João Salaviza e Renée Nader Messora. “Antes de ser arte, o cinema é encontro de pessoas”

João Salaviza e Renée Nader Messora. “Antes de ser arte, o cinema é encontro de pessoas”


“Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” chega esta semana às salas. Paralelamente à estreia, no CIAJG, em Guimarães, os realizadores inauguram uma exposição: “Carõ – Multidões da Floresta”


Em vésperas de estreia de “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” é quase estranho olhar para eles aqui. Poderíamos ter usado um dos retratos que fizeram de si próprios na remota aldeia Krahô onde rodaram a sua primeira longa-metragem em conjunto. A Aldeia da Pedra Branca, no estado brasileiro de Tocantins, que Renée Nader Messora apresentou a João Salaviza depois de ter trabalhado como sua assistente em “Montanha” (2015), a primeira longa-metragem do premiado realizador português.

Assumindo o contraste com as imagens do filme que ocupam as páginas seguintes, quisemos fotografá-los cá, numa rua do Bairro Alto, em Lisboa, para lembrar que estão em Portugal (com Ropoxêt, um dos krahô que participaram no filme, que chegou ontem, de Pedra Branca). E que, para lá de apresentar o filme protagonizado por um jovem casal krahô, têm muito que dizer – e um tema para colocar na agenda. Será pois por aí começamos. 

Paralelamente à estreia do “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, o Doclisboa está a organizar com a Gulbenkian e vários centros de investigação a “Mostra Ameríndia: Percursos do Cinema Indígena no Brasil” [13 a 17 de março, no Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna, em 13 sessões com a presença de vários dos realizadores]. Que importância tem para vocês a programação deste ciclo, com todas as questões que pretende levantar, em Portugal, onde, com toda a responsabilidade histórica, a questão indígena não tem sido sequer tema ao longo de todos estes anos?

Renée Nader Messora – É incrível esse momento, porque quando a gente pensou na estreia do “Chuva”, pensou que não queria apenas uma estreia em sala, que o filme ficasse restrito a esse circuito que infelizmente hoje é muito pequeno, porque cada vez menos gente vai às salas de cinema, e a gente estava pensando em estratégias para fazer o filme circular por outros lugares e outros espaços. E quando a gente conversou com a Cíntia Gil, [diretora] do Doclisboa, e decidiu que era o Doclisboa que ia fazer a distribuição, ela comentou que estava sendo organizada essa mostra da Gulbenkian com um pessoal da universidade [três centros de investigação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa], que os filmes já estavam sendo escolhidos, a gente pensou que a estreia do “Chuva” próxima da mostra poderia ajudar uma coisa a contaminar a outra para um tempo em que se falasse do cinema ameríndio, de produções indígenas também. Porque o “Chuva” estar a circular é incrível, mas essa produção indígena atual brasileira é muito rica, tem uma diversidade enorme de olhares, de culturas e de contextos diferentes, porque tem filmes dos Ianomâmis aos Guarani, enfim, do Brasil inteiro, e é uma oportunidade rara. É muito difícil você se deparar com essas produções. 

Mesmo no Brasil, correto?

RNM – Mesmo no Brasil. Ficam restritas a um circuito muito pequeno. De repente, ver isso aqui em Portugal, com realizadores indígenas, porque estão vindo cinco realizadores de cinco filmes diferentes, e com o Ailton Krenak [líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro] falando, é um momento histórico. 

Lá, como tem muita produção já, como hoje tem muita gente fazendo filmes em aldeias, acabam se gerando pequenos circuitos de divulgação e, bem ou mal, a gente consegue se deparar com esses filmes em mostras no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Tem um circuito que comporta essas mostras, tem plataformas na internet, tem todo o trabalho que o Vídeo nas Aldeias [projeto de Vincet Carelli, que se dedica desde 1986 à formação de cineastas indígenas] vem fazendo com a divulgação desse material também na sua plataforma de vídeo on demand. Bem ou mal, a gente consegue. Aqui em Portugal, posso estar muito equivocada, mas parece-me que a antropologia voltada para o Brasil e para o mundo ameríndio é minúscula. Não tem gente falando disso aqui. É tudo sempre mais voltado ou para as cidades ou para África. 

Na verdade, toda a questão do colonialismo continua por debater de forma séria em Portugal.

João Salaviza – Exato.

RNM – Fiquei muito surpresa quando, com essa ideia de divulgar o filme noutros circuitos, fizemos umas sessões para professores, para ver como poderiam levar o filme para a sala de aula, e depois da sessão, numa conversa com os professores, o primeiro que levantou a mão perguntou: “Como eu posso apresentar esse filme para os meus alunos?” 

