Ben White. Palestinianos “vivem receosos de um exército de ocupação”

Ben White. Palestinianos “vivem receosos de um exército de ocupação”


O autor britânico e ativista do BDS garante que “as políticas israelitas adequam-se à definição de apartheid”


Há décadas que os palestinianos são vítimas de um regime de apartheid israelita, sob uma “ocupação militar” que os expulsa das suas terras e controla os aspetos mais básicos da sua vida quotidiana. Quem o diz é Ben White, autor de quatro livros sobre o conflito Israel-Palestina e ativista do BDS (Boycott, Divestment, Sanctions). Esta campanha internacional de boicote económico, diplomático e cultural a Israel já apelou para que Conan Osíris não vá ao festival da Eurovisão em Telavive. Os apelos chegaram de todo o mundo, até pela voz de Roger Waters. O i sentou-se à mesa com White que, entre goles de cerveja, nos falou das suas visitas à Palestina e descreveu os meandros da segregação israelita.

A situação em Israel é comparável ao apartheid sul-africano?

As políticas israelitas adequam-se à definição de apartheid, tal como é estabelecida na lei internacional. O sistema de apartheid de Israel tem semelhanças e diferenças com o caso histórico sul-africano, mas certamente que encaixa na definição existente, independentemente da analogia.

Pode descrever o que acontece em Israel?

É frequentemente salientado que os cidadãos palestinianos em Israel podem votar no Knesset [Parlamento israelita], têm direitos eleitorais e tudo o mais. Mas isso parece-me um mínimo absoluto. Não me parece grande ajuda que lhes seja permitido votar no país no qual são cidadãos. De facto, existe discriminação em todos os aspetos da vida quotidiana. Muitas comunidades são-lhes vedadas através dos comités de admissão, que escrutinam os potenciais residentes de muitas zonas. Muitos sofrem perante planeamentos de habitação ultrapassados que não permitem às comunidades crescer naturalmente. E estamos apenas a falar apenas dos palestinianos cidadãos israelitas, não dos milhões que não têm direito de regressar às suas terras. E há os problemas relacionados com orçamentos para a educação, restrições à expressão política e cultural, leis segregadoras… Por exemplo, a legislação proíbe que um cidadão israelita que case com uma palestiniana da Cisjordânia a leve para viver consigo dentro de Israel. E volto a reforçar: isto é só para os palestinianos que têm os benefícios da cidadania. Para palestinianos em Jerusalém Oriental, que vivem na Cisjordânia ou na Faixa de Gaza, sob um regime de ocupação militar, a situação torna-se mais e mais sombria, com menos recursos. Além do mais, Israel desfruta de poderes soberanos na Cisjordânia sem que os palestinianos tenham o direito à cidadania. Aí, enfrentam discriminação em relação ao uso de terras, habitação, recursos naturais como a água, liberdade de deslocação. Toda a sua vida quotidiana é controlada e segregada. Todas estas coisas foram amplamente documentadas pelos próprios palestinianos, por organizações de direitos humanos israelitas e organizações internacionais.

Disse recentemente existirem diferenças entre o apartheid sul-africano e israelita, referindo que a África do Sul pretendia explorar a mão-de-obra das populações segregadas, enquanto na Palestina o objetivo é a expulsão. No entanto, dezenas de milhares de palestinianos atravessam muros todos os dias para fazer trabalhos pouco qualificados em Israel. Este dado económico faz parte da equação?

A diferença aí é que os palestinianos podem ser, e por vezes têm sido, excluídos da força de trabalho israelita. Quanto ao exemplo que deu, a maioria desses palestinianos trabalham na construção civil. Mas Israel abre e fecha essa torneira como medida punitiva, sem que faça muita diferença para a economia israelita. Essa é uma grande diferença. Israel vê esses tipos de trabalhos mais como maneira de manter “estabilidade” nos territórios ocupados na Cisjordânia. A ideia é que, se as pessoas tiverem empregos, é menos provável que se envolvam em atividade política. É uma ferramenta de recompensa ou castigo, mais do que um elemento essencial da economia.

A segregação de que fala é inerente à noção de um Estado judaico? Ou é algo que aconteceu ao longo do caminho?

Podemos fazer uma distinção entre um “Estado judaico em teoria” e o que as elites dominantes do “Estado judaico na prática” quiseram para os palestinianos. Mas para estabelecer a dominância de grupo numa terra onde já viviam outras pessoas, isso só poderia ser alcançado com coerção, violência e discriminação, como os próprios pioneiros sionistas sabiam. E certamente que, para manter um sistema que tem inscrito na sua lei e nas suas políticas o benefício dos judeus israelitas, isso acontece às custas dos palestinianos israelitas.

Qual foi o ponto de viragem? Em que momento é que a segregação se tornou lei e parte da atividade do Estado?

