Mário Cordeiro. “Não vale a pena andarmos armados em super-homens porque não somos”

Mário Cordeiro. “Não vale a pena andarmos armados em super-homens porque não somos”


O pediatra tem um novo livro sobre o que o stresse anda a fazer às famílias e como mais calma pode fazer bem a pais e filhos 


Fazia anos de casado, estava a pensar num restaurante simpático para ir jantar com a mulher. De repente sentiu como que um elefante a esmagar-lhe o peito, tudo o que um professor da faculdade lhe tinha explicado um dia sobre os sintomas de enfarte. “Espero que nunca passem por isso”, ouviu nos bancos do curso de Medicina. Aconteceu-lhe no final de 2017. Acredita que a vida se desperdiça nas correrias em que cada vez mais se vai vivendo, ao ponto de se perguntar à pressa aos outros “está tudo bem?”, porque perguntar “como te sentes?” implica ter e querer ter tempo para ouvir. Já tinha bem adiantado o projeto do livro sobre pais apressados mas passou a fazer-lhe ainda mais sentido. 

Começa este novo livro “Pais Apressados, Filhos Stressados” com uma pergunta ao leitor: “Como é que chegámos aqui?”. Costuma ouvir o desabafo?

Infelizmente acho que percebemos como chegámos aqui, a reflexão é se queremos continuar assim, porque a evolução será seguramente para pior, ou se podemos inverter isto de alguma forma. Os pais partilham e é visível no comportamento. Às vezes em coisas tão simples como uma criança estar ali a brincar com uma coisa qualquer e a maneira como os pais gritam “não brinques com isso!”.

É querer mostrar que se controla a situação?

Não sei. Se a criança estiver aos berros, acho bem que digam “fala baixo”. Mas às vezes fazem um barulho normal de um brinquedo a bater noutro, comportamento de criança, e é quase como se fosse uma censura, “não sejas criança”. Há uma certa limitação da atividade normal das crianças e do ser humano no geral e é essa pergunta que faço aos leitores e que faço a mim próprio há já bastante tempo, desde que me comecei a interessar pelos comportamentos humanos. Sempre me fascinou muito perceber porque é que as pessoas se comportam de determinada maneira. Porque é que somos de determinada forma e podermos ser diferentes.

O consultório dá-lhe pistas?

Não há ninguém que não queira ser feliz e ter uma boa vida. O desabafo que oiço aqui é “temos pouco tempo, o manelinho passa a vida de um lado para o outro e nós também”. A questão é: o tempo não vai aumentar. Às vezes parece que vivemos na esperança de que o dia estique para 48 horas e a vida para 500 anos. Tendo em vista a realidade, porque é que não mudamos de estratégia ou até onde é que podemos mudar de estratégia, porque também não subscrevo a tese do “mude de vida”, “vá para uma aldeia remota”, “as cidades são horríveis.” É a pergunta que quero lançar. Se toda a gente aparecesse aqui feliz e bem disposta, “que bom, tenho a vida que quero, adoro estar no trânsito uma hora”, então estaria tudo bem.

A maior parte das pessoas que recebe não se sente bem com a vida que leva?

Diria 99%. Uma esmagadora maioria das pessoas que falam comigo não estão muito contentes. Claro que há uma insatisfação que é própria do ser humano, que nos faz evoluir. Num marasmo não haveria sequer arte, os movimentos criativos resultam de rutura, angústia. Portanto, ainda bem que o ser humano quer mais e melhor, outra coisa é sentir o stresse e angústia de uma vida apressada. Se tivesse de elencar o problema número um, seria esse.

Pensando nos seus primeiros tempos de pediatra, nota muito essa aceleração nas famílias?

Talvez. Esta revolução toda no acesso à informação e comunicação acho que veio dar uma aceleração enorme. Vê-se nos nossos gestos. Se uma pessoa carrega numa tecla e o computador ainda está a ligar, é logo um stresse. Mais rápidos ou menos rápidos, são todos rapidíssimos.


Fotografia de Mafalda Gomes

Estamos cada vez mais impacientes?

Sim, às vezes é o tempo de carregar a fotografia do ambiente de trabalho, as coisas todas. Aquilo demora um mínimo de tempo a abrir. Se demora um pouco mais já estamos furiosos. Começamos logo a lutar contra o bicho carregando em teclas sucessivas. Se o Word está a ruminar, carrego 20 vezes e depois fico mais furibundo ainda, abro 20 Words e tenho de os matar um a um.

Descrito assim parece um comportamento completamente louco.

Mas é. Sobretudo se pensarmos que estamos a falar de coisas de segundos. 

Transportamos essa impaciência e irritação para tudo, não? Para o trânsito.

Sim, ficamos crispados com facilidade. Por exemplo aquela cena de fim de semana, vamos comprar o jornal para ler. Sentamo-nos na esplanada. A ideia é vamos estar aqui um bocado a ler. Mas não. Começamos a pensar no que queremos e a tentar ver no radar onde está o empregado. Se o empregado foi lá dentro começa logo uma inquietação, um rosnar, “não está aqui ninguém, está isto cheio de gente”. E depois o “eles”, essa entidade…

É dos que rosna ou só observa?