JS – Qual o enquadramento.

RNM – Achei isso muito louco. Como se o Brasil não tivesse sido uma colónia portuguesa, como se a história desses índios não estivesse de nenhuma maneira relacionada com a História de Portugal, então fiquei… sem saber nem por onde começar a responder a essa pergunta. Porque as duas coisas estão tão atreladas, é tão óbvio… Sou eu que tenho que chegar do Brasil para construir esse elo entre as duas coisas?

JS –  Como se os Krahô não fossem uns dos sobreviventes do genocídio que começa com a invasão dos portugueses e dos espanhóis. 

RNM – É uma negação da História. Se não se ensina isto nas escolas, do que é que estão falando?

JS – Discute-se agora na academia a pauta do pós-colonialismo, mas em Portugal nunca se chegou sequer a discutir o colonialismo. Não demos sequer ainda esse salto epistemológico de aceitar que o que Portugal fez foi um movimento de invasão e de colonização. 

Exato. Isso ficou exposto na forma como se discutiu, por exemplo, o nome dar ao chamado Museu das Descobertas. 

JS – Nos Estados Unidos, o movimento negro e o movimento indígena estão justamente a discutir a recusa a monumentos que homenageiam racistas, supremacistas brancos. Nos Estados Unidos e no mundo inteiro, com museus a começarem finalmente a ter abertura para discutir um reparo histórico através da devolução de peças aos povos que as produziram. Em Portugal, em 2019, constrói-se uma estátua do Padre António Vieira em que há três índios genéricos representados. Ou seja: de todas as facetas do Padre António Vieira, nomeadamente a faceta literária, vai buscar-se…

A faceta “civilizadora”. 

JS – O Padre António Vieira a “civilizar” os índios. Como é que vou andar por Lisboa com um krahô, o Ropoxêt [que faz uma das personagens no filme], que vai chegar hoje [para apresentar o filme com os realizadores – dia 14, no El Corte Inglés, dia 15, no Cinema Ideal, em Lisboa, dia 19 em Arcos de Valdevez, e dias 20 e 21 em Guimarães]? Como é que lhe vamos explicar o que é aquela estátua?

RNM – Porque é uma coisa recente, uma coisa que surge no calor das discussões do pós-colonialismo. Não é uma estátua que está lá há 50 anos e que se mantém porque não se pensou mais nisso. E a  verdade é que não pega tão mal porque, se pegasse tão mal mesmo, não estava lá a estátua, não é? Então, é verdade: existe mesmo um problema aqui.

Falando agora sobre o filme, faz sentido, João, falar no “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” como a longa que vem “depois de” “Montanha”? Ou são dois movimentos tão distintos que este filme deve ser visto como um novo começo?

JS – O “Arena”, rodado ainda em 2008, é o meu primeiro filme, mas comecei a fazer filmes ainda na Escola de Cinema, portanto já são quase 15 anos a filmar. E se há um momento de rutura no meu percurso enquanto realizador é este filme, que representa uma rutura não só temática ou em termos de espaço geográfico ou de território onde filmo…

Mas toda uma nova forma de fazer cinema. 

JS – Uma forma de repensar tudo o que implica fazer um filme, de repensar todas as dinâmicas que um filme implica em termos de relações de poder, de relações interculturais entre as pessoas que fazem o filme, dos próprios modos de produção. Até que ponto um certo modelo mais corporativista e mais hierarquizado de fazer um filme contamina ou não – eu acho que sim – as imagens e o resultado de um filme? Não é que estas preocupações não estivessem presentes antes. Mas, neste momento, consegui encontrar pela primeira vez, graças a este filme feito com a Renée…

(E graças à Renée, que te apresentou a aldeia.

JS – E graças à Renée) e com a participação de uma aldeia inteira que nos ajudou a fazer o filme e que de alguma forma nos dita as regras do jogo. Estas negociações e este jogo político que é feito entre quem filma e quem é filmado tem uma concretização estética que se vê em formas de cinema, mas as decisões estéticas são na verdade a consequência destas relações. O cinema é relação, acima de tudo. Antes de ser arte, antes de ser indústria, o cinema é relação: o encontro de pessoas, e às vezes pessoas de lugares muito diferentes, como é o caso deste filme. Portanto, é óbvio que daqui para a frente, mesmo que nalgum momento me apeteça filmar de uma outra forma ou resgatar algumas ideias de um cinema feito com mais gente, é impossível para mim ignorar que este filme é um ponto de rutura com imensa coisa. 

