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Portugal tem vindo a destinar fundos comunitários para a criação de mais respostas de institucionalização de forma indevida. Em causa está o Lar Residencial dos Valados, construído nos Açores por decisão do governo regional com recurso ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) e inaugurado em dezembro de 2015, com capacidade para 16 pessoas com deficiência.
Na página da instituição no portal do governo dos Açores, o executivo explica que “a Região Autónoma dos Açores tem vindo a implementar um programa de criação de lares residenciais (respostas destinadas a alojar jovens e adultos com deficiência, de ambos os sexos, de idade não inferior a 16 anos, que se encontrem impedidos, temporária ou definitivamente, de residir no seu meio familiar). Com a construção do equipamento objeto da presente operação procura-se disponibilizar alojamento para 16 pessoas com deficiência, cujas instalações sejam adequadas às necessidades específicas dos seus utilizadores, promovendo, simultaneamente, uma ocupação qualificada que contribua para o seu bem-estar, desenvolvendo estratégias de reforço de autoestima e valorização”.
A construção do lar coloca em causa a regulação de disposições comuns aplicáveis a todos os Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI, vulgo fundos comunitários) – incluindo o FEDER –, como a Rede Europeia de Vida Independente (ENIL na sigla em inglês) indica ao i. No anexo xi do “Regulamento (UE) N.º 1303/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho”, que dá conta das “Condicionalidades ex ante” – isto é, dos pré-
-requisitos que os projetos devem cumprir para aceder aos fundos –, lê-se, no objetivo temático 9, dedicado a “Promover a inclusão social e combater a pobreza e qualquer tipo de discriminação”, que uma das prioridades de investimento do FEDER é o “investimento na saúde e nas infraestruturas sociais que contribuam para o desenvolvimento nacional, regional e local, para a redução das desigualdades de saúde, para a promoção da inclusão social através de um melhor acesso aos serviços sociais, culturais, assim como para a transição dos serviços institucionais para serviços de base comunitária”. A disposição assinala que o investimento nas infraestruturas sociais deve contribuir para a “transição dos serviços institucionais para serviços de base comunitária” – algo que a construção de um lar residencial, um serviço institucional, contraria.
Na segunda parte do mesmo anexo, na categoria de “deficiência”, é indicado como pré-requisito a “existência de capacidade administrativa para a execução e a aplicação efetiva da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (UNCRPD na sigla inglesa) no domínio dos FEEI em conformidade com a Decisão 2010/48/CE do Conselho”. Além disso, os critérios de cumprimento referem “disposições para a formação do pessoal das autoridades administrativas envolvido na gestão e controlo dos FEEI nos domínios da legislação e da política nacional e da União aplicáveis em matéria de deficiência, incluindo em matéria de acessibilidade e da aplicação prática da Convenção UNCRPD tal como consagrado nas legislações nacional e da União, se for caso disso”, bem como “disposições que visam garantir a aplicação do artigo 9.o da Convenção UNCRPD relativamente aos FEEI na elaboração e execução de programas”.
Por sua vez, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada por Portugal em 2009, estabelece no artigo 9.o, dedicado à acessibilidade, que “para permitir às pessoas com deficiência viverem de modo independente e participarem plenamente em todos os aspetos da vida, os Estados Partes tomem as medidas apropriadas”. Ora, respostas como o Lar Residencial dos Valados não vão ao encontro do estipulado pelo artigo citado da convenção.
O i contactou a Comissão Europeia na segunda-feira para perceber se, mais do que não ir ao encontro das disposições dos fundos comunitários, o seu uso na construção do lar açoriano é ilegal. Em resposta, a assessoria da Comissão Europeia sublinhou a complexidade da pergunta, que “requer averiguações por especialistas, sendo que há diferentes ângulos (a perspetiva de desenvolvimento regional e a perspetiva da deficiência), pelo que diferentes equipas estão a trabalhar no assunto e irão sincronizar os seus resultados”. A resposta não chegou até ao fecho desta edição.
