ao nível da desavergonhada propaganda que vendeu a coisa como “o debate do século”, “um embate entre titãs”? Surpreendam-se: não foi. Ainda se um deles tivesse perdido as estribeiras, esmurrado o outro… Se a coisa pudesse depois ser montada num estúdio, com o estribilho malandro de Ennio Morricone que sagrou os spaghetti westerns a elevar a tensão, talvez aí, no dia seguinte, o encontro pudesse ter um eco ainda mais musculado do que tiveram as cerimónias de antecipação.
Uma sinopse excessivamente afoita dá cabo de qualquer fita. De resto, o tom geral das reações não escondia o desânimo que seria de esperar de putos que saltam das cadeiras de uma sala tediosa, formam uma arena com os seus corpos e acicatam dois rivais numa briga no pátio da escola. Contavam que a coisa, em algum momento, ficasse mais feia. Dizia Stephen Marche num artigo no The Guardian, que o encontro entre os dois polémicos pensadores revelou ser “essa ultra-rara exceção em que um debate em 2019 conseguiu ser excessivamente civilizado”. Nem um olho arrancado, nem um insulto desses que fazem tremer a árvore genealógica do adversário. David Marcus, no The Federalist, destoou das restantes análises, notando que Peterson e Zizek, não apenas não se lançaram à garganta um do outro, como se estabeleceu entre os dois uma certa dinâmica, que, em alguns momentos, nos deu a sensação de estarmos perante um número de um duo de cómicos na vertente intelectual. E Marcus vai ao ponto de sublinhar como as tão vincadas diferenças na aparência como no estilo, deram lugar a uma surpreendente complementaridade.
Ainda sobre a questão das expectativas, e essa ponderação sobre o que podem as palavras frente a todos esses efeitos teatrais para gerar ansiedade, senão podemos controlar a trilha sonora como fundo para este artigo, que tal estes versos do poeta polaco Zbigniew Herbert para frisar melhor este ponto? “[G]ostaria de descrever a coragem/ sem arrastar atrás de mim um leão poeirento/ e também a ansiedade/ sem agitar um copo cheio de água// dizendo de outra maneira/ daria todas as metáforas/ em troca de uma palavra/ arrancada do meu peito como uma costela/ por uma palavra/ contida dentro dos limites/ da minha pele”.
É difícil resumir ou explicar os aspectos mais curiosos da estranha dança em que os dois se revezavam, fosse liderando ou seguindo. Certo é que nos melhores momentos até nos esquecemos que aquilo para que fôramos convidados era suposto ter sido uma monumental zaragata entre dois renegados da academia, um temível par de sacanas, cada um com particulares dotes retóricos, à espreita de uma aberta para humilhar o rival no meio das suas derivas por esse faroeste onde ciência, filosofia e política se cruzam, mas com o cuidado de não ir tão longe ao ponto de arrumar com a audiência num bocejo, ou – e esse hoje é o delito que se paga com a pena capital – fazê-la sentir-se burra.
O canadiano tinha a evidente vantagem de quem joga em casa. Desde cedo ficou claro, pela reação da plateia do Sony Centre, em Toronto, que o psicólogo clínico e professor universitário tinha conseguido arrastar muitos dos seus seguidores até ali, e logo a abrir deu sinal da sua satisfação depois de, nos bastidores, alguém lhe ter contado que os bilhetes para o debate estavam a ser revendidos a um preço superior ao do jogo de hóquei dessa noite entre os Leafs e os Bruins. Os bilhetes tinham esgotado há muito para o evento agendado um ano antes, e na rua estavam a revender-se a preços que ultrapassavam os 1200 euros. “Não sei bem o que pensar disto”, disse Peterson.
A estrutura do debate obrigava o autor do best-seller 12 Regras para a Vida – um antídoto para o caos a arrancar com uma exposição de meia hora, tendo como ponto de partida o tema “Felicidade: Marxismo VS Capitalismo”. Peterson começou menos como o professor e mais como o aluno calão que, para dar a volta ao problema de se confrontar com a obra do seu adversário, se desculpou explicando que não lhe foi dado tanto tempo como isso para se preparar, e, ao dar-se conta da vastidão da obra de Zizek, parece ter-se socorrido de um daqueles princípios atribuídos a Marco Aurélio, mas que, se nos vem à memória, é pelo tom entre o condescendente e o lascivo que Hannibal Lecter adota dirigindo-se à jovem agente do FBI, em O Silêncio dos Inocentes. Lecter aconselha Clarice a que, de cada coisa particular, se acerque perguntando-se o que há nela que a define, qual é sua natureza, o que faz ou busca que a revela. Ora, neste aspeto, Peterson parece ter tido a mesma dificuldade que boa parte dos leitores de Zizek em perceber exatamente em que ponto e de que espetro político ou ideológico se inscreve este pensador, célebre pelas suas guinadas e teses basculantes, mais apelativas pela forma como furam ou frustram qualquer sistema. Assim, o esloveno é o tipo de intelectual que se lança sobre a mesa do buffet servindo-se de forma aparatosa, menos preocupado com os perigos de provocar-se uma indigestão, do que em conseguir que a sua misturada cative a atenção daqueles que, olhando para o seu prato, dão por si intrigados ao ponto do fascínio, perguntando-se: como raio é que este tipo vai engolir tudo aquilo?
