Rui Lage. Pessoa, detetive no cu de Judas

Rui Lage. Pessoa, detetive no cu de Judas


Os interesses ocultistas de Fernando Pessoa inspiraram a Rui Lage uma ficção que, mais do que desassossegar a estabilidade dos géneros literários, nos desassossega a nós.


Do corcel da poesia saltou para o cavalo da prosa, ágil, arteira, imaginativa e teimosa, sempre a puxar para o lado contrário do curso do mundo atual, que a tudo exige visibilidade máxima, alta definição, e que parece incapaz de tapar o ralo por onde todas as imagens se escoam indistintamente. Dá rédea longa ao lado ocultista de Fernando Pessoa e está liberta das palas do imediatamente visível, essa cegueira que nos conforta e nos limita. E toca vários géneros – do romance histórico ao policial, do fantástico ao rocambolesco, passando pelo registo satírico – sem deixar para trás nenhum, numa admirável flexibilidade de movimentos discursivos que dão a este romance uma excelente tração diegética.

Já na segunda edição, o grau de sucesso que este primeiro romance de Rui Lage tem alcançado surpreende e desconcerta, sobretudo se pensarmos que não lhe faltam elementos que poderiam ter feito dele um fiasco editorial. Para começar, o título – “O invisível” – é uma vassoura de afugentar o leitor de hoje, pouco disponível para mistérios, que só tem olhos para o ecrã, que faz vistas cegas ao que não se dá a ver de forma imediatamente óbvia.

Depois, a figura em torno da qual o romance roda, Fernando Pessoa, já teve acolhimento bem mais caloroso do público, que ainda nos anos 80 começou a dar sinais de saturação, e até de rejeição. E com boas razões: foram simpósios, congressos, teses e mais teses, filmes e argumentos, explicações psicanalíticas, escavações e solenidades comemorativas, desocultadores, editores azafamados, volumosa massa de prosa inédita constantemente enriquecida de novas espécies, e a que parecia terem juntado fermento, exegeses que moíam a mesma farinha. Houve mesmo escritores que, irritados com a excessiva atenção dada a Pessoa em detrimento das novas gerações, se não tentaram varrer Pessoa da nossa cena literária, ensaiaram, pelo menos, um chega-para-lá, como quem enxota uma mosca que não pára de zunir. Foi o caso de Vasco Graça Moura, nunca lhe perdoou “ter uma vida segunda em edições de primeira” e de Mário de Carvalho, o inventor do refrão “Tanto Pessoa já enjoa”.

Ora a ousadia romanesca de Rui Lage, poeta e ensaísta de reconhecidos méritos, vem trazer ao moinho do poeta dos heterónimos inesperadas águas. Por razões de conveniência ficcional, Pessoa vê-se submetido a um processo de deslocalização – do meio lisboeta para a fictícia Cova do Sapo, um lugarejo situado na serra do Alvão – com lucros evidentes para o leitor, que sempre o conhecera a circular pela capital, apertado entre os Douradores e o Cais das Colunas, e que acaba por divertir-se com os incómodos causados. São embaraços, solavancos, desconcertos, sempre bem doseados numa escrita impecável da ordem da minúcia que nada deixa aos cuidados do acaso. Nada que o próprio poeta não antevisse: “Antecipava longas horas de consumição em caminhos pedregosos entalados entre matagais. Ao pé do que o esperava em tais serranias, o chocalhar metálico do 28 era embalo de berço. Com azar, ainda teria de passar a vau alguma ribeira, de água pelas coxas, porque as pontes, que saíam caras, escasseavam. Para não falar na penúria alimentícia e na hecatombe higiénica”. Convém lembrar que tudo se passa em ambiente arcaico, em 1931, a quatro anos da morte do poeta.