Nunca houve um momento, em toda a existência do Estado de Israel, em que não houve discriminação sistemática. Desde o próprio estabelecimento, que começou quando as forças israelitas estavam a expulsar palestinianos das suas casas e aldeias [o Nakba – a catástrofe]. De 1948 a 1966 houve, na prática, uma espécie de regime militar de lei marcial no que diz respeito a cidadãos palestinianos, E, claro, desde 1967, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram mantidas sob ocupação. Tudo isto faz parte inerente do Estado.

Referiu recentemente que o número de colonatos israelitas nas áreas ocupadas duplicou desde os acordos de Oslo. Porquê?

Todos os governos israelitas procuraram sempre a expansão dos colonatos. Fossem ou não governos apelidados de “esquerda” ou “moderados”, como o governo de [Yitzhak] Rabin. Digo apelidados porque, para os palestinianos, muitos aspetos da ocupação e discriminação continuaram. Tal como quando governam executivos explícita e cruamente de direita, como o do atual primeiro-ministro, [Benjamin] Netanyahu. No entanto, o processo de Oslo contribuiu de certa maneira para a impunidade israelita, porque o processo de paz criou a ideia de que, em algum momento, um Estado palestiniano seria estabelecido. Mas é como uma miragem, algo hipotético no futuro. Enquanto esta visão toma o seu lugar, enquanto a miragem está ao longe, no horizonte, Israel está a fazer tudo o que pode para evitar que aconteça. 

De que maneira este conflito entre Israel e a Palestina afeta a estabilidade da região?

Pessoalmente, seria cuidadoso em não dar muita ênfase a esse ponto. Pode ser fácil, particularmente no chamado Ocidente, juntar todos os países do Médio Oriente quando, de facto, cada um deles tem histórias, políticas e condições muito específicas, bem como desafios atuais, problemas e oportunidades. Mas claro que este conflito os afeta. Por exemplo, Israel insiste em manter a dominância e superioridade militar sobre os seus vizinhos e vê qualquer potencial rival como algo que deve resolver, de uma maneira ou de outra. Claro que, historicamente, as vitórias militares israelitas contra o nacionalismo árabe são vistas pelo “Ocidente” como úteis, de uma perspetiva geopolítica. O motivo pelo qual é preciso precaução quanto ao assunto é porque a estabilidade da região está muito mais ligada a outros fatores locais. Acrescento que, em geral, os povos árabes ou as populações do Médio Oriente compreenderam há muito o que está a acontecer aos palestinianos, compreenderam de um modo que as pessoas na Europa ocidental não conseguiram. 

A manutenção do regime israelita seria possível sem apoio ou conivência internacional?

Não. Definitivamente, não. Desde os primeiros dias de apoio britânico ao movimento sionista, passando pela ajuda militar norte-americana e proteção nas organizações internacionais. E incluindo também o papel dos aliados dos Estados Unidos na região. Esses apoios são um fator crítico para a capacidade de Israel de manter o statu quo e enfrentar potenciais ameaças, quer sejam ameaças militares ou “ameaças” na comunidade internacional. 

Como pode a comunidade internacional lidar com um Estado em recorrente violação da lei internacional?

Bem, a resposta mais simples é responsabilizar o infrator. Claro que é um pouco mais complicado do que isso. A lei internacional, como qualquer tipo de lei.é tão boa quanto os seus mecanismos de aplicação. E Israel não está de todo sozinho no que toca a violar normas internacionais e sair impune. Mas, no que toca especificamente ao Estado israelita, há alguns passos básicos que a maioria dos governos podem tomar: embargos à venda de armas, a produtos oriundos de colonatos na Cisjordânia, bem como os tipos de acordos e tratados em que é permitido a Israel participar. São passos muito básicos para responsabilizar pelas violações de direitos humanos. Têm de ser tomados se qualquer Estado quer ser tomado a sério como defensor de valores internacionais. 

Como vê a posição dos países europeus quanto à situação em Israel e na Palestina? 

A maioria dos governos europeus têm, teoricamente, uma posição sólida quanto ao assunto: apoiam a lei internacional e a criação de um Estado palestiniano. O problema é que não há apetite político para garantir uma responsabilização significativa. Uma coisa é dizer que se consideram os colonatos ilegais, mas para isso ter efeito é preciso haver garra para o defender, para que haja alguma consequência para essas ações.

Numa nota mais pessoal, como foi o seu processo de aproximação à causa palestiniana? 

