“Quando me ofereceram o papel de Arturo, a minha primeira reação foi: ‘Fogo, o idiota do infiel não'”

“Quando me ofereceram o papel de Arturo, a minha primeira reação foi: ‘Fogo, o idiota do infiel não’”


O ator espanhol aventurou-se na escrita porque sentiu que tinha de contar uma história de transformação 


Estava quase a tornar-se advogado quando desistiu do curso de Direito para ir estudar representação para Nova Iorque. E pagou parte dos estudos com um prémio que recebeu por ganhar um programa da televisão valenciana cuja versão portuguesa dava pelo nome de… “Ai os Homens”. Tinha pouco mais de 20 anos e, desde que voltou dos EUA com o curso de ator, trabalhou sempre na área. Até que, em 2013, a crise congelou as produções fictícias em Espanha. Nessa altura, Enrique Arce tinha passado a barreira dos 40 e provas dadas na representação, mas nem isso o salvou: nesse ano, trabalhou apenas nove dias. Foi para Londres procurar trabalho, levou uma sova num bar que o deixou quase desfigurado e sem hipótese de arranjar trabalho. Foi então que, depois de bater no fundo do poço, nasceu outra vez, conta. Deixou para trás a sua “versão hedonista” e abraçou uma nova forma de ver a vida. O livro que escreveu nessa altura, “A Grandeza das Coisas sem Nome”, acaba de ser editado pela Esfera dos Livros em Portugal, onde Enrique chegou agora como um ator conhecido mundialmente. O culpado é Arturo, a personagem à qual deu vida no estrondoso sucesso da Netflix “A Casa de Papel” – e que, no início, começou por rejeitar. 

Fala muito bem português. Onde aprendeu?

Tenho uma história de amor com a língua portuguesa. Aliás, muitas coisas da minha relação com Portugal aconteceram de uma forma… como se numa vida anterior tivesse tido uma relação muito forte com o país. Por exemplo, fiquei completamente doido por fado. Comprei todos os CD da Amália Rodrigues.

E quando ouviu pela primeira vez?

Em 2007. Vim gravar o filme “Arte de Roubar”, do Leonel Vieira, com o Nicolau Breyner, o Ivo Canelas e a Soraia Chaves. Estive cá durante oito semanas e ouvia as pessoas a falarem português e achava muito similar ao espanhol, que falo, e à minha primeira língua, que é o valenciano. Gosto muito da sonoridade e, quando gostas muito de alguma coisa, tens mais facilidade em aprender. 

Mas chegou a estudar a língua?

Não, nem nunca mais tinha falado. Bem, a melhor maneira de aprender uma língua é namorando com alguém que a fala, e isso aconteceu – namorei com uma atriz portuguesa. Mas a realidade é que tenho uma enorme afinidade com Portugal por uma razão que desconheço. E a língua é só um sintoma disso.

No ano passado esteve no Porto, no festival de storytelling, e contou a sua história. Gostava de começar por aí antes de passarmos ao livro…

Está muito relacionado. Essa história da minha vida é praticamente a razão de existência deste romance. 

Para quem não o ouviu, contou que em 2013 só conseguiu trabalhar durante nove dias.

A crise do setor em Espanha começou a ser terrível a partir de 2011, 2012. O ano de 2012 foi muito mau, 2013 foi ridiculamente mau. A produção nacional caiu mais de 70%, cobrávamos 50% menos de cachê e, por essa razão, aproveitei o facto de ter a antestreia de um filme que tinha feito no ano anterior – um papel muito pequenino, ao lado de Pierce Brosnan e Aaron Paul, do “Breaking Bad”. Fui então a Londres e a diretora de casting disse-me: “Olha, porque não vens e ficas aqui por um tempo?” Tinha algumas poupanças e resolvi arriscar. Mas foi muito difícil, Londres é uma cidade muito difícil. Não conhecia ninguém, estava muito triste, o dinheiro estava a acabar–se. E logo na primeira semana aconteceu uma coisa…

A briga à porta do bar em que ficou quase desfigurado?