Contra disposições dos fundos mas não só
Se pela leitura dos documentos atrás referidos se percebe que a construção do lar açoriano não respeita o que a UE dita, também é verdade que passa ao lado não só do artigo 9.o da já referida Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, mas também de outros. É o caso, por exemplo, do artigo 19.o, que prevê o “direito a viver de forma independente e a ser incluído na comunidade”, determinando que “os Estados Partes na presente Convenção reconheçam o igual direito de todas as pessoas com deficiência a viverem na comunidade, com escolhas iguais às demais e tomem medidas eficazes e apropriadas para facilitar o pleno gozo, por parte das pessoas com deficiência, do seu direito e a sua total inclusão e participação na comunidade”.
Mas a construção de lares residenciais viola ainda as recomendações do comité das Nações Unidas responsável pela monitorização da convenção. Num texto publicado em outubro de 2017 sobre a vida independente, o comité esclarece que “tanto a vida independente como ser incluído na comunidade referem-se a padrões de vida fora de instituições residenciais de todos os tipos. Não dizem respeito ‘apenas’ a viver num edifício ou de uma forma em específico; dizem respeito, antes de mais nada, a não perder o livre-arbítrio e autonomia como resultado da imposição de determinadas formas de vida”.
Além das recomendações das Nações Unidas, a continuada aposta na institucionalização ignora ainda pareceres da Agência dos Direitos Fundamentais (FRA na sigla em inglês). No relatório “From institutions to community living”, publicado em 2017, a FRA emite várias opiniões, das quais se destaca que “todos os Estados Membros devem adotar estratégias de desinstitucionalização”.
A pergunta do BE à Comissão Europeia
Por cá, a situação chegou aos ouvidos do Bloco de Esquerda (BE), que não lhe ficou indiferente. A eurodeputada Marisa Matias enviou mesmo uma pergunta à Comissão Europeia a pedir esclarecimentos relativos ao uso indevido dos fundos comunitários na construção de soluções de institucionalização. A resposta da comissão não convenceu os bloquistas: “O Governo dos Açores diz que tem uma política social abrangente destinada às pessoas com deficiência, prioritariamente para as manter na comunidade. Apesar de estarem disponíveis estruturas de acolhimento para esse efeito, tal nem sempre é possível. A decisão de construir o lar residencial a que o Senhor Deputado se refere foi tomada após terem sido consideradas todas as possibilidades existentes de apoio às pessoas com deficiência na comunidade, Quanto ao respeito pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Governo Regional dos Açores informou a Comissão de que todos os residentes são contemplados por um plano individual, que visa o seu regresso a casa ou a sua integração noutras estruturas de resposta. Além disso, a assistência pessoal prestada às pessoas com deficiência nos Açores é assegurada pelo serviço de apoio domiciliário, bem como pelas várias respostas no domínio da formação profissional e de formação que potenciam a inclusão social.
O projeto é financiado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional no âmbito do Programa Operacional Regional dos Açores para 2014-2020, em regime de gestão partilhada com a autoridade de gestão responsável pela seleção dos projetos.
A Comissão acompanha, por conseguinte, a execução do programa e não hesitará em tomar medidas corretivas se detetar violações da legislação da UE aplicável ao projeto em questão”. Ao i, o deputado Jorge Falcato diz mesmo que o partido irá “questionar novamente” porque a comissão “responde às questões que levantámos, nomeadamente ao facto de estar a ser financiada uma estrutura residencial”.
Sobre o caso específico do lar residencial açoriano, Jorge Falcato defende que “o uso de fundos comunitários para perpetuar uma política de institucionalização vai contra tudo o que está prescrito na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, nomeadamente no artigo 19, e está claramente em contradição com o compromisso que o Estado português assumiu de pôr em prática políticas de desinstitucionalização. O governo já deveria ter definido políticas sérias de desinstitucionalização baseadas em serviços de base comunitária, assistência pessoal, apoios sociais às famílias, acessibilidade, formação e emprego, etc. que permitam que quem está internado em instituições possa libertar-se e fazer a sua vida junto dos seus familiares, manter redes sociais de vizinhança e ter poder de decisão sobre a sua vida, o que não é possível se estiver institucionalizado num Lar Residencial onde nem pode escolher o canal de televisão ou o que vai comer no dia seguinte”.