Quando tinha 17 anos aconteceu a segunda Intifada, em setembro de 2000. Foi muito chocante para mim ler sobre o assunto nos jornais em Inglaterra nos primeiros meses. O desequilíbrio de poder era claro, e comecei um lento processo de ler sobre o contexto. O momento crítico seguinte foi a minha primeira visita à Palestina, em 2003. Ver a situação com os meus próprios olhos, ver a realidade quotidiana das pessoas. Não foi nada de particularmente dramático, pois na maior parte do tempo não é como uma zona de guerra. Mas as humilhações no dia-a-dia, a realidade da ocupação, as histórias que ouvi… Ouvi muito. Voltei a querer escrever sobre o assunto, sempre quis ser escritor ou jornalista. Queria partilhar as histórias das pessoas que conheci e comecei a partir daí. 

Que detalhes o marcaram mais nas suas visitas à Palestina?

[Suspiro] Para alguém com 20 anos, de Inglaterra, com uma boa educação, estar subitamente perante pessoas que vivem a sua vida receosas de um exército de ocupação, que têm de ter em conta uma governação estrangeira para fazer os planos mais básicos para as suas vidas… pessoas que não controlam a maior parte das coisas que tomamos como garantidas. Fiquei arrasado. Já estive em dezenas de países, mas a situação na Palestina não tem nada a ver com qualquer outra coisa que tenha visto. Não é que seja a pior coisa que está a acontecer, mas é um tipo muito particular de injustiça colonial e de ocupação militar.

Sente que a sua atividade política, crítica do Estado israelita, prejudicou a sua carreira profissional?

É justo dizer que fechou algumas portas, mas também abriu outras. Não penso muito sobre o assunto nesses termos. Uma das razões por que decidi escrever sobre isto foi, tendo estado lá, aperceber–me de que não queria passar anos a escrever sobre assuntos que não me interessavam. Não que haja algo de errado nessa trajetória, mas pensei: se conseguir, quero escrever sobre este assunto e quero explicá-lo às pessoas. Até me conseguir estabelecer trabalhei durante anos em mais de um emprego para conseguir viver. É claro que o género de coisas sobre as quais escrevo excluíram-me de alguns espaços. Por outro lado, esses não são o género de espaços em que queira estar. 

Muitas vezes, a crítica ao sionismo é equiparada ao ódio antissemita. Como lida com essas acusações?

Pessoalmente, sempre procurei cingir-me aos factos. Sei que soa simplista, mas sempre acreditei que ter uma abordagem baseada em factos, “o que está a acontecer”, “isto significa isto”, é a melhor defesa contra qualquer tipo de acusações. É claro que não as impede, mas significa que me sinto confiante e posso ignorá-las. Sei que não é uma acusação pessoal, é uma tentativa de defender o statu quo. É uma situação do tipo “não mates o mensageiro”. Estou só a relatar algo que muitas pessoas não querem que seja relatado. Lembro-me de num caso, quando escrevi pela primeira vez no jornal da universidade sobre a Palestina, receber essas acusações. E enquanto almoçava com um colega palestiniano, ele disse-me algo que não esqueço: “Como é que pode ser antissemita eu resistir à minha expropriação e tu teres solidariedade comigo?”

Como ativista do BDS, sente que existem tentativas em curso para legitimar culturalmente o Estado de Israel? 

Sim, claro. Israel está numa posição engraçada. Tem grandes ligações económicas, políticas, militares e entre serviços secretos com muitos países ocidentais, mas sabe que entre o público ocidental tem mais dificuldade em convencer as pessoas de que a sua conduta é justa ou apropriada. Em parte das suas batalhas de propaganda, a cultura tem um papel importante por ser vista como uma maneira suave de se expor às pessoas, de dar uma imagem mais amistosa. Seja através de gastronomia, da música ou da vida noturna em Telavive, tudo isto é uma grande parte do chamado rebranding de Israel.

Colocaria o concurso da Eurovisão, em Telavive, nessa ótica? 

Sim, pelo menos em termos daquilo que Israel espera que seja o seu impacto. Se acabará por funcionar ou não é outra questão. Por vezes, essas tentativas podem fazer ricochete, se providenciarem uma oportunidade para protestar e mobilizar. 

Pensa que alguns dos artistas que estarão em Telavive vão protestar? 

É certamente possível. Eu encorajaria os artistas a não participar de todo, ao invés de participar e protestar, porque considero o boicote a forma mais poderosa de expressão. Mas sim, também é possível que algumas pessoas apareçam e se façam ouvir. 

Há pressão das autoridades israelitas contra o BDS?

Em geral? Sem dúvida. Israel gasta bastante dinheiro e energia para visar e minar o BDS, de maneiras diferentes, quer a conduzir atividades pró-israelitas em resposta quer a promover iniciativas legais contra nós, difamando e prejudicando a reputação de ativistas do BDS, com sabotagens online, esse género de coisas. Há coisas a acontecer.

Recorda-se de algum caso concreto no qual tenha sido visado, por exemplo?

