Envelhecimento. Parar depois da reforma pode não ser opção

Envelhecimento. Parar depois da reforma pode não ser opção


Num país onde o envelhecimento é uma realidade em crescimento, há quem se recuse a parar depois da reforma ou por estar desempregado. A plataforma 55+ nasceu para trazer uma nova vida a quem achava que já não tinha idade para trabalhar


As recordações são como sacos que vão ficando cada vez mais cheios com o passar do tempo. Aos 70, o saco está a transbordar – recordações de uma vida ativa, um trabalho que obrigava a cumprir horários e não deixava que o tempo esticasse para fazer outras coisas. Maria Fernanda – que celebrou os 70 anos na semana passada – recorda os tempos em que dizia “eu até quero, mas não tenho tempo” com nostalgia. Ao sol, numa rua em Marvila, a antiga professora primária confessa que queria muito chegar à idade da reforma. Essa hora chegou há dez anos, mas não teve o sabor que esperava. “Agora não me sinto útil e espero nunca chegar ao ponto de sentir que estou só a ser um encargo para os meus filhos”, diz Maria Fernanda. 

Os sinais do tempo e as doenças crónicas impedem a mulher que há uns anos preparava os miúdos para serem adultos de fazer outras coisas, além de ir buscar os netos à escola. “Ah, gostava tanto de voltar a trabalhar, agora já nem consigo ler em condições”, diz e acrescenta que vai à piscina duas vezes por semana porque faz bem e é uma forma de se sentir ocupada. “Os netos também dão trabalho e não é pouco, estes miúdos tiram-me anos de vida”, ri. 

A população em Portugal está cada vez mais envelhecida. Sinais da qualidade de vida que trazem levantam outras questões como a qualidade de vida depois da reforma. O número de pessoas com mais de 65 anos tem vindo a aumentar de ano para ano e em 2017 existiam mais de dois milhões de pessoas com idade para reforma. Segundo dados da Pordata, o número de pessoas com mais de 65 anos é muito superior ao número de pessoas dos zero aos 14 anos – que não chegam a ser milhão e meio.

Na rua do Grilo, toca a campainha de saída para as crianças que frequentam o ensino primário na escola do Beato. Ao fundo da rua vem Carmina Mendonça, em passo acelerado, porque já está atrasada para ir buscar a neta de nove anos que no próximo ano letivo começa o ensino básico. “É a ocupação da maior parte dos velhos como eu, mas também, enquanto tiver saúde não sou velha”, diz Carmina, de 88 anos. As contas já falham, mas a neta ajuda: está reformada há 33 anos. Em tempos, foi empregada doméstica a tempo inteiro – vivia em casa dos patrões. Quando se reformou continuou a trabalhar e sempre teve “força para fazer tudo, até limpar persianas e janelas”. “A idade já vai muito avançada, mas continuo a ir à piscina duas vezes por semana, faz-me muito bem”, conta. Fora isso, toma conta da neta, vai buscá-la às 15h30 e fica o resto da tarde com ela até os pais saírem do trabalho. “Depois da reforma continuei sempre a trabalhar, depois os patrões morreram e agora com esta idade já não vou voltar a trabalhar, agora a minha vida está aqui”, diz enquanto abraça a neta. 

Tanto Carmina como Maria Fernanda gostavam de continuar a trabalhar e, sobretudo, a estar com outras pessoas da sua idade. “Se houvesse oportunidade, ia logo, nem pensava”, diz Maria Fernanda. 

Idade não é obstáculo Há dez anos, na mesma altura em que Maria Fernanda se reformou, Elena Duran estava em Espanha e viu o pai a entrar também na idade da reforma. O pai era diretor de uma escola e estava habituado a ter um emprego e uma vida social ativa. Na altura, Elena pensou: “E agora? Tenho medo que se sinta desvalorizado quando estiver sem fazer nada, porque não está habituado a não trabalhar”. A ideia ficou na cabeça e há dois anos decidiu começar a desenhar um projeto dedicado a quem já está reformado, ou a quem está desempregado e não consegue encontrar trabalho pelo fator da idade. Em outubro de 2018, nasceu a plataforma 55+ para quem tem mais de 55 anos e não quer ficar de braços cruzados. 

