Pelo regresso da censura, pelo menos ao Diário da República


O direito a não saber é um direito fundamental. A ignorância da lei, mesmo dos direitos fundamentais, não aproveita ao prevaricador.


No tempo dos canais televisivos ditos de informação, funcionando em modo 24/7, da internet omnipresente, agrafada ao polegar, só teclisticamente ainda oponível, de cada cidadão, ninguém se pode queixar da falta de informação. Já os excessos informativos são muito de recear.

Os perigos da palavra multiplicaram–se com a invenção da imprensa e ficaram descontrolados com as novas tecnologias. A origem deste mal há muito que foi denunciada: Prophana autem et vaniloquia devita, multum enim proficiunt ad impietatem: et sermo eorum ut cancer serpit (2 Tim 2: 16-17). Traduzindo livremente para vulgar: “O que os olhos não vêem, o coração não sente”, poupe-se na palavra a propagação do mal.

Há que retomar os cuidados que em tempos o Estado prodigalizou aos cidadãos, protegendo-os dos excessos informativos. E como a virtude deve começar em casa, o Estado deve dar o exemplo e mitigar os perigos inerentes à existência do único jornal diário de propriedade pública e de expansão nacional.

Um sentido mínimo do decoro exige a censura dos actos publicados no Diário da República relativos a nomeações, subsidiações, promoções, contratações, aprovações, isenções e outros actos do Governo susceptíveis de perturbar a paz pública e a sã convivência entre os portugueses, qualquer que seja o grau de parentesco. Esta cautela deve ser exercida, pelo menos, nos seis meses seguintes à tomada de posse do Governo e vicissitudes supervenientes, conhecidas comummente como “remodelações”, e também nos seis meses anteriores a qualquer acto eleitoral. A boa aplicação deste princípio preventivo obriga à sua retroactividade, tarjando-se de negro publicações semelhantes no jornal oficial levadas a cabo por anteriores Governos da iii República. Só assim será respeitado o princípio da igualdade e se evitará o espectáculo desagradável, oferecido por actuais e anteriores titulares de órgãos de soberania, dos que invocam o tu quoque depois de aturadas leituras do Diário da República.

Claro que a regulamentação deste utilíssimo serviço de censura não será, em coerência, objecto de publicação no Diário da República, retomando as boas práticas da ii República. Pela mesma ordem de razões, não deverão ser publicadas as nomeações destinadas a prover os respectivos serviços.

A menos boa compreensão, por parte da Comissão Nacional de Eleições, de quais sejam as competências que deve exercer levou-a autorizar a publicação do Diário da República nos meses anteriores aos actos eleitorais. Ainda vai a tempo de emendar a mão. Pode ser hoje.

A censura não se confunde com nem se substitui ao segredo de Estado, como atesta de forma exemplar a verdadeira e triste história que se recorda em seguida. “Este despacho tem carácter reservado, devendo ser comunicado, para cumprimento, à Inspecção-Geral de Finanças, ao Fundo de Abastecimento, à Direcção-Geral de Energia e à Petrogal, não se destinando a publicação”. Não obstante o cuidado posto na redacção pelo decisor de antanho, o despacho acabou publicado na ii série do Diário da República de 10 de Fevereiro de 1983. Assim se prova que o segredo convida à violação, não conseguindo competir com a censura no impedir a perversão da opinião pública. Já a censura tutela de forma adequada o direito fundamental a não saber (the right not to know), ao mesmo tempo que concretiza o não menos fundamental direito a ser deixado em paz (the right to be let alone).

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990