Notre-Dame. O incêndio que ressoou pelos séculos e fez tremer os mitos

Notre-Dame. O incêndio que ressoou pelos séculos e fez tremer os mitos


Um inventário das perdas sofridas no incêndio não chega para nos dar uma ideia da rudeza do golpe. É preciso ouvir o que estalou com a pedra, o gemido da História e das suas lendas.


“Por aí fora… Por toda a França, em cada cidade, há catedrais que se erguem como esta, monumentos triunfais do passado. Um livro escrito em pedra”, diz o Rei Luís XI, apontando para a catedral de Notre-Dame. Isto na adaptação cinematográfica de 1939 do clássico de Victor Hugo, O Corcunda de Notre-Dame (originalmente, Notre-Dame de Paris). Nesse filme do realizador alemão William Dieterle, que estreou numa altura em que a II Guerra Mundial marcava já o passo da devastação no Velho Continente, face a tudo o que se via ameaçado de perda, as palavras do rei francês assumiam um peso maior ao dizer-nos que as catedrais são os monumentos em que fica gravada “a caligrafia do passado”. Hoje, depois de termos visto esse velho símbolo do orgulho da França ser consumido pelas chamas, somos lembrados do que escreveu Jean-Paul Sartre, também no final de 1939, numa altura em que integrava o contingente destacado para uma unidade meteorológica na região da Alsácia. Assombrado pela memória terrífica da Primeira Guerra, e antecipando a destruição do que viria a ficar conhecido como a Segunda, Sartre anotou no seu caderno que o mundo contemporâneo “se permitia fazer coisas terríveis pois sabia que iria morrer”. O prodigioso autor que veio a ser sinónimo do prestígio da cultura francesa no mundo, admitiu que estava a absorver aquele sentimento de fragilidade com a maior das intensidades. “Eu sabia, todos nós sabíamos, que ele haveria de desaparecer. Agarrei-me a ele com todas as minhas forças”.

Terá sido essa sensação que começou a trepar às costas do choque com que muitos, ontem, viram as imagens da catedral a sucumbir às chamas. Os franceses terão tentado agarrar-se àquele monumento que assinala a resistência entre nós de um mundo ancestral, ver a partes da majestosa catedral a desfazerem-se terá sido uma imagem do fim de um mundo.

Da Terceira Cruzada a de Gaulle A pedra não arde, mas sujeita a altas temperaturas estala, e é possível que a negligência das obras de restauro venha a significar um golpe num edifício que a História se encarregou de ligar ao próprio destino da França. Era, de resto, assim que começava o trágico romance de Hugo, em 1931: A palavra esculpida na parede significa “destino”.

Tendo escapado à ameaça de demolição que pesava sobre ela no período da ocupação nazi, toda a gente conhece esse episódio milagroso em que Paris e os seus monumentos foram poupados devido ao grau de eloquência da sua beleza, que sem pronunciar uma palavra, soube formular a mais tocante  súplica quando, em agosto de 1944, Hitler ordenou a destruição da cidade das luzes. Foi o próprio governador militar alemão quem se recusou a aceitar as ordens, e conspirou nas costas do Fürher sabendo que a história podia até perdoar ao seu país as vidas de milhões de homens, mas nunca perdoaria um crime que roubasse ao futuro esta forma de conviver com a grandiosidade do passado.

Não é a primeira vez que o monumento sofre sérios danos. A Revolução Francesa deixou as suas marcas. E este incêndio adquire também um significado simbólico, e deverá ter um efeito devastador na psicologia dos franceses, numa altura em que o país busca nas suas entranhas um ânimo que lhe permita voltar a inspirar a Europa de forma a que haja um futuro para um modo de vida que promove cada vez mais a alienação. Foi ali, naquela catedral católico-romana, que a Terceira Cruzada foi anunciada por Heráclio, o arcebispo de Cesaréia, foi ali que Henrique VI foi coroado rei da França, e Napoleão, imperador. Foi nesta catedral que Joana d’Arc foi beatificada, e após a libertação de Paris, este foi o monumento para o qual se voltou Charles de Gaulle ao dirigir os seus homens, numa procissão pelos Campos Elísios. Há um sem fim de mitos menores e maiores que, como a pedra, estão entretecidos nesta construção situada na pequena ilha Île de la Cité em Paris, rodeada pelas águas do Sena.

O mais belo sinal da presença de Deus A ilha era habitada no final da Idade do Ferro pela tribo gaulesa Parissi, que deu à cidade o seu nome. A catedral assenta, assim, literalmente sobre o ponto zero da pátria francesa. Todas as distâncias são calculadas a partir da praça que fica de frente para as torres ocidentais da igreja. Reza a lenda que a primeira pedra foi colocada em 1163 com o Papa Alexandre III a presidir à cerimónia em que começou a elevar-se este monumento dedicado à mãe de Jesus. E poucos edifícios estendem tão longamente a sua sombra no nosso imaginário, havendo uma série de rumores que garantem que um dos espinhos da coroa com que Jesus foi crucificado, bem como um dos pregos e um fragmento da cruz, estão ali escondidos.

Para lá dos segredos que a catedral guarda, também a sumptuosa arquitetura a distingue, tratando-se de um monumento que nos é legado como o culminar do estilo gótico. E em 2012, quando começaram as cerimónias que assinalaram os 850 anos da catedral, o reitor e arcipreste da igreja, Patrick Jacquin, exaltava-a como “um símbolo de beleza, verdade e bondade”.

E se o nosso imaginário não pode deixar de ser tocado pela imponência da catedral, o que dizer da forma como a nossa infância tem ali um lugar de recreio junto das suas gárgulas e das personagens que, antes e depois de Hugo, dotaram o seu assombro de um encanto tão particular. E vale a pena lembrar as palavras do gigante das letras francês que, naquele romance, nos disse que “um homem com um olho só é muito mais incompleto do que um cego, pois sabe exatamente aquilo que lhe falta”. Uma frase que ressou mais nesta hora, quando a vista magoada pelo que o incêndio destruiu torna mais dolorosa a noção do que ficou a faltar-nos.

Num texto de Henri Cole que reúne uma série de anotações de viagem, de quando visitou Paris, e que foi publicado na The New Yorker, o poeta norte-americano diz-nos que a forma como a luz penetrava os vitrais daquela catedral foi considerado em tempos o mais belo sinal da presença de Deus entre nós. Cole cita então Quasimodo, o corcunda abandonado em criança nos degraus da Notre-Dame. “Nunca me dei conta do quão feio sou pois só agora percebo quanto alguém pode ser belo”, disse ele a Esmeralda, que nesse momento o consolou dando-lhe um gole de água a beber. Hoje, somos mais feios ao enfrentar a memória e as imagens da beleza que se perdeu ontem, num incêndio que pode servir pelo menos para nos lembrar de que o nosso mundo está a desaparecer, e devemos agarrar-nos a ele com toda a força que nos dá essa sensação de fragilidade.