Sem saber ao certo que fio puxar, Peterson resolveu atirar-se à costela marxista de Zizek – que mais à frente admitiria que o assumir-se comunista não passa, no fundo, de uma tática de provocação, sendo que nunca se identificou com nenhum dos regimes que tentaram colocar em prática as teorias de Marx. Assim, o canadiano entrega-se a um contundente ataque em dez proposições ao Manifesto Comunista, em que, mesmo se apresenta objeções algo grosseiras, pela forma como simplifica ou desentende o pensamento de Marx, não deixa de formular sinteticamente algumas das incontornáveis reservas que, hoje, são mais do que legítimas face à tão dolorosa experiência que o otimismo delirante de Marx inspirou, tendo desencadeando no século passado o género de desastres que só um tipo embriagado com o seu génio poderia ter deixado de prever, nomeadamente, desconsiderando a estupidez que, em qualquer período histórico, parece dar cabo dos melhores projetos do homem.
Em consequência de não ter feito os trabalhos de casa, não ter estudado minimamente a endiabrada cozinha onde Zizek produz as suas saladas, Peterson parecia um tanto embevecido pela maneira como o outro, se desembaraçava com um charme peculiar, escolhendo palavras como bolachas, devorando-as, enchendo o espaaço de migalhas e, ao mesmo tempo, formulando hipóteses desafiantes. Com aquela gesticulação de um tipo que parece ter acabado de engolir um relâmpago e mostra certa dificuldade em digeri-lo, esforçando-se por não arrotar mostruosamente em público, o esloveno, sem se levantar como fez o canadiano, lá ia abusando no tempero, envolvendo e seduzindo por meio de divagações com pontes entre elas fragilmente sustentadas, mas sem nunca perder inteiramente o fio. É um estilo arriscado, uma forma de chutar a sua embarcação teórica para águas caudalosas, numa abordagem inebriante que se tolera hoje a filósofos que, em grande medida, abdicaram de sistematizar o seu pensamento, adotando todo o género de truques de retórica. Nestas atabalhoadas mas divertidas rábulas, as questões mais dramáticas ou triviais trocam gracejos, os números e dados empíricos surgem como colares de missangas ao pescoço das teses, anedotas populares abanam a cabeça ao som de medleys a partir dos greatest hits de espisódios históricos, e Zizek triunfa entre um público mais culto e que não busca apenas um mapa, um programa dividido em passos para se auto-ajudar na escalada até ao sucesso, pela sua capacidade de observar a atualidade a partir de um ponto de vista bem mais sofisticado do que as distorções emotivas que fazem as massas aderir a ordens de ideias montadas sobre slogans.
Nos seus trinta minutos, Zizek lançou-se, portanto, numa espécie de sprint, atravessando o seu repertório, oferecendo uma boa amostra deste talento para nos desconvencer de qualquer noção de âmbito mais alargado sobre a sociedade e o mundo, essas orientações comovidas, tantas vezes baseadas em intuições e que defendemos com o tipo de ênfase que as eleva a convicções íntimas. Mas é neste ponto que tantas vezes o filósofo esloveno tem merecido o desdém do que ele classifica como a esquerda liberal. E se não espanta que Nathan J. Robinson, editor da revista Current Affairs, e um socialista na vertente que tem tentado puxar o Partido Democrata norte-americano para a esquerda, classifique Peterson como um tóxico charlatão, foi com alguma perplexidade que o vimos desconsiderar Zizek, num comentário em directo do debate, dizendo que ele se trata de um humilhante embaraço para a esquerda. De resto, nas análises ao debate nos dias que se seguiram, muitos foram aqueles que, para justificarem a inutilidade do debate, disseram que, no fundo, os dois têm muito mais em comum do que qualquer deles gostaria de admitir.