Livra-se Pessoa dos embrulhos que foi empilhando na arca que a posteridade não parou de abrir, arruma as papeladas das casas comerciais, recolhe a pena “ridícula” das cartas de amor dirigidas a Ophelia, que neste romance perde alguns pontos para Hanni Jaeger, a “dama escarlate”, antiga namorada de Aleister Crowley, o mago inglês com quem Pessoa engendrou um célebre pseudossuicídio na Boca do Inferno, em Cascais, e que aqui vemos a “ajeitar-lhe o laço com piparotes”, num despudor de cena erótica; desenrola-se enfim da imagem mítica que fez dele um interessante produto de exportação cultural: o estilizado lisboeta da Baixa pombalina, a errar de escritório em escritório, absorvido em projetos editoriais de vida curta. É uma imagem que tem, no entanto, um papel a jogar nesta ficção, concretamente numa comédia negra (que pede atenção e estômago), e de que o detetive Pessoa é forçado ator, mas também numa sucessão de aventuras subterrâneas que o transformam numa espécie de doublé de Indiana Jones. Se a ironia é, como Rui Lage faz dizer a Pessoa, “uma atividade extenuante”, nunca o leitor se cansa deste exercício, sintonizado em frequência esotérica.

Mantêm-se o aperto financeiro e o laço preto ao pescoço, “mariposa desfalecida que preferia à burocrática gravata” sobre camisa impecavelmente branca, mas agora de mangas arregaçadas pelas exigências da Agência Bandarra, empresa de “Investigações Ocultistas e Paranormais”, montada com o seu grande amigo Augusto Ferreira Gomes para surripiar uns cobres a viúvas desoladas em falsas sessões espíritas que metiam fotografias dos espíritos dos falecidos e tudo, aprimoradas por afinadas artimanhas. Arte? Engenho? Fraude, se preferirem, a romper as costuras do já visto. Mantém-se igualmente a queda pelo álcool, mas a rústica taberna vem render o Martinho da Arcada, um espaço também com as suas singularidades, a começar pelos adereços: “pareciam caramelizados, tão espessa era a camada de sebo castanho que os revestia, feita de azeite, pó, lama, vinho e escarros”.

Tudo começa quando Pessoa recebe no escritório uma carta dirigida à Agência Bandarra. Caso sério: o padre da remota Cova do Sapo vem solicitar os serviços dos “doutores” de Lisboa num mistério de ocorrências noturnas que traz alvoraçados e insones os habitantes. A tormenta começa quando a noite engrossa. Por volta das onze, todos se aferrolham, enquanto “aventesmas” espalham pelas ruas uivos de além-mundo e escoiceiam brutalmente as portas, não sem revolverem a terra do cemitério, desenterrando mortos cujos ossos aparecem nas soleiras das casas. Perito em assuntos astrais, Pessoa não hesita. E porquê: “ – Primeiro: pagam bem. Segundo: pagam bem.” Nos intervalos da agenda ocultista, ainda arranja tempo para exercícios de contemplação-reflexão dos quais andamos tão carecidos.

Dir-se-ia que Rui Lage dá a Pessoa o que nele é falta: além de uma biografia para os anos da infância passada em Durban, na África do Sul, dá-lhe aventura geográfica e conhecimento de si mesmo. Mas oferece-lhe também o que há muito lhe roubaram: carnalidade. Liberto das algemas do mito e apoiado em pernas verosímeis, desce Pessoa das alturas míticas ao modesto terreno dos mortais. Longe dos confortos citadinos, chegamos mesmo a surpreende-lo num quelho fétido “agachado em obra intransmissível”. Pudesse usufruir o poeta de um decente WC e, ao ouvir bater na porta, poderia dizer: “Está gente!”. Pessoa respira com sopro de gente real, sentimo-lo a sorver o ar das altitudes do Alvão, balançando entre o caos e a ordem, a razão e a emoção, o riso e o siso, o invisível e o visível. Em tempo de voyeurismo, de vacuidade fotográfica, onde todos os ralos são poucos para escoar o caudal das imagens diariamente debitadas, um romance como o que Rui Lage escreveu, espécie de livro falado, é um ato de rebeldia. Uma contra-ofensiva face aos olhares de superfície.