Gosto de observar. “Eles deviam meter aqui mais empregados”. Como se nós é que soubéssemos da gestão da pastelaria. Manda-se um filho: “vai lá dentro ver”. Ou então pomo-nos num malabarismo a fazer sinais. Lá pedimos. Se não vem logo ou vem o empregado com um café para outra mesa, começamos logo a avaliar se pediram primeiro, se nós é que tínhamos direito. Isto é algo patológico: o normal seria esperar, ir lendo, o café lá chegaria e viveríamos com muito mais calma, tempo e paz. Mas não, temos excitação e stresse, que é transposto para o empregado e para as pessoas que estão connosco. Se eu estiver calmo enquanto espero pelo café digo “Zé não faças barulho”, “brinquem um com o outro.” Irritado começo “calem-se”, “chega”, “para que é que vos trouxe?”.

Observa muitas discussões dessas?

Sim, discussões de irritabilidade, anda tudo muito crispado.

Efeito de quê? Ainda da crise?

Não sei, provavelmente quem sofreu mais com a crise ficou triste, deprimido, mas não reagiu de forma tão histriónica. Um problema realmente grave é encarado com tristeza mas com calma. A maior parte das reações epidérmicas dos adultos, birras perfeitas, aparecem geralmente por motivos completamente fúteis. Resultam de um estado de frustração em que estamos mas sem haver verdadeiramente uma razão para isso. Um estado de permanente irritação de quem deixou de saber viver num registo de luta, adrenalínico – que devemos aplicar na escola, no trabalho, no fazer e mais todos os verbos transitivos – mas ao mesmo tempo garantir um registo endorfínico de calma, paz, que seria aquele que a pessoa encontra em casa e nos tempos de lazer.

E isso perdeu-se porquê? 

Acho que vem muito de não compreendermos a nossa biologia, de não percebermos que de facto existe este lado adrenalínico mas também temos de respeitar o lado mais calmo. Somos animais antes de sermos pessoas e cidadãos. Mas depois passa-se isto: cidadãos somos um bocadinho obrigados a perceber o que é porque se cuspirmos na rua, deitarmos o lixo, etc, a censura externa e eventualmente a polícia vem-nos bater à porta. A pessoa, nos seus sentimentos, já é menos compreendida, o que motiva discórdia familiar, conjugal. No fundo, as questões todas que resultam da falta de diálogo: num mundo com tanta comunicação, nunca se comunicou tão impropriamente. Olhar nos olhos dá empatia, não é um emoji que a cria, às vezes até reduz. Por fim, o nosso lado animal está completamente esquecido. Os miúdos na escola aprendem a biologia da rã, do coelho, do dinossauro… Do ser humano sabem muito pouco.

Dá algumas pistas no livro. Conta por exemplo que somos a uma única espécie que cora, como se fosse uma forma de prestar contas.

Até há uma série de televisão, “Lie to Me”, que romanceia um pouco isso. A interpretação de microexpressões diz muita coisa, se estamos a dizer a verdade, como é que nos estamos a sentir. O corar terá sido uma forma superior de desenvolvimento que permite mostrar à sociedade que sabemos que fizemos determinado erro. Não conseguimos fazer bluff do corar. Mostra que estamos arrependidos. 

É dos que cora muito?

No liceu às vezes diziam “Cordeiro, cora” e eu corava logo. É uma culpa existencial, sei lá. Mas o facto de o próprio sentir a face mais quente dá-lhe um feedback do que fez e permite à pessoa ter um comportamento mais adequado.

Falta perceber mais do nosso lado animal para gerir um pouco melhor o dia a dia?

Penso que sim. Devíamos dividir a vida numa parte empreendedora e noutra calma, estar cientes de que necessitamos de cultivar o nosso lado mais frágil e vulnerável. A tecnologia surge com estes dois grandes objetivos: o empreendimento e esse lado mais introspetivo. Muitos animais, as formigas ou os lobos, têm sociedades altamente organizadas, com hierarquias, com regras. Isto nunca mudou. O ser humano tem uma capacidade de leitura do momento e de mudar. A tecnologia começou com a oponência do polegar, a manipulação de objetos. Como somos fracos e ao mesmo tempo preguiçosos, permite-nos ganhar tempo. Mas esse tempo devia ser usado para desenvolver a outra dimensão. Começou a ser desenvolvida no Neolítico: quando aparece o armazenamento de cereais, as pessoas passaram a ter mais tempo e começaram a desenvolver-se a arte, ideias, filosofia. 

Com mais tecnologia, teoricamente mais tempo, devíamos ter mais arte e filosofia?

Muito mais. E é espantoso que há mais de meio século não se produza uma ideia filosófica. O homem do Paleolítico, ao contrário do que pensamos, não andava todo o santo dia a caçar e lutar. Claro que mal escurecia, acabava o dia, mas entretinha-se já com alguma parte artística e alguma parte de diálogo, que não era maior porque ainda era muito rudimentar a linguagem. A linguagem evoluiu extraordinariamente. Ninguém está à espera que exista uma evolução perfeita, mas haverá aqui um subaproveitamento.

Começa em criança?

As crianças estão a ser habituadas a não pensar. A Universidade do Porto fez há pouco tempo um estudo, creio que no secundário, em que chegou à conclusão de que a média de perguntas por aula era duas. Fazendo uma pool de todas as perguntas, em 60% dos casos a pergunta era “setor, posso ir à casa de banho?”.

Isso não foi sempre assim?

Não acho que tenha sido. E também depende dos professores. Tive a sorte de fazer parte do meu estágio em Inglaterra. O ensino inglês não era aquele género de encher um anfiteatro de 100, 200 ou mil alunos e depois estar ali a alguém a debitar. Era tutorizado. Cheguei a dar aulas lá e tínhamos grupos de cinco, seis alunos. Obviamente havia aulas teóricas e eram mais expositivas. Mas no final da aula o professor lançava o desafio de estudar ou pensar sobre alguma coisa.