Sim. A culpa foi de um português chamado Mourinho. Estou a brincar. (risos) Mas foi uma discussão sobre futebol. É como em Portugal: seguramente, os adeptos do Benfica e Sporting falam, dizem merdas, mas depois tomam uma imperial e vão para casa. Em Londres, não é brincadeira – a minha equipa espanhola ganhou e dois gajos saíram do bar e bateram-me. Fiquei tão assustado que nem me apercebi do estado em que estava – quando olhei para um espelho é que vi que tinha a cara completamente deformada, com um derrame muito grande. Não quero dar muito peso a esta situação, mas a verdade é que, como ator, vivo da minha cara. Por isso, tive de parar: não podia a ir a castings nem sequer conhecer agentes. E não podia voltar para Espanha porque não queria que a minha família me visse assim, além de lá ser conhecido. E a verdade é que estava envergonhado. Então comecei a passear, todos os dias ia andar para os parques. Comecei a conectar-me de uma maneira muito especial com a meditação, com a natureza, e um dia parece que ouvi a voz da consciência a dizer--me: tens se escrever. Foi uma sensação…

De epifania?

Sim, posso dizer que sim. Senti que um dos meus propósitos de vida era contar uma história de transformação, uma história que tivesse também a ver comigo, sem contar necessariamente o que se tinha passado comigo, e com o meu processo de ampliação de consciência, que começou a desenvolver-se nessa altura.

Sentiu que estava, de certa forma, a recomeçar?

Sim. Para mim, foi bater no fundo. E isso, depois, foi uma bênção. Foi um momento difícil, duro, escuro, mas sem essa situação, provavelmente, a minha vida não seria a mesma hoje em dia, a muitos níveis. Não tinha mais nada a fazer do que começar a procurar. Como escrevi no livro – ou morria ou procurava sair dessa situação.

É um exagero dizer que nasceu duas vezes, uma em Valência, outra em Londres?

Provavelmente é a melhor descrição para o que se passou comigo. A minha própria espiritualidade, a minha relação com Deus, ou como lhe quiseres chamar, começou aí. Antes tinha uma vida particularmente hedonista, era muito egocêntrico. Durante muitos anos vivi só para mim. E desde então, de algum jeito, o meu ego foi-se tornando cada vez mais pequenino. Em Londres comecei a pesquisar sobre as coisas que eram importantes para mim naquele momento, que tinham a ver com a espiritualidade e a consciência. E as coisas que fui aprendendo foram-se integrando na minha alma, na minha vida, em tudo. 


Fotografia: Miguel Silva

Sentiu depois que tinha quase como missão contar essa viagem interior. Porquê?

Não sei. Normalmente tenho sempre palavras, mas é muito difícil explicar realmente o que aconteceu – não foi uma coisa momentânea, de um segundo, foi um processo. O caminho começou aí, mas ainda continuo a percorrê-lo. E a verdade é que nunca terá fim – a expressão da consciência é infinita. 

Esta fama mundial que está a viver não o tenta a voltar ao seu eu anterior, mais hedonista?

Sinto-me muitíssimo grato por isto ter acontecido precisamente quando tomei consciência de que este tipo de êxito e de fama não me representa. Não sou eu. E hoje em dia não tem praticamente importância na minha vida. Se tivesse o azar de viver tudo isto aos 22, 24 ou 30 anos, nem quero pensar como seria. Mas sei que seria uma coisa muito mais negativa do que positiva. Isto porque estou a passar uma fase muito maluca agora, a andar pelo mundo sempre sem me poder esconder.

Reconhecem-no em todo o lado?

Praticamente. Só os asiáticos é que não reconhecem tanto, porque em qualquer outro país vou a andar na rua e sou interpelado.

Voltando a Londres, começou logo lá a escrever o livro?