No “Russa”, que fizeste com o Ricardo Alves Jr. pelo meio deste no bairro do Aleixo, no Porto, percebia-se já esta transição.

JS – O “Russa” foi feito já durante a fase de pós-produção deste. 

O que acaba por fazer dele um filme posterior a este, apesar de ter estreado antes.

JS – É posterior. E o “Altas Cidades de Ossadas”, que foi feito antes mas já depois do “Montanha” é já um filme onde consigo encontrar, aqui, uma forma de filmar que me parece muito mais justa e que, não só enquanto modo de filmar, mas enquanto modo de vida e de conviver com as pessoas, me interessa muito mais. São processos muito mais colaborativos. O “Altas Cidades de Ossadas” é um filme feito entre mim e o Karlon: há uma autoria de um músico e um realizador de cinema que se juntam para fazer um filme que é quase um musical ou uma pequena opereta de rap a capella. O “Russa” é um filme correalizado com o Ricardo e com a participação de pessoas de uma comunidade que trazem as suas histórias e, de alguma forma, a câmara serve como veículo para fazer encubar aquelas imagens e aquelas histórias. O “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” é para mim o culminar de tudo isto e uma espécie de barómetro do que pode ser o cinema, mesmo feito em contextos urbanos e próximos daquilo que conhecemos. Sei que estes dois filmes que fiz aqui já foram altamente contaminados e questionados por esta experiência que tivemos na aldeia. Por acaso é a primeira vez que penso nisso desta forma. 

RNM –  O “Russa” é totalmente. 

JS – Tem a ver com a maneira de estar no lugar, de conhecer as pessoas. Mesmo não fazendo nenhum tipo de paralelismo temático entre eles, em termos de modos de produção, de modos de partilha e de modos de pensar, tem a ver com esta relação de quem é que dita as regras – e não ser só o realizador a ditar as regras. É a primeira vez que sinto que o processo é maioritariamente harmonioso, ou que quando não é harmonioso as discussões que tenho com as pessoas que estão a participar no filme são as discussões que me interessa ter e que me parece que são ricas e que contaminam o filme – e não discussões sobre como gerir uma equipa de 30 pessoas ou um orçamento internacional com pessoas do mundo inteiro, como foi o “Montanha”, por exemplo. Nesses filmes, havia um esforço enorme para conseguir libertar-me dessa armadura toda, numa espécie de jogo de bonecas russas em que eu era a boneca mais pequena que estava lá em baixo. Porque nessa altura o que eu queria já era a mesma coisa: fechar-me num quarto com os miúdos e filmá-los.

Quando chegaram à Aldeia da Pedra Branca, em Tocantins, para fazer um filme com os Krahô, chegaram já com alguma ideia do filme que queriam fazer?

RNM – Foi um processo bem longo. Primeiro, teve todo o meu trabalho [desde 2009] na aldeia, que tem a ver com cinema também mas que vai por outro lugar, mais relacionado com demandas da comunidade para gravação de sons e vídeos de histórias, ritos, mitos e cantigas que estavam se perdendo. Era um trabalho mais voltado para a valorização cultural e para a autodeterminação que não tinha a ver com essa ideia de cinema que foi o que aconteceu depois com o “Chuva”. Depois do “Montanha”, quando volto com o João, a ideia era passar lá um tempo, sem nada muito desenhado. Foi no momento em que a gente começou a ficar junto, o meu tempo era muito passado naquele lugar e então o João acabou indo também para passar um tempo e esvaziar um pouco do processo do “Montanha”. Naquele momento (não lembro direito se foi nessa primeira viagem do João ou se foi na segunda) tinha um menino desse grupo de jovens realizadores, que vieram de todos esses projetos e que acabaram formando um coletivo que continua produzindo algumas coisas, que estava passando por um processo parecido com o que o Ihjãc [o protagonista] vive. E isso foi o ponto de partida para o que acabou sendo o “Chuva”. Ele também estava sendo vítima de um feitiço na aldeia e achava que se ficasse na aldeia podia morrer, também tinha uma mulher e um filho pequeno, tinha a mesma idade que o Ihjãc tem no filme, uns 16 anos.

Que idade tem o Ihjãc?

RNM – Quando a gente filmou, tinha 14, 15.

JS – Foi pai aos 13.

Pergunto porque olhamos para eles, para ele e para a Kôtô, e parecem-nos adultos. 

JS – Porque lá eles são adultos. 

