A de Notre Dame que ontem ardeu não era a da época medieval. E Luís Miguel Duarte, professor catedrático de história Medieval na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, não tem dúvidas que há uma parte significativa da catedral que poderá ser restaurada.
Ao início da noite de ontem, a luz já tinha desaparecido dos céus de Paris, mas o clarão das chamas continuava a iluminar a igreja. Ainda longe de qualquer balanço, o docente explicou ao i que ao fim de várias horas de fogo ainda não tinha perdido a esperança no melhor desfecho possível.
“Para já, ainda estou com esperança que parem isto, até agora o que se perdeu foi aquela flecha [pináculo] que pode ser totalmente reconstruída”, disse, lembrando que hoje em dia é relativamente fácil replicar aquela estrutura, ainda que para a história fique isso mesmo: uma réplica.
Já os tetos, originais dos séculos XII e XIII trazem uma complexidade acrescida ao que vai acontecer daqui para a frente. Ainda assim, segundo o especialista, é possível “fazer igual”. O docente diz mesmo que um dia as pessoas acabarão por se esquecer, tal como esqueceram todas as alterações, restauros e ampliações que foram feitos até hoje. Sim, porque aquela catedral estava, recorda, longe de ser o que foi outrora: “Esquecemo-nos que a Notre Dame que vemos hoje tem relativamente pouco a ver com a época medieval, com os séculos XII e XIII, porque houve restauros no século XIX pelo Viollet le Duc. E o Viollet le Duc era muito sério, tecnicamente muito bom, mas restaurou à maneira dele”.
Mantendo a sua postura otimista, o professor catedrático afirma que nesta tragédia se perdem elementos com muitos séculos, mas também outros do século XIX, dados os restauros.
Uma visão menos otimista tem o historiador Marco Daniel Duarte. O também coordenador do projeto Rota das Catedrais, do Ministério da Cultura, disse ontem à Lusa que este incêndio deixará marcas para sempre “na identidade artística da civilização europeia”: “A Europa tem matrizes que vêm da Grécia e de Roma, mas sabemos que se constrói, fundamentalmente, a partir da Idade Média, e na Idade Média as catedrais são o edifício por excelência da identidade europeia, Notre Dame simboliza tudo isto”.
E acrescentou: “Ao arderem aqueles pináculos é toda uma civilização que está a arder, e que se confronta com a sua própria identidade, que neste momento sofre”.
Já para Luís Miguel Duarte o que poderia deixar mais marcas, ou seja, o mais difícil de restaurar seria a torre sineira: “Preocupa-me um bocado porque tem um sino que é do tempo de Luís XIV e o chão é absolutamente único. Se esse sino arder podem fazer um igual numa semana, mas nunca mais podem reproduzir aquele som”.
Reforçando que até determinado ponto do incêndio a obra pode ser reconstruída, o especialista mostrou ainda assim alguma incompreensão com a atuação dos bombeiros: “Não percebo bem porque é que os bombeiros não conseguem dominar o incêndio”.
“É uma perda para a humanidade. É muito mais do que Paris, é muito mais do que religião. Acho que nós todos estamos a arder um bocadinho”, adiantou, acrescentando que episódios como este fazem com que “a História [fique] muito mais pobre”.
Para a reconstrução de elementos como o pináculo. Luís Miguel Duarte lembra a relevância de haver desenhos e imagens que permitem uma reconstrução mais fiel.
“Acho que o dinheiro não vai ser um problema, porque no dia em que lançarem uma campanha, toda a gente contribui e rapidamente reúnem o dinheiro”. Mesmo que sejam necessários milhões: “Neste momento serão muito milhões de euros. Não quero ser pessimista, mas nos próximos dez anos não vamos ver a Notre Dame. Ninguém neste momento pode dizer, mas vai ser muito demorado, muito caro e muito trabalhoso. A questão é saber se se pode reconstruir ou fazer de novo quase tudo, ou se o incêndio vai chegar a uma altura em que não”.
Marco Daniel Duarte defende que, “além dos pináculos que vêm abaixo, dos vitrais que se partem, das abóbadas desmoronadas, das gárgulas, há todo um património imaterial que está associado àquilo que estamos a assistir”.
A catedral de Notre Dame começou a ser construída em 1163, passando a ter função religiosa só vinte anos mais tarde.