Sim. Comecei e praticamente acabei o livro lá. Londres para mim foi uma cidade curativa, catártica, e representou a minha época de romancista. Depois consegui entrar numa série de televisão americana, “Knightfall”, e inaugurei outra época de trabalho consistente. Isto antes d’“A Casa de Papel”. Aliás, eu achava que seria “Knightfall” a abrir-me as portas de Hollywood e, afinal… (risos)

Foi a falar na sua língua materna que aconteceu.

Sim. E eu primeiro disse que não à “Casa de Papel”, não queria fazer a série.

Foi convidado logo para o papel de Arturo?

Fiz o casting para duas personagens: Arturo e Coronel Prieto. E gostava mais do coronel. Dias depois, o meu agente liga-me e diz-me que queriam que eu fizesse o Arturo. A minha primeira reação foi: “Fogo, o idiota do infiel não. Não quero. Quero ir-me embora para os EUA depois do Natal.” Não sei se em Portugal têm a lotaria de Natal, mas em Espanha é uma coisa muito importante, toda a gente para e, realmente, a época de Natal começa com esse sorteio. As televisões, as rádios, todos emitem o sorteio em simultâneo, e aconteceu estar precisamente nessa altura a ter a tal conversa com o meu agente ao telefone e pum! Olho para televisão e sai “o gordo” da lotaria, o maior prémio. E uma coisa na minha cabeça disse: “Aí tens o teu sinal.” E foi o meu “gordo” da lotaria.

Quando pegou pela primeira vez no argumento previa este sucesso?

Nunca me passou pela cabeça, nem a mim nem a ninguém. Odiava o nome da série – “A Casa de Papel”, what the fuck is that? Depois, não gostava nada do personagem, mas claro que agora tenho muito carinho por Arturo. Estava previsto que Arturo tivesse um papel muito mais pequeno, ele ia morrer do disparo no quarto episódio. Pensei: ganho dinheiro e daqui a um mês e meio vou–me embora. Mas, depois, os diretores começaram a rir muito das reações do Arturo, e o Aléx Pina, o criador, às tantas vem ter comigo e diz-me: “Quique, morremos de riso cada vez que a tua personagem está em cena e queremos que tenha um papel maior. Estás disposto? Já não te vamos matar.” Ok, fine. 

É sempre um bom sinal quando não nos querem matar.

(risos) Mudava todos os meus planos mas, por outro lado, era a confirmação de que estavam a gostar muito do meu trabalho.

Durante as rodagens, nunca sentiram que estava ali alguma coisa especial a acontecer?

Houve uma vez em que estávamos a dar uma entrevista para a televisão, em Burgos – eu, a Alba (Nairobi), o Pedro (Berlim), o Álvaro (o Professor) e um dos diretores da série. Eu era a última pessoa a falar e, ainda não sei porquê, saí-me com outra epifania: “Não sei se a série será um sucesso em Espanha. Se não for, é porque Espanha ainda não está preparada – mas o resto do mundo, sim, está.” E foi exatamente o que aconteceu: em Espanha não se passou nada, e depois… bum! Os diretores ficaram muito chateados por eu ter dito aquilo e agora dizem-me que sou um adivinho.

Há atores que se queixam de que ficaram tão conotados com uma personagem que nunca mais se conseguiram separar dela. Não teme que isso lhe aconteça?

Depois da “Casa de Papel” já fiz sete ou oito personagens. E continuarei a fazer muitas outras, porque é isto que faço. Cada uma dessas personagens é diferente de Arturo, e não sinto particularmente que essa personagem me tenha enjaulado. É verdade que mais de 80% das pessoas que me encontram na rua não me chamam Enrique, chamam-me Arturo. Mas eu já não tenho a vaidade que o meu nome tenha letras de ouro, isso já passou. Gosto muito do carinho das pessoas, sinto uma gratidão enorme por ser um dos componentes da “Casa de Papel” e do seu sucesso e tratarei de fazer com que os fãs continuem a gostar tanto de me odiar, porque as pessoas adoram odiar-me. Mas é uma série, e a minha vida são muitas outras coisas, e tenho capacidade de, dentro do ato criativo, fazer mais. O Enrique não começa nem acaba como Arturo Román.