Eram aulas de quê?

Saúde pública pediátrica. Um professor dava-nos um livro sobre como prevenir acidentes ao pé da escola. Dizia: “daqui a dois dias vamos discutir este livro no Brown’s”, que era um café ali perto. Às cinco da tarde lá estávamos e não era dizer que tínhamos lido o livro e desbobinar, perguntava o que achávamos da estrutura, coisas assim. 

Isso se calhar dá para aplicar assim na faculdade, mas no básico ou secundário é mais difícil.

Há sempre forma de o fazer. Pergunto quantos professores de português do 11.º ano aqui da região de Lisboa disseram aos alunos que até dia 18 está uma exposição gratuita na Gulbenkian sobre “Os Maias” ou organizaram uma visita? Se fosse 100% seria perfeito, suspeito que não. Às vezes convidam-me para ir dar umas aulas ao Liceu Filipa de Lencastre onde andam os meus filhos – um está no 11.º e o os gémeos estão no 10.º – e oiço aquele comentário “Dos ‘Maias’ já há o filme, que bom”. O objetivo não é saber a história, conta-se num minuto. É o prazer de ler Eça, as palavras, a descrição dos lugares. Gostei muito do filme, mas quando li fantasiei o Carlos da Maia e a Maria Eduarda à minha maneira e é essa fantasia que se tem na leitura que é importante.

Neste seu livro fala do cúmulo de hoje haver livros para miúdos com histórias que se leem num minuto e meio.

Encontrei um, é assustador. Agora controla-se o tempo de estadia de pais e filhos ao fim do dia? Tem de haver uma campanha pela importância de ler as histórias com tempo para demonstrar que quem quer despachar está errado.

No seu livro descreve aquela cena típica em que as crianças pedem para ler a mesma história dia a após dia e os pais a certa altura estão cansados, vão espreitando as notificações no telemóvel.

É natural, não gosto de pôr isto entre maus e bons, santos e pecadores.

Mas são coisas que lhe contam ou passou pelo mesmo com os filhos mais novos?

Nunca tive muito essa coisa, mas acho que tem muito a ver com a educação que tive. Agradeço aos meus pais e avós terem-me ensinado a frugalidade. O fazer opções. O meu pai era uma pessoa que tinha imensas solicitações.


Fotografia de Mafalda Gomes

Um pai pediatra.

Sim. A dada altura era o único professor de pediatria do país. 

Passava pouco tempo convosco?

Lá está, não. Havia colegas dele que ficavam a dar consulta até às duas, três da manhã, porque havia necessidade – hoje há bancos de urgência – mas para ganhar mais dinheiro também. Tínhamos uma boa vida e não vou negar isso mas tínhamos o que precisávamos, não mais do que precisávamos. Era uma pessoa altamente espartana, tinha vindo sozinho de Goa aos 14 anos, para casa de um tio jesuíta, muito rígido, rigoroso e exigente. Herdou um bocado isso. Quando tínhamos boas notas, enquanto alguns pais ofereciam prendas aos filhos, o meu pai dizia sempre “têm livros, andam numa escola boa – andava no Pedro Nunes – e portanto não fizeram mais do que o que deviam”. Às vezes irritava-me, via os meus amigos com isto e aquilo, mas fez-me muito bem. O meu pai era muito solicitado até para vida social e nunca fez nada disso. Gostava de estudar, fazia consultório porque precisava, tinha oito filhos, mas eram só três dias por semana entre as três e as seis da tarde. 

Depois ia para casa?

Às seis encerrava e ia para casa. E à hora de almoço ia sempre a casa. São as memórias que ficam e que depois reproduzimos, são os tais arquétipos de opções de vida: mesmo quando estava a trabalhar na faculdade, fazia tudo por ir almoçar a casa. Gostava de estar ali aqueles dez minutos e nós todos fazíamos um esforço para ir almoçar. Depois íamos tomar café. O meu pai ia sempre dormir um quarto de hora antes de ir apanhar o metro para ir para o consultório e pedia sempre a um de nós que escolhesse um disco para pormos a tocar. Não tocava nenhum instrumento mas era um melómano e contava sempre alguma coisa sobre as músicas.

Herdou dele o seu lado melómano?

Sim. Desde os quatro, cinco anos que nos pôs a todos a aprender piano. Dizia: “não espero que vão todos dar concertos”. Mas fazia bem aprendermos um instrumento, pelo rigor, por nos fazer bem.

Pelo treino da paciência?

Enganar e repetir não sei quantas vezes. Uma das coisas que aprendi mais com ele foi que não somos perfeitos, longe disso. O que devemos pensar é que somos imperfeitos mas isso é uma vantagem: é um estímulo a aprender, a melhorar, a aperfeiçoar. Voltamos ao início: leva-nos a pensar no que podemos fazer para que amanhã seja melhor do que o hoje.

Pais que não conseguem fazer o esforço de parar estão a criar filhos que vão fazer o mesmo?

