É avermelhado, tem quatro cavidades, ventrículos e vasos sanguíneos, mas não bate e é tão pequeno como o de um coelho: o primeiro coração 3D impresso a partir de tecido humano tem várias lacunas, mas a equipa de investigadores da Universidade de Telavive (Israel) responsável pelo feito acredita que a experiência pode abrir a porta à possibilidade de se criarem corações personalizados para transplante, bem como outros órgãos.
O artigo, intitulado 3D Printing of Personalized Thick and Perfusable Cardiac Patches and Hearts, foi publicado na última semana na revista científica Advanced Science, e em comunicado os investigadores explicam que o próximo passo é conseguirem ‘treinar’ o coração para que funcione como o órgão verdadeiro. “As células precisam de ganhar a capacidade de bombear; de momento elas conseguem contrair-se, mas precisamos que o façam em conjunto”, explica Tal Dvir, um dos cientistas envolvidos na investigação. Caso venham a ser bem sucedidos, os cientistas prometem transplantar o coração impresso em 3D em animais e, depois, em humanos. “Talvez, em dez anos haja impressoras de órgãos nos melhores hospitais em todo o mundo e estes procedimentos possam ser realizados rotineiramente”, acrescenta o investigador na nota.
Apesar do otimismo, por cá, o diretor do Programa Nacional Para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares da Direção-Geral da Saúde (DGS), Rui Cruz Ferreira, é mais cauteloso. “Acho que a hipótese de ser utilizado para transplantação ainda está algo distante. Até porque tecido humano é uma coisa e tecido cardíaco é outra – para haver tecido humano basta ter colónias celulares, que ao fim e ao cabo constituem um tecido mas que não têm propriamente as características funcionais do coração”, descreve o especialista ao i.
Contudo, nota Rui Cruz Ferreira, “há uma possibilidade que é real e que já é utilizada, que é a de auxiliar a cirurgia através da construção de modelos 3D. Ou seja, neste momento é possível antecipar algumas alterações, lesões ou doenças que são complexas e que têm pormenores anatómicos difíceis, já se consegue construir modelagens 3D que vão permitir planear a cirurgia doutra forma”.
A construção de modelos 3D já começou, aliás, a ser feita no país, ainda que “não com tecnologia inteiramente nacional”. Atualmente, o processo é feito maioritariamente no âmbito de casos de cardiopatias congénitas – nos quais se verifica uma alteração na estrutura do coração já na altura do nascimento, exemplifica o médico. “Por exemplo, se houver um orifício anómalo, haver uma modelagem desse mesmo orifício facilita muito a vida no planeamento da cirurgia”.
Relativamente aos transplantes de corações impressos em 3D, Rui Cruz Ferreira defende que “ainda há um longo caminho a percorrer” porque não é possível ainda “ter tecido in vitro com as características funcionais do músculo cardíaco”. Para tal, é preciso que a comunidade científica consiga, em especial, “fazer a diferenciação das células o suficiente para se constituir um tecido cardíaco”. Hoje, continua, “é possível constituir um tecido humano, mas é tecido indiferenciado, não é específico do coração e não tem as características funcionais do músculo cardíaco”.
E quando se conseguir constituir tecido cardíaco? “Será uma grande ajuda. Por exemplo, se nós conseguíssemos utilizar uma válvula a partir de tecido humano, seguramente que essa válvula iria ser muito mais eficaz do que aquelas que são atualmente utilizadas, aí não tenho a menor dúvida”.
As válvulas atualmente utilizadas são na maioria das vezes de origem bovina, explica Rui Cruz Ferreira, mas podem também vir do porco. “O tecido é tratado de forma a perder a sua capacidade de reação, para que não seja rejeitado”, conclui.
As estatísticas do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) mostram que, em Portugal, nos primeiros três meses deste ano, foram feitos 212 transplantes de órgãos – oito dos quais, de coração. E no início do ano de 2019, havia 2186 as pessoas à espera de um transplante, a maioria de transplante renal. Poderá então a impressão de órgãos 3D ser uma potencial solução para as listas de espera de transplantes, não só de coração mas de outros órgãos também? “Estamos a falar de coisas que estão ainda muito distantes. Não é daqui a dois anos, por exemplo, que se vai ter um coração de tecidos cultivados in vitro que vai substituir o coração, nem nada que se pareça, ainda há um longo caminho a fazer. Mesmo nos corações artificiais que existem, que são mecânicos, ainda há muito a fazer. É que o coração não é um tecido inerte”, justifica Rui Cruz Ferreira. “Cultivar tecido para um transplante de pele, por exemplo, é uma questão relativamente simples. Neste momento já é feito, porque a pele é um tecido simples, não tem uma funcionalidade tão grande quanto isso e portanto consegue-se fazer transplantes de pele a partir de tecidos de cultura. Agora, tecidos funcionalmente mais relevantes, não, ainda estamos longe dessa fase. Não é nos próximos anos”.
O processo Para chegar à impressão do coração 3D, com três centímetros, a equipa liderada pelo cientista Tal Dvir começou por fazer uma biopsia a um paciente para retirar uma amostra do tecido adiposo que rodeia os órgãos abdominais. Depois, a amostra seguiu para laboratório, onde se separaram as células presentes no tecido dos restantes conteúdos, como a matriz extracelular que liga as células entre si.
De seguida, os investigadores reprogramaram as células para que se tornassem células estaminais com a capacidade se diferenciarem em células cardíacas. A matriz, por sua vez, foi processada para que se tornasse um hidrogel que serviu como a ‘tinta’ de impressão. E assim nasceu um coração.