1. Henry Miller dizia que nunca perdemos a arte de escrever, mas o que por vezes perdemos é a arte de ler, e quando encontramos alguém versado nesta arte recuperamos o dom da visão, isto é, o dom da interpretação, porque ler é sempre interpretar. Durante 12 anos aluno interno num colégio com uma magnífica biblioteca, da qual cheguei a ser o bibliotecário um bom par de anos, sempre tive a sensação, tal como Henry Miller rodeado pelos seus livros preferidos, de que eles, os livros, estavam vivos e falavam comigo.
Sou produto de uma educação republicana e laica alimentada por uma família que aliou sempre a política à cultura, nomeadamente à cultura literária. Desde logo alimentada pelo meu avô paterno, o capitão Alfredo Barroso, que participou em não sei quantas conspirações contra a ditadura, foi várias vezes preso e era inflexível no ódio a Salazar e às sotainas. Mas alimentada sobretudo pelo meu pai, por vários tios e por nefastas leituras de Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Eça de Queiroz e Raul Brandão que acabaram por me tornar um “monstro” insensível ao beatério, à caridade, ao Estado Novo, à Mocidade Portuguesa (a “Bufa”) e ao Movimento Nacional Feminino. O que jamais lamentarei.
Li muito novo o que não devia. Por exemplo: “A Velhice do Padre Eterno”, do Junqueiro; a poesia, os panfletos e “O Anti-Cristo”, de Gomes Leal; “O Crime do Padre Amaro”, do Eça; “O Pobre de Pedir”, do Raul Brandão. Assim como outras obras provocatórias, obscenas e subversivas, pouco recomendáveis a quem julga ter por missão servir o “Bem Público” e proibidas, claro, pela PIDE e pela censura do Estado Novo. O resultado não podia ser mais desastroso. A campanha do general Humberto Delgado (tinha eu 13 anos), a crise académica de 1962 (tinha eu 17 anos) e o início de uma guerra colonial que iria durar quase década e meia só agravaram o meu caso e impediram que me tornasse, primeiro, num “menino de coro” e, depois, num adolescente bem-comportado.
Em suma, a minha educação republicana e laica deu no que deu. Tornou-me um impertinente, insolente e malcomportado rapaz, pouco atreito a usar gravata. Mas, tal como a tropa havia de me impor a disciplina e a farda antes do 25 de Abril, também a política e o sentido de Estado haviam de impor-me o uso e abuso da gravata após o 25 de Abril. Hoje, porém, já só a uso quando me imploram que é preciso guardar as aparências, o que é raríssimo.
Camilo surgiu mais tarde na minha “mesa de cabeceira”, mas ficou lá para sempre. Porque, apesar de ele ter fama de reaccionário, incitou-me a desabar o mundo a pontapés de estilo. Nunca mais me separei das suas novelas e folhetins, e foi graças a ele que consegui ler ainda melhor o padre António Vieira, o Cesário Verde e o meu poeta português favorito, o Alexandre O’Neill. José Cardoso Pires apareceria pouco depois, e com grande vantagem.
A frequência da tertúlia do Café Vavá, da boémia lisboeta e das associações de estudantes incitou-me à cinefilia, ao prazer de viver e à militância política. Sou um exemplar genuíno da década de 1960, sobretudo no que isso tem de saboroso e picante em múltiplos sentidos – e ainda hoje considero que o pecado é a muleta insubstituível da felicidade na Terra.
Mas sou também, desde que me conheço, um frequentador de bibliotecas, livrarias, feiras e salões de livros. Um leitor compulsivo e, também, um bibliófilo. Um produto típico da cultura escrita, hoje cada vez mais desprezada pelos tecnocratas que governam o mundo. Tive a sorte – hoje talvez considerada um azar – de pertencer a uma geração de portugueses cuja adolescência não foi dominada pela omnipresença e supremacia dos ecrãs de televisão. Para além dos vários desportos que pratiquei com imenso prazer e intensidade, os meus tempos livres também foram preenchidos, desde muito cedo, pela literatura, a música, o cinema, os amigos e as namoradas.
2. Nietzsche dizia que “sem a música, a vida seria um erro” – e não se referia propriamente à música produzida industrialmente ou, ainda menos, à música pimba. Parafraseando o filósofo, hoje também se poderia dizer que “sem a literatura, a vida seria um erro”. Numa entrevista ao El País Semanal, há tempos que já lá vão, Mario Vargas Llosa salientava que “a literatura é fundamental para manter uma atitude crítica perante a realidade e o mundo, e para manter uma linguagem renovada e rigorosa”. E lamentava: “As pessoas falam cada vez pior, porque lêem pouco e vêem muita televisão, e a sua linguagem é mínima”. A literatura “é um contrapoder”, mas está há muito a ser devastada pela televisão.