O livro é um desses exemplos de versatilidade.

Claro que tenho mais experiência na representação, já construí um nome, é a atuar que pago as minhas coisas. Mas a escrita é uma coisa nova. É como se me tivesse apaixonado outra vez. A literatura dá-me possibilidades que a representação não me oferece, e vice-versa. São muito diferentes: durante uma rodagem conheces muita gente, é um ato criativo conjunto. A escrita é muito solitária, mas a mim dá-me uma coisa muito boa: a mente para. O tempo e o espaço desaparecem. Para mim, dá-me uma sensação de serenidade e de paz. A interpretação tem uma parte muito mais lúdica, mais de miúdo.

Tem alguma característica em comum com a personagem principal do seu livro, Samuel, para lá da profissão?

Apenas o facto de estarmos na casa dos 45. Quando comecei a escrever tinha 42, hoje tenho 46. Para mim, era importante que a personagem estivesse prestes a completar os 45 porque faço uma alegoria com outra das minhas paixões, que é o futebol. E digo que a vida são 90 minutos, ou 90 anos, e que é como os jogos de futebol importantes: começa a sério na segunda parte. Mas não temos mais nada em comum.


Fotografia: Miguel Silva

Faz-se valer, no entanto, das referências que tem dos EUA, já que estudou representação em Nova Iorque. Li que foi estudar com o dinheiro que ganhou num programa na televisão valenciana chamado “Ellos i Elles”. Que programa era este?

(risos) Era um programa muito engraçado para gente jovem em Valência: havia 150 mulheres, de todas as idades e circunstâncias sociais, tudo, que votavam em dez gajos que, por sua vez, faziam provas muito embaraçosas. Quem perdia era empurrado para a piscina por umas modelos que trabalhavam lá.

Cá tivemos uma versão, chamava-se “Ai Os Homens”!

A sério? Ganhei o meu programa e depois fui o campeão dos campeões.

Tinha quantos anos?

Vinte! E estudava Direito, não era ator, mas já atirava para lá. (risos) Ganhei uma moto aquática e depois 1,5 milhões de pesetas (hoje, cerca de 15 mil euros), o que em 1992 era muito dinheiro. Até que um dia falei com o meu pai a comunicar-lhe que queria ser ator e que ia estudar para Nova Iorque. Primeiro disse que estava maluco, depois disse-me para eu fazer o que quisesse. Um santo, o meu pai! Agora acho que fui muito valente, mas também inconsciente, mas é uma das coisas boas que tem a juventude: não pensas, vais com o coração. Provavelmente, agora não faria o que fiz, depois de passar quatro anos a estudar Direito, prestes a acabar. Deixar tudo para perseguir uma profissão em que, em Espanha, só 2,7% dos atores ganham mais de 12 mil euros ao ano. Para mim, correu bem, e espero que isto não soe como vaidade: nunca na minha vida pensei que me correria mal ou que poderia fracassar.

Quantos anos durou o curso?

Quatro. Foi uma época muito linda.

Para terminarmos: em que fase está a terceira temporada de “A Casa de Papel”?

Estamos a gravar. Começou em novembro, depois pararam para o Natal e recomeçaram já em Madrid depois dos Reis, na primeira semana de janeiro. Já tive um dia de rodagem, e assim que deixar Portugal começo a sério. Devemos acabar, provavelmente, em junho, e não tenho qualquer ideia de quando sairá – essa é uma decisão da Netflix. 

E o próximo livro, quando sai?

“A Grandeza das Coisas Sem Nome” ainda está a percorrer uma trajetória grande de promoção. Mas talvez em 2020 comece a trabalhar em alguma coisa. Mas penso que, quando algo corre bem, devemos ficar-nos pela mesma fórmula – e eu não procurei esta história, ela é que me encontrou, eu só estava com a antena posta. Quando tiver de vir outra, virá, e eu estarei preparado para a escrever.