Não sei se é um esforço, ou um dever, ou uma capacidade. Com certeza que há trabalhos que não o permitem e as pessoas não se devem culpabilizar e isso é uma coisa que se nota: muitas vezes a insatisfação com a vida vem de se fantasiar uma vida impossível. É muito bonito dizer que devíamos arranjar uma casa no centro de Lisboa – sabemos bem o que isso significa em termos de preços. Lá vai a pessoa morar não sei para onde e tem de fazer o IC19, o IC17 e por aí fora. Mas o que fazemos quando vamos dentro do carro? Vamos a rosnar porque demora 45 minutos a chegar a Lisboa ou aproveita-se para conversar? Quando chegamos a casa, o mesmo. Acho que valorizamos pouco o lar. 

Agora há uma guru das arrumações, Marie Kondo, que diz que devemos agradecer à casa.

Bom, agradecer à casa.. cada um agradece a quem quiser. Como quem agradece a Deus ter sido operado e ter ficado bom, eu agradeço aos médicos, aí sou mais prosaico. Depois de um dia de luta, a casa tem de ser o verdadeiro lar dos romanos. Lar vem de lareira. No sistema matriarcal romano, era mantida acesa pela mãe e o pai trazia a lenha. A família reunia-se à volta do fogo. Quando se regressa a casa, o pensamento devia ser, goste-se mais ou menos da casa que se tem, que é o sítio no mundo que está mais à nossa medida. E quem lá está são as pessoas que eu amo mais. É o nirvana. Devia deixar essa luta diária do patrão, do trânsito, que até pode ser estimulante mas também é cansativa, de fora. 

Em termos práticos significa o quê? Desligar o telefone?

Sim. Ou outra coisa que para as crianças faz uma diferença enorme: cumprimentá-las, brincar, perguntar às pessoas “como te sentes?”, que é uma pergunta que não se faz. Não digo que não se pegue mais no telefone ou não se responda a um email, mas numa oportunidade. Então com filhos pequenos este espaço tem de ser muito marcado. Fazermos uma dessas tais microexpressões, abandonar os sacos, a mala do computador – no fundo dizer ‘eu preciso dos meus braços’ – e abraçá-la é uma coisa fundamental. E depois pergunta-se “como foi o dia, como te sentes?”. Se quer brincar, vamos brincar. Daí a um bocado então vai-se arrumar as compras, já a criança teve um banho de mãe ou pai e até quer brincar sozinha. 

Se os pais entram agarrados ao telefone eles notam logo. Estão à espera desses gestos?

Sim, claro. Isto são dez, 15 minutos que fazem a diferença. Há bocado dizia que não perguntamos a uma pessoa “como te sentes”. Não é só em casa. A pergunta abre um leque de possibilidades. Se a pessoa disser que se sente bem, ótimo. Se se está com um problema, é um problema que temos de ouvir. E por isso a pergunta é “então tudo bem, não?”. É pôr um muro e dizer “por favor não venhas com queixumes, não tenho pachorra”. E o outro responde: “sim, vai se andando”. É uma fuga relacional. Vamos tendo muito pouca empatia e disponibilidade uns para com os outros. Em contrapartida, há muito narcisismo, exibicionismo, mesmo de quem tem vidas que não correspondem àquilo que se desejava. As redes sociais são um espelho dessas vidas fabulosas.

As viagens, os restaurantes.

Sim, “fui almoçar aqui”, “olha para mim em Nova Iorque”. Ninguém mete “olha para mim no trânsito”.

Há quem meta.

Sim, mas aí é para criticar.

Já tem sido dito que essas comparações nas redes sociais aumentam a nossa frustração. Aquele desabafo do “não sei quem está na Islândia e eu não vou a lado nenhum”.

Pois, e a comparação é com coisas episódicas. E não se diz logo onde é para as pessoas perguntarem, “onde estás, que paisagem tão bonita”. E lá vem a resposta: “algures no norte”. Depois de se fazer sofrer um bocadinho é que se diz onde é.

Estamos mais perversos?

O ser humano é mauzinho até prova em contrário. Acredito que tem uma possibilidade de ser muito bom mas tem uma parte narcisista, egocêntrica, uma ganância que se não for domesticada vai crescendo. Se não percebermos o sofrimento dos outros, se não tivermos empatia, se não valorizarmos o que temos, portanto sermos frugais, entramos numa espiral.

Sente os pais preocupados em passar isso aos filhos?

Sinto que passam muitas vezes a mensagem “tens de ter, tens de ter, tens de ter”. Às vezes fico a pensar nesses casos todos que vemos: para quê querer ter tanta coisa? Muitas pessoas passam a vida a trabalhar e nem gozam nada, não têm tempo. E isso é outra coisa que vejo: as pessoas pensam a certa altura que são imortais, aquela ideia que se tem na adolescência. Ora não vamos viver para sempre, é uma ilusão. A nossa vida é limitada. Mais, é quase ridícula quando comparada com uma árvore ou um saco de plástico. Até coisas tão banais vivem largamente mais tempo que nós. Ainda noutro dia estava em Serralves a olhar para uma oliveira. Aquela oliveira carcomida tinha mais de mil anos. Se uma pessoa se puser a pensar no que era isto quando aquela oliveira nasceu, como era o mundo, relativizamos muita coisa. Faz-nos sentir ridículos, não num sentido pejorativo, mas mostra como a nossa existência é pequenina. Não vale a pena estarmos armados em super-homens porque não somos.

Preparou este livro depois de passar por um desses embates, um enfarte.

