Líbia: de como a História se repete


A desaparição de um regime ditatorial não dá, per si, quaisquer garantias de que em sua substituição surja um regime democrático. Menos garantias dará se a eliminação do ditador for alimentada a partir do exterior e se, depois de conseguida a sua eliminação física, nada for feito por uma transição política que assegure a continuidade…


A intervenção militar contra o regime do coronel Kadhafi foi motivada pelo desejo de distrair a opinião pública dos problemas nacionais e de a mobilizar para uma intervenção militar contra uma ditadura, numa guerra “justa”. Em 2011, quer Sarkozy quer Cameron tinham muito boas razões para tentar fazer esquecer as dificuldades políticas internas e partir para uma acção militar contra um ditador que ameaçava reprimir os brotos de democracia que surgiam na Cirenaica. De caminho ajustavam-se velhas contas com Kadhafi, patrocinador de vários actos de terrorismo de Estado dirigido contra interesses franceses (derrube do avião da UTA – 1989), ingleses (derrube do avião da Pan Am em Lockerbie – 1988) e americanos (bomba numa discoteca em Berlim frequentada por militares americanos – 1986).

A administração Obama não estava particularmente motivada para ser a força motora do ataque militar a Kadhafi mas considerou que, se por uma vez, os Aliados europeus queriam agir militarmente, não deveriam ser criadas dificuldades.
A NATO, depois de várias hesitações por parte da Alemanha (que acabou por se abster quer no Conselho do Atlântico Norte quer no Conselho de Segurança da ONU), planeou e de-senvolveu o ataque (no qual participaram 14 aliados), contando com o apoio de parceiros europeus (Suécia) e do Golfo (Emirados, Qatar, Jordânia).

O que se seguiu forneceu um conjunto de lições que tendem, infelizmente, a ser esquecidas. As capacidades militares europeias rapidamente se mostraram insuficientes e o esforço dos ataques aéreos (reconhecimento, reabastecimento em voo, munições, aviões) teve de ser delegado nos EUA.

A segunda consequência do ataque à Líbia passou pela alienação da Rússia, que tinha votado favoravelmente a resolução do Conselho de Segurança estabelecendo uma no fly zone que acabou liberalmente interpretada pela coligação como uma carte blanche para atacar as forças de Kadhafi.

A terceira lição, retomando o que já acontecera no Iraque, resultou do rápido desaparecimento do Estado líbio. As forças de Kadhafi resistiram muito menos tempo do que o esperado, mas a sua desaparição entregou o Estado ao tribalismo e à balcanização por via das várias milícias armadas.

No day after da queda de Kadhafi não houve qualquer tentativa de recriar um Estado: a NATO considerou que não tinha vocação para tal, a ONU não obteve nenhum mandato para o fazer (os russos consideraram-se ludibriados na sua boa-fé ao aprovaram a no fly zone) e os diversos Estados com interesses na Líbia trataram de patrocinar uma ou várias milícias.

Chegados a 2019, continuaram as negociações sob a égide da ONU para um Governo de reconciliação nacional não obstante a existência de pelo menos dois Governos: o internacionalmente reconhecido, sediado em Trípoli, e o do general Kalifa Haftar, com sede em Tobruk e que controla a maior parte do território. Na semana passada, com o SG da ONU em Trípoli, Haftar, com o apoio expresso do Egipto, UAE (e o apoio discreto da Rússia e da França), decidiu avançar para a conquista de Trípoli.

O novo capítulo da guerra civil está a garantir uma boa quota de mortos, feridos e deslocados, aumentando os fluxos de migrantes subsarianos em direcção à Europa.

Se tudo correr menos mal, Haftar será um novo Kadhafi. Valeu a pena?

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990