Como leitor compulsivo e amante da literatura, só posso regozijar-me com a promoção de obras de escritores portugueses em eventos tão importantes como a Feira do Livro de Frankfurt e o Salão do Livro de Paris. Receio, porém, que o seu efeito na promoção do livro e da leitura seja ainda mais conjuntural e efémero do que aquele que resultou da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago. Continuam a ser poucos os portugueses que lêem jornais e ainda menos os que lêem bons livros. Infelizmente, não é um problema que afecte apenas os portugueses. Os baixíssimos índices de leitura afectam, por igual, tanto os europeus como os americanos. O nível da iliteracia, por esse mundo fora, é verdadeiramente aterrador.
O problema é de civilização. A cultura audiovisual – que é passiva, massificadora, minimalista, uniformizadora, acrítica, redutora e utilitarista – está a escorraçar a cultura escrita – que é activa, reclama um esforço individual, incita à curiosidade, convida ao saber e estimula a sensibilidade, a reflexão e a crítica. Infelizmente, na “sociedade de inovação e conhecimento” que querem impingir–nos, a televisão e o computador são essenciais, mas a literatura é dispensável – a não ser como indústria e “álibi decorativo” que pode produzir lucros, e não propriamente cultura. E, no entanto, a língua, a literatura e a cultura são os fundamentos da nossa própria identidade individual e colectiva, são os esteios do pensamento, da sensibilidade, do espírito crítico, da consciência histórica e das nossas atitudes perante a vida. A menos que queiram fazer de nós homens-robôs em vez de cidadãos…
Num livro arrasador publicado em 2000 (Homo Videns – televisão e pós-pensamento), Giovanni Sartori alertava: cada vez mais, a educação especializa e fecha–nos em competências específicas; a televisão empobrece drasticamente a informação e a formação dos cidadãos; o mundo por imagens que nos é proposto pelo “viodeover” desactiva a nossa capacidade de abstracção e, com ela, a nossa capacidade de compreender os problemas e de os enfrentar racionalmente; aquilo que nos espera é uma “solidão electrónica” habitada por “doentes de vazio”, dominados pelo vídeo e pela internet. Temos de reagir “com” a escola e “na” escola – salienta Sartori. Infelizmente, a tendência é para encher as salas de aula com televisores e word processors. Porque as pobres crianças têm de ser “entretidas”. Só que, dessa forma, nem sequer se ensina a escrever e o ler é marginalizado o mais possível. A escola reforça a “videocriança”, em vez de a contrariar.
Giovanni Sartori constata que o pós- -pensamento está a triunfar e que a ignorância se tornou quase uma virtude. Todavia, não desespera e ainda acredita que é possível fazer retroceder a “incapacidade de pensar” e regressar ao “pensamento, condição de sobrevivência da civilização ocidental”. Mas avisa: “Certamente não haverá esse regresso se não soubermos defender até ao fim a leitura, o livro e, em suma, a cultura escrita”. Reabilitar a cultura escrita não é nostalgia nem retrocesso. É um combate de vanguarda.
3. Hoje devo confessar que foram as leituras nocturnas e em férias que me ajudaram a suportar as obrigações políticas e administrativas que assumi voluntariamente depois do 25 de Abril, fundamentalmente entre 1974 e 1996. Entretanto pus-me a organizar um livro com vários “retratos literários”, outros tantos “retratos políticos” e mais de três dezenas de “photomatons” que fui escrevendo, sobretudo dedicados a escritores, mas também a figuras históricas. As primeiras versões de vários textos que constam desse livro, sobretudo alguns retratos, foram escritas durante esse período de intensa actividade política. Só depois de 1996 é que me entreguei aos regabofes da escrita e da leitura, para mobilar o tempo que me resta.
Os retratos e photomatons que preenchem esse livro foram escritos e reescritos, quase todos, em momentos em que a prosa me saiu – e fluiu – sem grandes aflições, entrelaçando-se, tanto quanto possível e salvo o devido respeito, com a prosa e a poesia de alguns dos retratados, sobretudo escritores, mas também alguns políticos, que têm em comum o facto de já não pertencerem ao mundo dos vivos. Recuperei do baú onde jazem mais de mil crónicas que escrevi, as mais de três dezenas de photomatons que preenchem a terceira parte do livro.
Há personagens das quais falo com admiração e afecto, outras com alguma distanciação e respeito, outras ainda com bastante ironia e algum sarcasmo. Aos leitores caberia identificar quem são os génios, as figuras e os figurões. Mas nenhum dos editores que contactei se deu sequer ao trabalho de folhear o livro. A “censura” e o “nojo” políticos abateram-se sobre mim como um cutelo.
Este texto baseia-se no prólogo que escrevi para o meu livro dedicado aos retratos e photomatons de alguns “GÉNIOS, FIGURAS E FiGURÕES», cuja publicação foi recusada por algumas editoras.
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990