Por acaso o livro já estava praticamente escrito porque esta já era uma questão que me preocupava. Tentei sempre não andar muito stressado. Ocupado sim, gosto imenso de fazer coisas. E tenho uma enormíssima angústia existencial, vivo com este dilema desde miúdo, desde que lembro de mim próprio. Senti sempre esta dicotomia entre querer fazer muita coisa e, ao mesmo tempo, sentir que o tempo não ia chegar para tudo.

Nunca se achou imortal?

Não, nem mesmo nessa fase da adolescência. Os meus amigos gostavam muito da borga, mas eu preferia estar num bar que desse para conversar. O Procópio, o Tostão, o Foxtrot. A Primorosa de Alvalade, que agora apareceu outra vez. Eram sítios onde havia hipótese de conversar e onde discutíamos coisas filosóficas, a existência de Deus.

Política?

Estávamos no antigo regime. Ouvíamos discos clandestinos, Léo Ferré, havia sempre alguém cujo o pai ou mãe ia a França e lá trazia na mala do carro os vinis. Livros de Simone de Beauvoir que eram censurados mas alguém trazia. 

Simone de Beauvoir chegaria a vir cá com Sartre uns anos mais tarde. Foi vê-los?

Não, mas lembro-me de ter ido ver o Maurice Béjart ao coliseu no dia em que o Robert Kennedy foi assinado. No final ele foi chamado ao palco, altamente aplaudido, falou do Kennedy e disse “vive la liberté”. Mal chegou aos camarins, a PIDE agarrou nele e mandou-o para França. Lembro-me de esse episódio me ter chocado muito. Mas o livro que mais me marcou e que li em francês foi o “Les Misérables”. A perceção das injustiças. 

Não o via na rua?

Fui despertando pouco a pouco. Apesar de viver num ambiente burguês e onde não faltou nada, ia tendo alguma noção. O meu pai sendo uma pessoa conservador, católica…

Pró-regime?

Não era, era mais Sá Carneirista. Eu passava à máquina alguns dos estudos que ele fazia, que era uma forma de ganhar uns cobres naquelas férias de verão enormíssimas, e lembro-me de um artigo que ele escreveu e que me marcou. Analisava a mortalidade infantil nos vários distritos e explicava porque é que, por razões sociais, era maior nuns do que noutros.

Nessa altura morriam mais de 50 crianças por cada mil nascimentos.

Muito mais. Quando eu fiz pediatria já depois do 25 de Abril a taxa de mortalidade andava nos 60 por mil. Nesse artigo o meu pai mostrava que havia uma diferença brutal entre mães licenciadas e mães analfabetas, o que ainda há hoje, mas havia também uma diferença cultural. O Alentejo tinha os melhores números do país.

Mesmo sendo uma zona rural?

Sim, uma zona paupérrima com toda a falta de condições. Leiria também foi sempre campeã em baixa mortalidade infantil. Quando se ia para a região do Porto e Braga, que era equivalente em termos de pobreza, já tinha indicadores mais altos. Tinha a ver com indicadores de tradição. O aceitar ou não a morte de uma criança. No norte era mais um anjinho, no sul havia uma revolta, havia maior reação, o pensar o que se podia mudar.

Como viu o recuo da mortalidade infantil em 2018?

Os números hoje são tão baixos (3 mortes por cada mil nascimentos) que não podemos ver um ano só, é preciso ver clusters de vários anos. Inferir logo que tem a ver com os serviços de saúde e o SNS é errado. Agora o que a DGS devia fazer todos os anos é analisar cada morte. Para lá de serem 50, 60, 100 ou 200, o que interessa é perceber se eram evitáveis ou não.

Ia falar-me do susto de saúde que teve.

6 de dezembro de 2017.

Um dia como os outros?

Um dia mais tranquilo que os outros. Era quarta-feira, como hoje, um dia em que resolvi já algum tempo tirar para fazer aquilo que me dá na real gana. Trabalhar, escrever, o que for, mas ter um dia mais calmo. Tinha acabado de passear o cão depois de almoçar com um dos meus filhos que teve um intervalo no Filipa. Cheguei a casa, só eu e o cão, fui tocar violino. Era o dia de aniversário do nosso casamento, a minha mulher estava a trabalhar e até tinha acabado de lhe telefonar para dizer “hoje os miúdos ficam e nós vamos jantar a qualquer lado”. Ela até disse: vê lá isso, escolhe um restaurante giro. E eu ia pesquisar para ver um sítio novo. De repente começo com um elefante em cima do peito, a sensação que se vai morrer, é uma coisa única.

Percebeu logo?

Sim, tinha aprendido isso tudo no curso. Tive um professor de cardiologia que dizia sempre: “isto é muito simples, é um elefante sentado em cima do peito, depois a tromba do elefante faz assim uma curva para o braço, um enjoo que não dá para vomitar e a sensação que vai morrer”. E nós perguntávamos: então mas a sensação que vamos morrer temos todos? Isto é outra coisa. Uma coisa é saber que se pode morrer, outra é saber que vai morrer. E lembro-me de ele dizer “espero que nunca passem por isso, mas se um dia passarem, veem que é diferente.”

Pensou nele?

Senti exatamente isso. Percebi logo que era um enfarte. Agarrei no telefone fixo e no portátil, enquanto num ligava para o INEM, no outro ligava para a minha mulher. E ela “então já arranjaste o sítio?”, e eu “olha estou a ter um enfarte”. Apanhou o susto da vida e veio ter comigo, já me apanhou a caminho do hospital. Ainda fui ali a um centro de cardiologia perto de casa, arrastei-me para um táxi. Abri a porta da rua – são aqueles momentos de lucidez – lembrei-me que se viessem e eu estivesse K.O., ter a porta aberta era melhor. Agarrei-me à cadela, precisava de sentir calor de algo vivo porque senti mesmo que ia morrer. Mas também não senti medo. 