Bem, pela sua própria natureza, é difícil imputar responsabilidades nesse género de ofensivas encobertas. Na maior parte dos casos é do interesse do Estado de Israel tentar esconder o seu envolvimento direto. Mas sabemos, por exemplo, que as autoridades israelitas querem encorajar esforços legislativos para criminalizar o BDS. Sabemos que o governo israelita financia iniciativas para ganhar influência em espaços como universidades. Mas o Estado de Israel raramente reclama a autoria destas ações.

O BDS é acusado de prejudicar o conjunto da sociedade israelita para responsabilizar o Estado. Como responde a essa crítica?

Antes de mais, o objetivo do BDS é criar pressão sobre um statu quo injusto. As instituições israelitas criaram e beneficiaram de colonatos e de muitos outros aspetos do sistema de apartheid. Queremos desafiar a cumplicidade e o silêncio da sociedade israelita, uma cumplicidade que se estende das agências governamentais às universidades, às empresas produtoras de armamento, etc. 

O serviço militar é obrigatório em Israel. Isso pode ter aumentado a lealdade da sociedade para com o Estado?

Começa mais cedo que isso. Desde os primeiros estágios de educação que o exército é uma referência. É consistentemente a instituição que merece mais confiança entre os judeus israelitas, apesar de nem todos os judeus israelitas cumprirem o serviço obrigatório, pelas mais diferentes razões, mas tem um papel importante na criação de um sentimento de unidade. Todos os israelitas conhecem alguém que está no exército. Isso é uma ferramenta poderosa para o Estado moldar a opinião pública. 

Como se altera essa realidade?

No terreno? Muito devagar. Para mim, é aí que entra o papel do boicote, porque a pressão externa é essencial para conseguir transformações significativas. 

O BDS conta com a participação de israelitas, tanto judeus como palestinianos?

Temos uma participação ativa de palestinianos. Claro que para eles é diferente, porque estão de facto a viver dentro do sistema. Existe também um pequeno número de judeus israelitas que apoiam o boicote a partir de dentro. 

Vê semelhanças entre o BDS e o boicote à África do Sul durante o apartheid?

Há semelhanças no sentido de procurar ser um movimento popular de massas a nível internacional. E também por a causa palestiniana se estar a tornar numa causa progressista natural, padrão para pessoas à esquerda, causa a que as pessoas se querem aliar e que querem apoiar, como foi no caso da África do Sul. Esperemos que outra semelhança seja o impacto.

Já se sentem os impactos?

Sim, sem dúvida. Um dos efeitos é a mudança de discurso quanto à Palestina, conseguir escapar a uma falsa simetria entre dois lados equiparáveis, discurso que existiu durante o processo de paz e que conteve até alguns problemas da parte dos palestinianos. A campanha do BDS mudou o discurso para um de crítica ao apartheid, ocupação e colonialismo. Houve também casos específicos de empresas que recusaram participar em atividades nos territórios ocupados, artistas que cancelaram eventos, etc. Este é um processo que cresce ao longo do tempo. Quando tomado nas mãos e cultivado por um movimento de juventude palestiniana rejuvenescido, poderá ter o seu maior impacto.

Os movimentos da juventude palestiniana estão a ser rejuvenescidos?

Por agora, os efeitos positivos são limitados. Existem movimentos e ações da juventude a vários níveis, há razões para se estar otimista. Mas o cenário global na Palestina continua a ser cinzento. Mantém-se um contexto de divisão e estagnação. 

Refere-se às divisões entre a Fatah e o Hamas? Continua a ser um problema?

É um grande problema. De muitas maneiras diferentes: pela maneira como desgasta a energia das pessoas no terreno, pelo facto de dar a Israel uma desculpa extra. Também pelo modo como é sintomático de outros problemas, não é onde o problema começou. Está relacionado com questões maiores, como o que fazer com os acordos de Oslo, que não produziram um Estado palestiniano mas, em vez disso, uma entidade autónoma permanente e etérea.

Israel terá eleições em abril. A situação dos palestinianos pode mudar?

Não.

Vê diferenças entre os dois principais candidatos, Netanyahu e o centrista Benny Gantz? 

Não. É possível que um novo governo de Netanyahu possa levar à anexação completa da Cisjordânia e da Faixa de Gaza mas, no geral, oferecem mais do mesmo. 

Como vê a coligação entre Netanyahu e partidos de extrema-direita? 

Essa coligação é um reflexo infeliz da direção da viagem que Israel segue. E poderá aprofundar ainda mais esse rumo. 

É possível acabar com a discriminação dos palestinianos no enquadramento legal israelita?

Podem alterar-se algumas coisas e fazer pequenos ajustes positivos, mas as estruturas têm de ser completamente reformuladas e descolonizadas, de forma que se torne um país com um Estado de todos os seus cidadãos.