Ao contrário do que muita gente tem escrito, acho que Assunção Cristas fez bem em apresentar neste momento uma moção de censura ao governo. Na verdade, perante a onda de greves que assolou o país, o total bloqueio dos serviços públicos e uma remodelação governamental que transformou o governo num simples negócio de família, é evidente que havia mais do que razões para censurar o governo. E o parlamento é o local adequado para expressar essa censura. Assunção Cristas também já tinha estado bem quando apresentou uma moção de censura semelhante em 2017, na altura em que o governo deixou o país arder em dois incêndios colossais, mostrando-se totalmente incapaz de dominar os fogos.
Na verdade, a moção de censura é o instrumento parlamentar adequado para expressar a reprovação do parlamento pelo modo como o governo está a exercer o seu mandato. Sabendo-se que o governo depende do parlamento, e só pode ser demitido pelo Presidente em circunstâncias absolutamente excepcionais, não se vê qualquer razão para diabolizar a apresentação de moções de censura pelos partidos da oposição. Aliás, a Constituição até blinda quase totalmente o governo, ao exigir que a moção de censura seja aprovada pela maioria dos deputados em efectividade de funções para que este possa cair, o que dificilmente se consegue. Não admira, por isso, que só uma vez em toda a nossa história democrática um governo tenha caído com uma moção de censura, o que ocorreu em 1987 quando toda a esquerda se uniu para derrubar o primeiro governo de Cavaco Silva. Nessa altura o feitiço virou-se contra o feiticeiro pois, ao contrário do que a esquerda esperava, Mário Soares dissolveu o parlamento e Cavaco Silva ganhou as eleições seguintes com maioria absoluta.
Mas a moção de censura é também um instrumento clarificador relativamente às posições dos diversos partidos, demonstrando quem está ou não está com o governo. Neste aspecto, a moção de censura do CDS demonstrou que toda a esquerda está a apoiar solidamente o governo PS, uma vez que o PCP, o BE e o PAN votaram contra a moção de censura. O seu voto contra tem um significado político preciso, pois podiam ter-se abstido, sem que isso provocasse a queda do governo, pois para tal acontecer era necessário que a maioria absoluta dos deputados votasse contra. Ao terem votado contra a censura, esses partidos perderam assim a possibilidade de se demarcarem do governo nos próximos combates eleitorais que se avizinham, o que vai desmotivar os eleitores de votarem nesses partidos, já que mostraram que, por muitos protestos que apresentem, na hora da verdade em nada se distinguem do partido do governo.
Mas o que mais chocou neste debate foi a posição do PSD. Em primeiro lugar, em vez de anunciar desde o início que votaria a favor da moção de censura, como se impunha, andou em tergiversações para adiar uma posição, o que só gerou um debate interno absolutamente desnecessário. Marques Mendes, com a capacidade divinatória que o caracteriza, apareceu a anunciar que “o PSD vai abster-se. Não pode ser de outra maneira. Não pode votar a favor da moção, porque ela é, na prática, contra o PSD. Aí faria o papel de idiota”. Em resposta, David Justino, apesar de achar que se tratava de “um instrumento que não devia ter sido aplicado agora”, sabe–se lá porquê, anunciou o voto a favor da moção, acusando Marques Mendes de “às vezes fazer papéis parecidos com esses que ele apregoa”.
O papel que o PSD fez neste debate é que me pareceu absolutamente triste. Em primeiro lugar, descobriu-se que nem sequer conseguiu reunir o seu grupo parlamentar em Lisboa para preparar o debate da moção porque, imagine-se, havia jornadas do PCP em Braga na segunda e terça-feira e, naturalmente, todos os trabalhos parlamentares são suspensos por causa desse grandioso evento, não fazendo por isso qualquer sentido obrigar os deputados a uma deslocação não prevista a Lisboa. Depois procurou-se desvalorizar a moção, levando a que Rui Rio anunciasse no Twitter que a sua única consequência era a realização de um debate regimental na quarta-feira, embora o PSD fosse votar a favor da mesma. E. no debate parlamentar. o PSD esteve praticamente ausente, nem sequer tendo gasto o tempo regimental de que dispunha.
Se o PSD não gostava da moção de censura do CDS, só tinha uma alternativa: apresentar a sua própria moção, levando os seus deputados a defendê-la. A forma como o PSD desvalorizou o mais importante instrumento parlamentar que a oposição tem ao seu dispor fez objectivamente o jogo do governo, deixando uma péssima imagem sobre o papel do parlamento e o que deve ser a liderança da oposição. Just try harder.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990