Os tribunais criminais especiais


É uma proposta que não faz qualquer sentido, até porque as decisões que indignaram o país foram proferidas por tribunais de recurso, pelo que continuariam a ser proferidas mesmo que existisse esse tribunal especial em primeira instância.


Portugal recebeu na semana passada a visita do presidente da Catalunha, Quim Torra, que afirmou que Portugal “é uma terra de liberdade que entende a luta pela liberdade”. Efectivamente, em Portugal não seria possível assistir-se a um julgamento como aquele que está a decorrer na Audiência Nacional em Madrid, em que os anteriores governantes da Catalunha estão a responder por crimes políticos. Tal sucede por uma razão singela: um tribunal como a Audiência Nacional, criado em 1977 em substituição do Tribunal de Ordem Pública do franquismo, e que julga apenas certos crimes mais graves, não seria admissível em Portugal. Isto porque a Constituição portuguesa proíbe, no seu artigo 209.o, n.o 4, a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes.

A razão para a existência dessa norma na nossa Constituição baseia-se na experiência dos tribunais plenários da ditadura portuguesa, criados para julgamento dos crimes políticos, em que as penas eram decididas pela polícia política, que por vezes chegava a entregar o processo com as sentenças já escritas. Os presos políticos submetidos a esses tribunais podiam ser submetidos a prisão, buscas sem mandado, tortura e espancamento, com a total indiferença dos juízes, mesmo com os inúmeros protestos dos seus advogados, que corajosamente os defendiam, apesar de a lei limitar consideravelmente as possibilidades de defesa.

Um desses advogados foi precisamente Mário Soares, que sempre se revoltou contra a existência desses tribunais e nunca admitiu que o país recorresse aos mesmos, ainda que se tratasse do julgamento dos responsáveis pela ditadura. É assim que no comício de 1 de Maio de 1974, em pleno período de euforia revolucionária, Mário Soares proclama sensatamente que os altos responsáveis pela ditadura “têm de ser julgados, não por tribunais plenários – nós não somos desses –, têm que ser julgados por um tribunal comum, com todas as garantias de defesa”. E, efectivamente, a experiência do julgamento em tribunal comum tem provado ser a única forma de garantir um julgamento justo, especialmente quando estejam em causa crimes especialmente graves que indignem a opinião pública. Numa situação paralela ao independentismo catalão, em 1991, o líder da FLA, José de Almeida, foi julgado no Tribunal da Boa Hora pelo crime de traição à pátria, por promover a independência dos Açores, tendo sido absolvido por se considerar que num Estado democrático ninguém pode ser condenado apenas pelas suas opiniões.

Apesar das virtudes dessa regra constitucional, a verdade é que a mesma tem sido actualmente questionada devido à indignação da opinião pública com os sucessivos casos de violência doméstica, tendo sido por isso proposta a criação de um tribunal especial para essa categoria de crime. É uma proposta que não faz qualquer sentido, até porque as decisões que indignaram o país foram proferidas por tribunais de recurso, pelo que continuariam a ser proferidas mesmo que existisse esse tribunal especial em primeira instância. A menos que a ideia fosse também excluir a possibilidade de recurso das decisões desse tribunal especial, à semelhança do que sucedia com os tribunais plenários, que não admitiam o recurso, mas apenas a reclamação para o próprio plenário. É manifesto que tal violaria os mais elementares direitos de defesa.

Foi por isso com perplexidade que assistimos às declarações do bastonário da Ordem dos Advogados a admitir que se pode “justificar alterar a Constituição por causa da violência doméstica”. É de uma enorme ligeireza defender alterações à lei, e ainda mais à Constituição, por causa de casos individuais, por mais dramáticos que esses casos sejam.

Há uns anos foram descobertas provas que apontavam para um atentado na queda do avião que transportava Sá Carneiro, em Camarate. Na altura salientou-se que, apesar da descoberta dessas provas, seria impossível fazer o julgamento desse caso, porque o crime estaria à beira de prescrever. Sugeriu-se então que se fizesse uma lei para dilatar o prazo de prescrição. Chamou-se a atenção para que tal não resolveria o problema, face à proibição constitucional da aplicação retroactiva das leis penais, pelo que a mesma não se aplicaria a esse caso. Propôs-se então alterar a Constituição para excluir o terrorismo dessa regra. Tal só não aconteceu porque alguém lembrou que seria ainda necessário que Portugal se desvinculasse da Declaração Universal dos Direitos Humanos…

Em Dezembro de 2006 foi colocada uma lápide no Tribunal da Boa Hora a recordar como eram os tribunais plenários, para que essa memória não ficasse esquecida. Parece que bastaram 13 anos para que em Portugal se esteja a esquecer a razão principal por que existe o artigo 209.o, n.o 4 da nossa Constituição.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990