Neste momento, a ideia que surgiu em Espanha e ganhou forma em Portugal, já tem mais de 200 pessoas reformadas ou sem trabalho inscritas. “Quem oferece, garante uma vida mais saudável, ativa e integrada na comunidade, com uma remuneração extra”, lê-se no site da plataforma. E é mesmo esse o objetivo de quem vai ter com Helena Duran. Antes de começarem a trabalhar, explica a fundadora da empresa, “a pergunta ‘quais são as motivações’ é sempre feita”. As respostas são também quase sempre as mesmas: “Uma parte para se sentirem ativos, outra parte porque o dinheiro também ajuda”. Depois da entrevista, os serviços prestados variam desde a confeção de comida ao domicilio, acompanhamento de crianças e idosos, aulas particulares de línguas, ou de viola, até ao passeio de cães. 

Situada em cinco freguesias de Lisboa – Misericórdia, Campo de Ourique, Campolide, Estrela e Alcântara – a 55+ abraça histórias “muito específicas de cada um”, diz Elena Duran. A plataforma conta com um violinista de 82 anos. Pela especificidade, não ensina violino a muitos alunos, mas é o colaborador mais velho. Além disso, a comida ao domicilio é o serviço mais pedido. “´É uma forma muito económica de ter comida feita em casa para toda a semana”.

“Não acredito na reforma” Há quatro meses, a estratégia de divulgação passava apenas pelas redes sociais. E desengane-se quem pensa que o Facebook é só para gente nova. “Isso é um mito, as pessoas com mais de 55 anos estão mais do que habituadas às redes sociais e o Facebook tem sido a plataforma mais usada e por onde nos chegam mais pedidos de inscrição”, explica Elena. 

Depois da internet, a publicidade foi feita através de folhetos informativos entregues nas caixas de correio. E, foi também há cerca de três meses, que Manuela Lopes foi ao correio buscar correspondência e descobriu a plataforma 55+. Nesse dia percebeu que podia voltar a sentir-se ativa. Não diz que trabalha na 55+, mas sim que colabora, já que não vê o que faz atualmente como um trabalho, “é mais uma ocupação”, diz. Com 60 anos, dá aulas particulares de inglês e um dos seus alunos tem 67 anos. Manuela Lopes está desempregada há cinco anos – “trabalhei numa empresa de produtos biológicos, mas a empresa fechou e depois há a dificuldade da idade, claro”. Candidatou-se no ano passado para dar aulas de inglês e dar apoio a crianças e idosos. Está a gostar tanto que já recomendou a plataforma 55+ a todos os seus amigos “e alguns já se inscreveram e tudo”, diz Manuela. 

Sobre a reforma, não acredita “na segurança social” e tem “a certeza que daqui a quatro anos” não vai ter uma reforma. Depois da notícia de ontem, que dava conta dos atrasos nos pedidos de reformas, as pessoas dizem preferir continuar a trabalhar e ter dinheiro certo ao final do mês. 

A plataforma 55+ funciona apenas na capital, mas quem a gere já pensa em alargar para outras zonas, sobretudo para o interior do país, onde o tema do isolamento é uma realidade cada vez mais comum e o índice de envelhecimento tem aumento. Olhando para Portugal, os números são fáceis de decifrar: o índice de envelhecimento tem vindo a aumentar todos os anos e em 2017 era já de 153,2%. Ou seja, segundo a Pordata, por cada 100 jovens existem, em média, 153 idosos. Em 2016, Portugal ocupava a terceira posição dos países com mais idosos relativamente ao número de jovens – à frente só estava Itália e Alemanha.

Voltando ao Beato, a ideia de continuar a trabalhar depois da reforma é uma convicção para alguns. Atrás do balcão do “Bar do Beato” está Carlos Mendes, um homem de 64 anos. Os clientes já foram mais, sobretudo quando a fábrica em frente tinha muitos trabalhadores. Agora, às 16h, só tem uma mesa ocupada com um jovem que lê um livro na esplanada. “Vejo muita gente aqui no café que só quer a reforma, mas ao fim de um ano já estão fartos de não fazer nada e já não querem estar assim”, diz Carlos Mendes, dono do café. Ainda falta cerca de um ano para chegar à idade em que pode ir à Segurança Social entregar os papéis para formalizar o estatuto do resto da sua vida, mas quando esse dia chegar vai “continuar a trabalhar até ter saúde, porque parar é morrer, o que se leva da vida é o que se faz e o importante é levar o saco cheio”.