RNM – Toda a gente fala que o João continua filmando adolescentes, mas a verdade é que ele não é adolescente. Ele cumpre um papel de homem. Então, a história desse menino marcou a gente porque a gente acompanhou esse processo bem de perto, a história desse menino que foge para a cidade tentando encontrar a solução para um problema espiritual, passa um ano na cidade e depois percebe que é impossível, que não vai achar a solução ali e então volta para a aldeia. Quando a gente finalmente pensou que queria fazer um filme, foi esse o disparador. Depois o filme termina por vir de uma série de encontros: acho que é uma panela com a junção de várias histórias que a gente escutou e de pessoas que a gente encontrou. Finalmente, quando a gente decide que o Ihjãc vai ser o protagonista, ele traz também todas as suas relações, porque as relações que a gente filma são todas reais: ele é mesmo marido da Kôtô, tem aquele filho e a mãe. A única diferença é que o pai dele está vivo, não morreu. A ficção é toda construída com uma base de realidade muito forte, então essas camadas vão se acomodando. 

Nessa fuga da aldeia, nessa tentativa de sair dali e depois impossibilidade de integração na cidade, encontramos também um retrato de uma geração mais nova à procura de um novo lugar entre dois mundos.

RNM – O Ailton Krenak fala uma coisa que já repeti muitas vezes e que acho que sempre vale a pena a gente lembrar: os indígenas são ameaçados desde sempre. O fim do mundo deles já passou há muito tempo e passou justamente quando chegaram os portugueses no Brasil. Desde então, eles vêm resistindo, e essa resistência vai ganhando novas formas. O Ihjãc, sinto que ele é um menino entre mundos.

Quando falas no Ihjãc, falas nele mesmo ou na personagem?

RNM – Nos dois. Falo na personagem, mas a personagem só existe porque existe o Ihjãc. 

E dizias que o vês entre dois mundos.

RNM – Entre todas essas forças que vêm da sociedade envolvente e que vão entrando na aldeia e atropelando toda aquela forma de ser de uma maneira super pesada e super presente, é verdade, mas a gente tem também um movimento indígena de resistência de agarrar o que serve, transformar em alguma outra coisa, e jogar fora o que não serve. E a gente vê muito isso, por exemplo: chegaram os pen drives e então toda a aldeia tem pen drive. Mas aí, de repente você vê que no pen drive não está o forró da cidade: estão os cantos do velho da outra aldeia, sacou? E que eles estão escutando e falando: “Nossa, você já ouviu aquele cantor?” Tem um cantor lá, da Aldeia Rio Vermelho, ele é o sucesso do Krahô. O Tepjõpyr. Isso é muito incrível também e claro que revitaliza tudo. Claro que eles ouvem também o forró tosco da cidade, mas quando um jovem pega aquele pen drive e bota um Tepjõpyr… E falo do Krahô, mas acho que outros povos fazem também esse processo de agarrar o que serve e jogar fora o que não serve, e transformando a própria cultura e revitalizando vão surgindo coisas que você nem imagina.

JS – A ideia de que há alguma coisa que se está a perder é, na verdade, uma ideia um bocado romantizada ainda nossa do século XIX de acharmos que as culturas estão cristalizadas no ano de 1500, como se tudo o que veio depois não obedecesse já a uma pureza qualquer que os indígenas deveriam conservar para continuar indígenas. Isso é inclusivamente uma ideia perigosa, porque hoje em dia os anti-indigenistas e os latifundiários que lhes querem tirar a terra, que querem dar o golpe final, argumentam justamente isso: “Como é que este tipo é índio, se tem telemóvel e calções e chinelos?” E os indígenas respondem: “Se vocês não se vestem nem falam como os vossos bisavós, se comem carne que vem do Brasil, ténis produzidos na Indonésia, tecnologia americana de telemóveis com cristais de África, se falam uma língua que vem de Roma, o português, se vocês são diferentes dos vossos avós e bisavós, por que é que exigem que a gente seja igual aos nossos antepassados? Eles também estão no mundo, também estão no século XXI, também estão a lidar com os desafios que a globalização e o contacto com o seu entorno implicam. 

E têm o direito a serem quem quiserem.

JS – A serem quem quiserem, a falarem as línguas que quiserem e a transitarem por onde quiserem. Justamente o que é interessante é que não há uma perda ontológica ou uma perda cultural pela incorporação de elementos exógenos. 

RNM – Muito pelo contrário. 