Perdeu os sentidos?

Nunca cheguei a perder. Mas o que me surpreendeu foi não ter tido medo. Deram-me morfina, as dores são uma coisa pavorosa. Mas tive sorte, era uma quarta-feira às quatro da tarde, não havia trânsito, não estava a chover. São aquelas coisas que podem fazer a diferença. Lembro-me de desaguar quase diretamente da ambulância para a sala de cateterismos e já lá estava tudo preparado, foram impecáveis em Santa Marta e a via verde coronária que existe para estes casos é muito boa. Estava mesmo muito muito mal.

O médico disse-lhe?

Deu a entender que se tivesse esperado mais um bocadinho se calhar… estava todo entupidinho. Foi tudo um bocado surrealista ao mesmo tempo.

Viu o filme da vida?

Não. Senti duas coisas: se isto der para o torto, chegou a altura. Foi um aceitar de que ninguém é eterno. Mas por outro lado uma enorme esperança de que ia correr bem. Uma duplicidade, mas não antagónica. Vai correr bem, se não correr não correu. Como lhe disse, sempre tive alguma angústia existencial, pena da finitude da vida. Não é medo da morte, é pena. Medo de sofrimento, claro, mas é mais a pena. Gosto tanto, tanto, tanto de viver e todos os dias encontro mais uma razão, mais uma causa, mais uma coisa interessante, que me faz uma enorme pena saber que há um fim.

Depois de uma experiência dessas faz-se o quê? Chegou a casa e fez uma bucket list?

Também não digo tanto, mas houve coisas que mudei. Forcei um bocadinho que o livro que saísse, escrevi algumas partes de novo, mas é uma bocado ter esta insistência de que não é preciso chegar, no meu caso aos 62 anos com um enfarte do miocárdio e ver a senhora da foice à frente, para fazer mudanças. Eu já tinha um dia a meio da semana para respirar, foi por não querer aturar chatices na faculdade que resolvi um dia aposentar-me precocemente – o ambiente era de tal forma distorcido que já não me interessava nada aquelas lutas intestinas de poder. O que expresso é muito isto. O tempo é escasso e finito e não vale a pena pensar que não é. O epílogo do livro é como se fosse escrito pelo cão e passa essa mensagem. Tenho uma relação muito especial com os cães, de dia para dia sou cada vez mais canídeo – estou envolvido em não sei quantos projetos, associações, na provedoria dos animais de Lisboa. 

Mete o cão a observar a família acelerada.

Sim, pensei que no meio do caos que se estabelece entre os humanos, o cão observa. Por não ter noção do tempo, tem todo o tempo do mundo. O ser humano vive aflito porque ou não tem tempo, ou acha que tem todo o tempo e se não for hoje é amanhã, não sabemos viver com a noção de tempo e com este pavio curto que temos, quando ainda por cima depois há crises, doenças, isso tudo. O cão é um felizardo.

Não nos podemos libertar da noção do tempo.

Mas podemos pensar todos os dias se temos liberdade para mudar o presente e futuro e acho que temos. E é isso que tento fazer no livro, dar algumas dicas.

Um dos temas que foca é o acordar das crianças, aquele stresse de manhã em que, a certa altura, os pais estão a culpar os filhos por irem chegar tarde ao trabalho, por não se despacharem.

Às vezes temos uma linguagem de adultos que as crianças não percebem. Essa história em que a criança está a dormir tranquilamente e é acordada assim. É impossível que uma criança que esteja a dormir e a sonhar com qualquer coisa, de repente às sete e meia da manhã seja despertada e diga: “sim, senhora, vou levantar-me, tomar o pequeno-almoço, lavar os dentes, tudo sem fazer birra”, isto com três ou quatro anos. É impossível, não há hipótese. Temos de fazer as coisas de maneira diferente.

Como?

Acho que temos de começar a ser mais exigentes com as escolas, com o sistema laboral. Os nórdicos nem sempre foram “os nórdicos”, neste sentido de serem mais evoluídos. Já estiveram como nós. Quando me dediquei a prevenção de acidentes e fundei a APSI (Associação Para a Promoção da Segurança Infantil), comecei a analisar os dados que havia em cada país. Por exemplo na Suécia, até aos anos 50 a mortalidade por acidentes era igual à nossa. E de repente nós continuámos lá por cima e a Suécia veio por ali abaixo.

O que mudou?

Mudou uma coisa, que é isso que acho que tem de mudar. É uma história fantástica, de um professor que acabou por morrer num acidente, para salvar o cão. O prof. Berfenstam, que era de Upsala, conheci-o pessoalmente. Um dia foi convidado pela televisão sueca para ir a um daqueles programas muito vistos nos anos 50, dava perto da hora de jantar e era dirigido aos pais. A entrevista era sobre alimentação das crianças. A jornalista começou a fazer as perguntas sobre o tema e ele começou a responder. De repente para e diz “desculpe, não vou falar mais de alimentação. Estou a falar de uma coisa que sinceramente, coma arenque, coma salmão, tanto faz. Quero falar de outra coisa: quero falar dos acidentes que estão a matar n crianças suecas. Isso sim é o que quero discutir convosco.” E lá disse o que era preciso fazer, prevenir, melhorar os sistemas de proteção nos automóveis.


