1. O fim da Guerra Fria chegou sem um armistício ou um tratado de paz, muito menos uma revolução normativa que afastasse a ordem jurídica existente. O fim do conflito entre duas ideologias, dois sistemas económicos e dois sistemas de forças militares fez-se por via da rendição sem batalha, da verificação da desistência. Foi este abandono que a intelligentsia imperial russa nunca perdoou a Gorbatchov e que Putin mobilizou com o apoio dos ramos mais fortes do aparelho de Estado (serviços de informação, militares, diplomatas). Ainda hoje, o Kremlin reivindica uma nova partilha do mundo a formalizar por um acordo entre iguais. A reivindicação é feita com base na ordem jurídica internacional criada pelos vencedores da ii Guerra Mundial e assenta no funcionamento dos respectivos mecanismos institucionais, com destaque para o Conselho de Segurança e o papel dos membros permanentes.
2. Se a Federação Russa se assume como a grande defensora de uma visão tradicional dos mecanismos da segurança colectiva da ONU, fazendo funcionar o direito de veto e defendendo uma interpretação extensiva do domínio reservado dos Estados, a defesa dos mecanismos de governação económica está por conta da República Popular da China. No dia de hoje, o discurso a favor da abertura ao comércio internacional e ao multilateralismo na sua gestão é feito em mandarim. No ano de 2018, este discurso foi feito em Davos, o areópago do liberalismo económico e do comércio multilateral, por Xi Jinping. Trump fez então as despesas do discurso a favor da autarcia e do proteccionismo.
3. Na herança da organização da sociedade internacional do pós-guerra houve um capítulo mal amado, o relativo à democracia pluralista com o segmento de separação de poderes e de protecção dos direitos fundamentais. A defesa da democracia pluralista servia para combater o bloco soviético, mas não era imposta aos Estados-satélite do Ocidente ou sequer exigida como requisito para validar os processos de concretização do direito à autodeterminação. Finda a Guerra Fria, o negócio de exportação da democracia pluralista, que nunca tinha prosperado em Washington, arrefeceu rapidamente. Nas novas colónias (Afeganistão, Iraque, Líbia), a democracia liberal não tem procura. Na Europa de leste, vários regimes oligárquicos prosperaram e, mais recentemente, os populismos e nacionalismos assumiram uma dimensão claramente iliberal. Os heróis do actual inquilino da Casa Branca são líderes de regimes musculados: Putin, Erdogan, Orbán.
4. O fim da Guerra Fria foi anunciado por uma série de convenções internacionais em matéria de controlo de armamentos, em particular as relativas a ogivas nucleares e aos respectivos vectores. Reagan e Gorbatchov reduziram drasticamente o número de armas nucleares. Mais importante foi a diminuição do risco de escalada num conflito, com a eliminação de armas nucleares intermédias capazes de serem disparadas rapidamente a curta distância e que, por consequência, dão muito menos tempo de resposta ao adversário (desde logo, reduzem dramaticamente o tempo de não resposta). Estes acordos foram celebrados entre as duas superpotências e deixaram de fora todas as outras potências nucleares. No entretanto, a corrida chinesa ao armamento levou à criação de um arsenal proibido aos EUA e à Rússia. Sem vincular a China, a denúncia do tratado INF era inevitável. O mundo está muito menos seguro.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990