As histórias das Mil e Uma Noites tornaram-se tão perenes e indeléveis que vêm sendo contrafeitas em todas as épocas e lugares. E agora também, em versão caricatural, na Lusitânia.
Quando o Sultão Shariar descobriu a traição da esposa, mandou-a matar e ao amante. E, forma expedita de evitar novas traições, decidiu desposar todas as noites uma nova donzela que seria executada na manhã seguinte, cometendo ao Grão-Vizir o rigoroso cumprimento destas suas ordens.
Num ato de enorme coragem, mas convencida de que poderia pôr cobro a tamanha impiedade, a filha do Grão-Vizir, Sherazade, obrigou o pai a apresentá-la ao Sultão como esposa. Na noite nupcial, instruiu a sua pequena irmã, Dinarzade, para chorar bem alto logo que a visse entrar na alcova real. Explicou Sherazade ao Sultão que o choro era da irmã, a quem sempre contava uma história para adormecer.
“Já que amanhã estarei morta, peço- -lhe que a deixe entrar para que eu a entretenha pela última vez”, pediu Sherazade. Muito contrariado, o Sultão acedeu.
E Sherazade começou uma história, outra e outra lhe encadeando, e já chegava o alvorecer e a hora da execução quando a narrativa atingia o seu clímax. Curioso por saber o fim da história, ordenou o Sultão que Sherazade continuasse na noite seguinte. E assim passaram mil e uma noites, até que…
Bom, se o leitor não sabe, a punição é ir até ao fim do artigo…
Certo é que, nas Mil e Uma Noites árabes, o contador das histórias era Sherazade, e o Sultão o ouvinte; mais verdadeiro é que, por cá, na originalidade lusitana, os ouvintes são os cidadãos e o contador das histórias é o Sultão. Não para salvar outrem, como Sherazade, mas para se salvar a si próprio.
Começou o Sultão por contar como descobriu a password de Ali Babá, graças ao canudo de marfim de Ali que lhe permitia ver tudo o que desejava, e abriu a caverna dos 40 ladrões, cheia de ouro e pedrarias, e como as foi atirando ao povo ouvinte, convertidas em fim da austeridade, reposição de rendimentos, crescimento económico e diminuição do tempo de trabalho para os servidores do palácio.
Depois narrou as esplendorosas conquistas proporcionadas pela lâmpada de Aladino, total sucesso nas escolas sultânicas, evaporação das listas de atendimento nos hospícios e mesmo, por dádiva da maçã de Ahmed, a cura de todas as enfermidades.
O tapete voador de Hoçaine conduzia-o ao lugar escolhido para novos prodígios sem que o estorvassem os obstáculos do caminho, à exceção natural dos fogos nas orlas das florestas, a cujas chamas o frágil veículo não poderia ser exposto.
Por vezes, algumas nuvens inquietavam o Sultão e os contos perdiam fluidez, quando a feiticeira Paribanu o bloqueava e até acorrentava às ideias vigentes no palácio à esquerda do seu. Mas logo recuperava, fazendo as vacas voar, mágica bem mais difícil do que o voo dos macacos das histórias de Sherazade.
E, se as vacas não voavam, bastava-lhe friccionar o anel de Aladino para convocar o anterior sultão e atribuir-lhe toda a culpa, embora ele já dormisse fora do palácio ia para 1560 noites.
E, neste entorpecimento, o povo suportava os maiores tributos de sempre, o sultanato endividava-se como nunca e o bazar ficava cada vez mais na cauda dos 28 bazares vizinhos.
Na milésima e uma noite, o sultão percebeu a ilusão em que Sherazade o metera e acabou com as histórias.
Por cá, há muito passaram as mil e uma noites, vamos nas mil e seiscentas, mas o sultão insiste nas narrações e o povo já mostra mal-estar na escuta, proclamando sucessivas recusas ao trabalho nos bazares, sinal de que a ilusão começa a desvanecer-se.
Tornaram-se então os contos mais mirabolantes, agora passes gratuitos nas malapostas do reino, mesmo que as diligências estejam paralisadas à míngua de manutenção ou por falta de cavalos e camelos, mortos de cansaço, longe dos caravançarais, bazares ou hospícios mais próximos.
Temerosa do fim, Sherazade chamou os três filhos entretanto gerados e pediu ao pai que os protegesse. Enternecido pela presença dos filhos, que não conhecia, e pelas histórias da mãe, o Sultão revogou a sua decisão. E a sultana, contadora de histórias, foi aclamada pelo povo.
Por cá, não me parece que os contadores de falsos enredos tenham fim tão amistoso. E, até para os proteger, há que substituí-los por novos vizires que tragam consigo saber firme, narrativa certa e sentido de serviço aos cidadãos.
Há uma petição no Parlamento nesse sentido. Queira o leitor apoiá-la.
“Legislar o poder de os cidadãos escolherem e elegerem os seus Deputados” < http://tinyurl.com/y46vd533 >.
Economista e gestor
Subscritor do “Manifesto: Por uma Democracia de Qualidade
pcardao@gmail.com