Ricky Gervais é um estafermo, mas sabe valer-se disso como mais ninguém. Todos temos um cá dentro: esse cretino que não se dá ao trabalho de considerar os efeitos daquilo que diz pois gosta de se surpreender tanto como qualquer pessoa com as coisas que lhe saem da boca. Todos temos um, preso a alguma árvore num ponto mais ou menos ermo da nossa personalidade, amordaçado, em isolamento nalguma cela às horas do dia, dependente das visitas íntimas que lhe fazemos a horas impróprias, e dos períodos regulares de recreio ou exercício que lhe damos. Já Ricky Gervais soube chegar a um pacto com o seu. Valer-se dos seus instintos, do seu desdém pelas conveniências sociais e da sua perspicácia a desmontar cada um dos signos desse horóscopo, balançando a sua malevolência com recurso a soluções de engenharia humorística de modo a garantir que o tecto não desaba sobre a audiência. O sucesso da persona por ele criada depende da precisão desse cálculo, da capacidade que tem para ir até ao limite, fazer o papel do guia turístico que conduz excursões pela borda do abismo, trazendo o grupo de volta, são e salvo, e unindo os seus elementos nesse género de camaradagem entre amigos com confiança suficiente para se desbragarem confessando os seus podres, rasgando a fina película de ironia para assumir essas verdades que, noutras circunstâncias, talvez nos envergonhassem de morte.
Hoje, Ricky Gervais goza de carta branca para fazer o que lhe der na veneta. Pagam-lhe somas astronómicas seja para apresentar galas dos globos de ouro, seja pelos especiais de comédia na Netflix, seja pelas séries, que escreve, realiza e protagoniza. E tem de ser ele a desligar as máquinas, a decidir quando chegou a hora de lhes cortar o oxigénio, pois, na sequência do estrondoso sucesso de “The Office”, está a viver há anos um período de graça sem fim à vista. Ele é o comediante que é chamado para fazer o trabalho sujo. Dizer a verdade ao poder no mundo do espectáculo, àqueles que fingem rir-se de si próprios se os publicistas lhes disserem que isso alarga o seu crédito junto dos fãs. Mas não vale a pena embarcar na fantasia de que Gervais faz, como ele diz, tudo o que quer, como quer e quando quer. O que se percebe se seguirmos com atenção a sua carreira é que há um nível de cálculo em tudo o que faz, um rigor quase maníaco, e uma série de fórmulas que vem repetindo e que, se não forem refrescadas, acabarão por esgotar-se.
Apesar do êxito da primeira temporada de After Life, que se estreou no mês passado na Netflix, e tem já luz verde para uma segunda temporada, não há possivelmente nenhum outro empreendimento de Gervais em que o seu calcanhar de Aquiles tenha ficado tão exposto como nesta minissérie de seis episódios.
No seu pior, os exageros e a histeria dos militantes do politicamente correto têm atapetado o caminho para uma caterva de escroques que tiram dividendos no plano político e mediático vindo dizer aquilo que supostamente toda a gente pensa mas se sente inibido na hora de o exprimir, por outro lado, essa forma de policiamento tem feito crescer as fileiras do bando reguila, essa espécie de inspirados desordeiros que só se sentem compelidos a participar num debate se, pelo caminho, puderem deixar em frangalhos os ânimos das bancadas mais beatas. Gervais é o filho safardana de pais irados, e nada parece dar-lhe mais gozo do que arranjar uma maneira de provocar algumas gargalhadas arrotando num velório. O seu génio não está tanto nas piadas, mas na forma como consegue inseri-las e retirar-se antes que as coisas azedem.
O argumento de After Life é bastante aborrecido se o resumirmos, mas é preciso levar em conta que este não passa, se virmos bem, de um pretexto, uma boa desculpa para que Gervais possa soltar o energúmeno que tem em si aproveitando-se da nossa comiseração para com o protagonista, Tony. Trata-se de um alter-ego bem manhoso este que Gervais congeminou. Um jornalista de uma dessas folhas que se ocupam das tremendas trivialidades que compõem o quotidiano numa pequena cidade ou vila, e que ao longo de 25 anos viveu uma existência perfeitamente realizada, e sem deixar que as ambições o atrapalhassem, porque estava casado com a sua alma-gémea. A série começa meses depois da morte de Lisa (Kerry Godliman), vítima de cancro, que através de uma série de vídeos gravados nos últimos dias, e que pontuam a série, antecipa a espiral depressiva em que Tony é lançado após o seu desaparecimento. Nesses vídeos, testemunhamos o esforço além-túmulo de Lisa para impedir Tony de se entregar demasiado depressa a essa noite gentil. Somos assim apresentados a uma mulher demasiado perfeita e ao fim abrupto de um casamento que transbordava de alegria. E tudo soa idílico demais para ser credível, provocando até uma certa náusea.
Esta comédia, com alguns apontamento dramáticos, nunca se esforça muito para ser mais do que um veículo para piadas que não tinham força suficiente para se aguentarem sem as traves de um arranjo ficcional a suportá-las. Assim, e como alguns críticos têm notado, o material usado nesta série parece ser o refugo dos espectáculos de stand-up, com Gervais como argumentista a dedicar-se a uma espécie de reciclagem e arrumação em diálogos em que as outras personagens não passam de bonecos que lhe dão as deixas para ele ganhar discussões que mantém na sua cabeça com adversários incapazes de lhe dar troco. Assim, como James Poniewozik notou no The New York Times, além da armadura que lhe é conferida pelo luto, Gervais serve-se da série para reencenar no plano ficcional algumas das convicções, como o ateísmo, que o vimos já defender de forma brilhante em aparições em talk shows, mas nos diálogos desta série dá muitas vezes a sensação de estar a “montar discussões para que o seu alter-ego os vença, como um Aaron Sorkin dos cretinos”.
Contudo, e mesmo se esta série está longe de nos provocar o desconforto que sentimos ao ver The Office, ou de nos comover como acontece em Derek, o talento Gervais acaba por impor-se em várias sequências, e consegue desiludir-nos na hora em que estávamos preparados para declarar a nossa desilusão com esta série. Antes do patético ensaio de redenção para Tony, que no desfecho da série abandona a sua misantropia e chega à conclusão de que não ganha nada em ser um cretino, e que ainda pode raspar o fundo do tacho da felicidade se pelo menos ajudar os outros a viverem um pouco melhor, alguns dos momentos conseguem fazer-nos esquecer o preguiçoso trabalho dramatúrgico desta comédia, quando Tony, ao definhar, mais do que nos fazer rir com as suas tiradas cruéis, nos deixa lamber com ele as feridas, seja por termos perdido Lisa, uma mulher demasiado perfeita para ser real, seja outra ilusão qualquer em que depositámos esperanças para nos agarrarmos a esta porra triste.