Fotografia de Mafalda Gomes

As primeiras cadeirinhas?

Sim, havia um engenheiro de biomecânica que tinha começado a desenvolver um protótipo porque tinha um filho que tinha morrido num acidente e nunca se convenceu de que aquilo fosse inevitável. Planeou uma cadeira, fez testes com volvos antigos. O Berfenstam faz esse momento na televisão, vai para casa e de repente toca o telefone e era o ministro dos Transportes da Suécia a dizer que, como pai, tinha ficado completamente siderado com a situação, não fazia ideia. Pediu-lhe para ele ir a Estocolmo para falarem. Ministro dos Transportes que veio a ser primeiro-ministro e que era o Olof Palme, que depois foi assassinado numa rua de Estocolmo. Dispensava a segurança, dizia sempre que queria andar com a mulher e os filhos, ir ao cinema sem ser com uma legião atrás. Conheci-o, a ele e à mulher, e era uma pessoa inacreditável. Para mim é o ex-libris do que deve ser um político, é talvez o político que mais admiro na história.

Cá quem são as referências?

Cá houve pessoas boas. Há políticos ótimos, há políticos péssimos. E depois há os malandros e os não malandros. Não vou dizer nomes mas é verdade.

Como vê o atual momento político? A crispação que se vê nos debates?

Já respondo porque é importante. Concluindo a história do Berfenstam. A partir daí o Olof Palme disse ao ministro “então faça-se, apresente medidas ao parlamento, orçamente e se for aprovado implementamos”. No fundo os saberes técnicos conjuntamente com a vontade política e uma população sensibilizada, contribuiu para uma sinergia que levou à mudança. O mesmo aconteceu cá. Quando a Leonor Beleza foi um dia visitar o Hospital Maria Pia e o administrador fez os salamaleques do costume, o Octávio Cunha disse: “Não, não está tudo bem, e eu seria um péssimo funcionário público e péssimo servidor do ministério se dissesse que está”. Disse que morriam ali crianças que vinham de Bragança, de Trás-os-Montes por más condições de transporte e acidentes, porque faltavam ventiladores. Ela agradeceu a honestidade e mal chegou a Lisboa convocou-o. E foi aí que se desenvolveu em Portugal o programa de saúde materna e infantil. Curiosamente, e já vamos à crispação, a Leonor Beleza era do PSD, disse apenas que a comissão devia ter como presidente Albino Aroso, que era do PSD mas até muito de uma ala à esquerda, uma pessoa reconhecida, pai do planeamento familiar, um coração maior que a caixa. Mas depois a ministra disse escolham três obstetras e três pediatras para trabalharem. As seis pessoas escolhidas eram todas ligadas ao PS ou ao PCP, ou não tendo partido, tudo gente esquerda. Nunca, com nenhum ministro, e trabalhei com vários, nunca houve problemas políticos. Houve sempre o compromisso: nós éramos os técnicos. Claro que a decisão é política, mas tivemos toda a liberdade. 

Mas mesmo no livro há um desabafo de que o tempo da política nem sempre é o mesmo do dos técnicos.

E é verdade, houve discussões várias, mas havia um à vontade tal que tem se cultivar. O que às vezes é pena é que não haja mais conciliação. Sei que é difícil, da mesma forma que é difícil para um sportinguista aplaudir a jogada do adversário e vice-versa. Acontece excecionalmente, quando o Renato Sanchez meteu aquele golo, a Luz toda levantou-se apesar de ter enterrado o Benfica. São casos excecionais e geralmente assobia-se o adversário, mas na política também há isso e é pena não se ver nunca nos debates, quando justifica, um “por acaso tem razão”. 

Os problemas do país resolvem-se mais devagar?

Muito mais, sobretudo os problemas que são cada vez mais sistémicos e que, por isso, precisavam de sinergias maiores.

Se agora fosse a sua vez de interromper o programa, alertava para quê?

Está a perder-se demasiado tempo com o combate de galos quando há coisas a resolver. São precisos grandes investimentos na saúde, que está numa situação crítica, e na educação. A saúde tem um problema estrutural de falta de recursos e corremos um risco de rutura – o orçamento da saúde tem de ser maior. E é preciso acabar com este clima. Os enfermeiros têm sido muito maltratados desde há décadas. Hoje querem, e muito bem, um estatuto diferente, mas sou completamente contra esta greve às cirurgias. Sou pelo direito à greve, mas o intuito da greve é incomodar o patrão. Incomodar aqueles que não têm nada a ver com o caso e sobretudo os mais desfavorecidos, acho uma perfeita indecência.

São quem continua no SNS?

Tendencialmente. Qualquer pessoa que precise de uma cirurgia a uma tendite e tenha um seguro vai ao sistema privado ou tenta desenrascar dinheiro com a família, como for. Mas quem não tem, não tem mesmo. A redução das desigualdades é talvez o grande problema do nosso país. Na educação também há escolas a cair e problemas, mas para mim não é tão preocupante haver paredes mal pintadas, até porque os miúdos se estão nas tintas. Para mim o problema da educação é estar um sistema educativo velho, que não está a pensar no futuro. A arte está cilindrada, a parte física idem.

Os professores testemunham que, quando os pais pressentem um jeito para as artes, tentam desviá-lo.

É logo, qualquer talento é logo abafado. As pessoas se forem boas, vão ser boas, é isto que temos de passar. O investimento dos pais deve ser em cidadania, respeito, em estudar com certeza mas também em ter tempo livre. Autonomia com responsabilidade. 