E vale a pena recuar a fevereiro do ano passado, altura em que Zizek escreveu no Independent um artigo reagindo ao fenómeno que Peterson se estava a tornar nas redes sociais, em parte promovido pela alt-right, e no qual, passando ao lado das suas virtudes, o desacreditava, afirmando que “a sua mirabolante teoria sobre uma conspiração envolvendo os ativistas pelos direitos LGBT e o movimento #MeToo, um desdobramento do projeto marxista empenhado em destruir o Ocidente, não passa de uma noção ridícula”. Acontece que o carisma deste pensador que, até aos 50 anos teve uma carreira obscura, tendo-se tornado, do dia para a noite, uma enorme sensação, obriga-nos a perceber como se o posicionamento conservador de Peterson em qualquer outra época poderia torná-lo um personagem algo redundante, hoje, a frieza elegante das suas formulações no plano oral chocam com a tagarelice, gelam o discurso vápido que nos serve uma certa esquerda histérica, que embarcou em direcção a utopias insustentáveis e não aceita que o pica lhes venha exigir o bilhete. Aliás, o seu sucesso deveu-se em boa parte à forma audaz como, na sequência de um debate na sociedade canadiana sobre regras de discurso (envolvendo uma lei que forçava a adoção de pronomes que deviam ser usados para falar de transexuais), se dispôs a passar uma e outra vez em frente do pelotão de fuzilamento do género de progressistas com demasiado tempo de antena e que ascenderam e alcançaram alguma proeminência mascando a mesma pastilha e repetindo o que quer que seja a última tendência no que toca a políticas identitárias. Face a uma série de entrevistadores e ativistas dos direitos de tudo e mais alguma coisa, o canadiano conseguia, não apenas manter a compostura, mas demonstrar que aqueles que gostariam de fazer dele uma figura odiosa, e que se investiam desesperadamente em desmascarar um monstro, acabavam revelando uma patologia que lhes é própria. Um após outro, ao tentarem provar que as suas ideias escondiam perigosos preconceitos, fracassavam clamorosamente.
Em reacção ao artigo de Zizek, Peterson desafiou a escolher uma data e um lugar para os dois se confrontarem, de modo a que pudesse provar-lhe que não era um furioso alarmista com tendência a construir argumentos a partir de meias-verdades, como o esloveno o acusara de ser. O debate de sexta-feira foi o que resultou desse desafio. Mas há um parágrafo, no artigo de Zizek no Independent, e que foi por ele ecoado no encontro de sexta, que se revela particularmente útil para compreender o tipo de antagonismo que uma figura como Peterson atrai. Citando Jacques Lacan, uma das suas principais influências, Zizek refere que mesmo que o marido ciumento tenha razão quando afirma que sua a mulher dorme com outros homens, o seu ciume continua a ser patológico: sendo o elemento patológico a sua necessidade de sentir ciúme, pois é a única maneira que tem de manter a sua dignidade, e até, em certo sentido, a sua identidade. Ora, uma tendência que se tornou clara nos comentários ao debate, foi dos analistas dizerem que a falta de chama neste combate resultou de estes dois pensadores não terem encontrado um verdadeiro inimigo, disposto a desafiar a veracidade das suas afirmações. Houve, de resto, uma sensação geral de que Zizek e Peterson pareciam estar unidos em momentos decisivos, nomeadamente numa visão pessimista da História e da humanidade. Mas não é que o pensamento de um e de outro se afie na carne dos inimigos, simplesmente, os seus inimigos é que revelam o lado patético das suas noções e tese, que em boa parte dos casos, não passam de aspirações. Tanto do que certa esquerda liberal e progressista professa não vai além de um teatrinho para uma performance com vista à exibição dos seus bons sentimentos.
Sam Miller e Harrison Fluss, na revista Jacobin, notaram como Peterson e Zizek quase se uniram ao atacar o politicamente correto, considerando que, hoje, a esquerda perdeu o pé num “pântano de ressentimento e vitimização”. É neste ponto que Zizek mais se afasta de Marx, da sua visão otimista que defendia relações sociais livres e transparentes. Neste ponto, tanto um como outro expressaram sérias reservas quanto àquilo que motiva os homens, afirmando que as suas escolhas, além de não serem racionais, tendem muitas vezes para a auto-sabotagem. E assim, no fim de contas, o que este debate serviu foi para tornar transparente como, mais do que ideologias, aquilo que hoje nos separa é a rejeição de que o futuro pode superar a condição trágica da existência, sendo que Zizek e Peterson, concordaram num ponto crucial: a felicidade pouco interessa. Até pode ser conquistada, mas é um efeito secundário e não um fim em si mesmo, e, muitas vezes, resulta não de termos aquilo que desejamos, mas de ficarmos um tanto ou quanto aquém.