JS – E há esta espécie de anedota que acho muito relevante: quando os portugueses e os espanhóis começam a levar utensílios de ferro e agrícolas que são trocados por madeira ou por objetos mais exóticos, isto no início do contacto, antes de haver o plano extrativista concretizado de algumas décadas depois, os indígenas utilizaram os utensílios de ferro não para aumentar a produção e conseguir acumular, que foi o que foi feito na Europa com o feudalismo, mas justamente para produzir o mesmo, exatamente aquilo de que precisavam, mas em menos tempo – e com isso ganhar tempo ou para as festas ou para namorar ou para descansar. É um exemplo incrível de como logo em 1500 os primeiros objetos exteriores que chegaram foram subvertidos e usados para reforçar uma ideia que já lá estava de “a nossa produção não serve a acumulação mas o consumo imediato”. E hoje isto continua a ser feito. De repente, os telemóveis servem para revitalizar e para intensificar trocas culturais entre as aldeias e os povos – porque hoje os povos indígenas do Brasil vivem em arquipélagos. A própria demarcação das terras criou ruturas. Não há uma continuidade geográfica entre os povos como a que existia num enorme complexo de sistemas políticos, de culturas, de etnias e de civilizações que estavam em contacto, com redes de troca dos Andes à Amazónia, aos Incas e à América do Norte, que se perderam com a invasão. 

A cena final, que serve na perfeição o título, não era para ter sido assim. Que é uma das mais poderosas do filme mas que não aconteceu como seria suposto e, segundo sei, filmaste sozinha, com o João doente. Veio daí o título?

RNM – Já há muitos anos que alugo uma casa lá em Itacajá [a cidade mais próxima da aldeia] com uma amiga que trabalha noutra aldeia. E ela tinha gravado uma velha falando dos mortos, sobre como funcionava a aldeia dos mortos, todo esse universo que a gente acabou resgatando para o filme, que acabou indo por esse caminho, e tinha uma fala dessa senhora maravilhosa, em que ela falava qualquer coisa como: “Os espíritos vão andando e a gente escuta o barulho da chuva. A chuva é a cantoria dos mortos.” Toda a minha relação tem a ver com essa festa de fim de luto porque a primeira vez que fui na aldeia foi para filmar uma festa de fim de luto de uma liderança Krahô super importante que tinha morrido. 

Sim, porque ao longo do filme acompanhamos todo esse processo através do Ihjãc, a quem morre o pai, até a essa festa. E o tempo do filme é também esse.

RNM — É o tempo da preparação da festa. 

JS — Filmámos cronologicamente também porque queríamos ter a passagem do tempo no filme: a mudança das estações. O filme começa na seca e termina no período das chuvas, porque são ciclos que na aldeia marcam uma série de coisas, nomeadamente as festividades e os rituais.

RNM — Todo o mundo que morre tem essa festa. E o miolo do filme, ele foi se moldando, se adaptando, mas o início e o final, depois de filmar fui ler o roteiro e a sequência final era exatamente o que a gente tinha escrito, lá atrás. É muito doido porque, por mais que a gente fale que o roteiro é aberto, tem coisas que não mudam. 

Como essa sequência final. 

RNM — Foi uma sequência em que tudo errado porque a gente tinha preparado uma cantoria no pátio com umas fogueiras enormes. Estava toda a lenha preparada. A gente não tinha luz, então filmava com o fogo. Era um monte de gente e nesse dia choveu. Então era o João doente, a chuva que veio e então não dava para filmar no pátio. Quando vi, o movimento todo da festa tinha se deslocado para dentro de uma casa e foi lá onde tudo aconteceu. E aquela cantoria final, que é a cantoria de Pàrcahàc mesmo, que é a festa de fim de luto, que era para ser uma coisa grandiosa, num pátio, com cinco fogueiras, virou uma família cantando dentro de uma casa. Mas é das cenas que a gente mais gosta no filme. Foi isso: deixar que a realidade diga qual vai ser o rumo do filme.

CHUVA É CANTORIA NA ALDEIA DOS MORTOS – Trailer from Karõ Filmes on Vimeo.

"Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos" estreia esta quinta-feira, com a presença dos realizadores em várias sessões: quinta-feira, no UCI El Corte Inglés, e sexta-feira, no Cinema Ideal, em Lisboa; dia 19, no Cineclube de Arcos de Valdevez. Dias 20 e 21, viajam, na companhia de um dos moradores da Aldeia da Pedra Branca que participaram no filme, até Guimarães, onde pode ser vista a exposição que prepararam em torno das conceções da morte presentes na cosmologia do povo indígena Krahô: "Carõ – Multidões da Floresta". Para ver no o Centro Internacional de Artes José Guimarães, até 9 de junho