É cada vez mais difícil determinar o verdadeiro vencedor das guerras contemporâneas. Tomando como exemplo a guerra dita “civil” na Síria nem sequer é fácil elencar a lista dos vencidos. Aparentemente o fim do Califado de Al Bagdadi, ou pelo menos o fim da expressão territorial do Califado, permitiria identificar um derrotado. Não necessariamente: os combatentes do Daesh não foram todos mortos ou feitos prisioneiros. Há mais de 15 000 combatentes “desaparecidos”, escondidos por entre as populações civis e os fluxos de refugiados. Muitos integrarão células adormecidas capazes de manter o Médio Oriente a ferro e fogo, funcionando como rastilho para desencadear inúmeros conflitos latentes. Mas nem todos os combatentes desaparecidos ficarão por lá. Muitos são combatentes nascidos no Ocidente (França, Bélgica, Holanda, Reino Unido, Espanha, Itália e sim, também em Portugal) e tenderão a regressar aos países de origem munidos de treino militar e experiência de combate, radicalizados e disponíveis para a prática de actos de terrorismo low cost. O Verão europeu arrisca-se a ser problemático.
Para além dos combatentes do Daesh desaparecidos, há os combatentes presos pelas inúmeras milícias que participaram na guerra civil síria. Não há estruturas locais que se possam substituir ao desaparecimento dos Estados iraquiano (fruto da invasão pelos EUA) ou sírio (fruto da guerra civil e do excesso de poder dos “amigos” que vieram em socorro de Bashar Al Assad: Irão e Rússia). Na ausência de capacidade local para julgar os prisioneiros e de vontade internacional para os levar a tribunal, muitos acabarão amnistiados de facto e disponíveis para integrar as sleeper cells.
Há muitos candidatos a integrar a lista dos candidatos a vencedores da guerra civil síria: Bashar Al Assad, Irão, Rússia, Turquia, curdos. Alguns destes candidatos a vencedores estão já a preparar a próxima guerra, com destaque para a possibilidade de a Turquia querer alargar a zona tampão na fronteira com a Síria ao mesmo tempo que expulsa os curdos que venceram o Daesh. Qualquer tentativa de federação dos curdos a partir do Curdistão iraquiano fará com que Ankara se sinta obrigada a destruir pela força a possibilidade de um Estado curdo independente. Ankara, enquanto membro da NATO, mantém viva a ameaça de invocação da cláusula de legítima defesa colectiva ao mesmo tempo que aprofunda a cooperação com Moscovo. A Administração Trump irá aprender à sua custa a mesma lição dada pela guerra civil síria a Obama: o não envolvimento directo no conflito não é uma garantia de que o mesmo se resolva, muito menos a contento dos desejos de quem ocupa a Casa Branca.
A sobrevivência é em si uma vitória. Sob esse ponto de vista os Al Assad continuam vivos e em Damasco. Mas deixaram de controlar directamente o Estado e passaram a depender dos favores militares de dois Estados estrangeiros, convidados a intervir no conflito. Moscovo contentar-se-á com maior liberdade de utilização da base naval e das bases aéreas mas Teerão tenderá, como fez no Líbano e no Iraque, a participar no exercício do poder usando o Hezbollah ou uma versão enxertada localmente.
O aumento do poder xiita naquilo que foi o Califado (norte da Síria e oeste do Iraque) provocará uma reacção sunita. Ressurgirão rapidamente donativos e armas a alimentar as diversas milícias locais de inspiração sunita.
O Califado desapareceu mas multiplicaram-se os candidatos a Califa.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990