Qual é que é hoje a principal preocupação dos pais?

Acho que é quererem ser pais perfeitos e fazerem tudo bem e culpabilizarem-se muito se alguma coisa corre mal. Têm sempre as gavetas cheias de culpa. Querem muito que os filhos tenham tudo e não conseguem dar-lhes um bocadinho de frustração. Quando dizem “Maria não vais comer um gelado porque acabaste de comer um”. Alguns não conseguem dizê-lo, a Maria faz uma birra e leva um segundo gelado. Mas mesmo aqueles que conseguem e dizem que não, ficam mortificados, “o que fiz à minha filha?”. 

É o medo de traumatizar.

Sim, coitadinha, queria tanto o gelado. Não deu e pronto. As pessoas têm de perceber que não é isso que põe em causa o amor dos pais, pelo contrário, as regras, a firmeza e haver alguma orientação são uma demonstração de amor, mesmo que os filhos fiquem furiosos. O nosso papel é desmontar essa fúria e mostrar que há mais tempo, há mais gelados. É essa a perspetiva que os adultos têm de dar e por vezes se demitem, a perspetiva de quem já viveu, tem experiência e que a experiência diz que é preciso ter calma. 

Dar significa ter um feedback mais rápido. Pais que vivem com pressa…

Sim, mas é comprar afeto, é despachar tudo. Mas se calhar acaba o segundo gelado e pede o terceiro e com que cara é que a pessoa não dá o terceiro. E este quero tudo já leva ao narcisismo, que é a pior doença social, a que desgasta mais. Está muito relacionada com poder: o narcisista quando tem poder, seja doméstico, social ou político, sobe aos píncaros.

Falou-se esta semana do flagelo da violência doméstica. Está muito por fazer?

Felizmente cada vez mais se fala destes casos, é dos maiores serviços públicos que a comunicação social tem feito. Lembro-me bem de ser normal, portanto nunca ser tido como violência, muito menos notícia, um marido bater na mulher, espancá-la, quando a equipa perdia, quando estava chateado ou quando tinha bebido para lá da conta. Bebia-se mais do que se bebe agora, os homens iam para o campo, levavam os garrafões. Se alguém levasse um garrafão de água era ridicularizado. E as frustrações, fosse do clube perder, fosse a mulher dizer alguma coisa. Depois como os homens no geral ainda são mais fortes do que as mulheres e não havendo argumentação verbal… isso é outra coisa que há que pensar. Quando as pessoas eram mais analfabetas, com vocabulário limitado, faziam vingar as suas ideias à força, o argumento era a chapada. 

Discutir com uma pessoa bêbada…

Pois, até a pessoa mais erudita fica limitada. Portanto havia uma violência brutal e não nos esqueçamos que há 100 anos um homem podia matar a mulher se a apanhasse em adultério e era considerado defesa da honra. Houve uma grande evolução histórica e tiro o chapéu a todas as organizações que têm dado o poder às mulheres de falar, isto acompanhado de filmes e séries que dão também força. Disto isto, não se pode subestimar o que continua a acontecer. Deve incutir-se o respeito pelos outros. Claro que haverá casos de psicopatas no meio, mas haverá muitos problemas de álcool e um problema de má gestão da raiva. Temos de ensinar as crianças a gerir a raiva, não pode ser partir tudo. E nós próprios não soltando impropérios só porque um carro está mal estacionado. Temos de conseguir ser menos violentos todos. E perante casos concretos, não pode haver contemplações. 

As crianças apanhadas no meio destes casos ficam marcadas para sempre?

Este último caso foi trágico mas as crianças ficam muito marcadas. A violência verbal, a acrimónia entre os pais ou no ambiente familiar, faz as crianças ficarem encolhidas.

O Papa pediu noutro dia para os pais não discutirem à frente dos filhos.

E tem razão, embora ao estarmos a viver como animais enjaulados, ficamos como aqueles peixes lutadores que não se podem pôr dois no mesmo aquário. É instintivo. Até pode ser um aquário de dez metros que eles vão encontrar-se e lutar. Portanto passa por combater isto e ensinar às crianças que não pode haver violência. Uma das coisas que me assusta mais é constatar que os números da violência no namoro estão a aumentar. Mais de metade das raparigas de 15 e 16 anos acham normal a violência, acham um sinal de amor que os namorados lhes casquem em cima, ver mensagens do telemóvel, formas capciosas de controlo. Isto é assustador. E por isso acho que a escola, mais do que ensinar a multiplicação de potencias e superlativos, tem de fazer este exercício de mostrar que isto é inaceitável. Isto também começa pela maneira como tratamos os animais.

Há quem goze com esta nova forma de elevar os direitos dos animais.

Já fui gozado n vezes por ter projetos nesta área. As pessoas perguntam: “interessavas-te por crianças, agora és pelos animais?”, como se uma pessoa fosse de um clube e mudasse para outro. Hannah Arendt tinha razão quando falava da banalização do mal. Quando o mal é banalizado, custa a primeira vez mas depois uma pessoa habitua-se. Há uma dessensibilização, tal e qual as vacinas das alergias. O que são as vacinas dos ácaros? Dá-se tantos ácaros que a certa altura o sistema imunitário já não reage, desiste. A maneira como tratamos os animais, a natureza, diz muito. 

Já se tornou vegetariano?

Não, como menos carne do que comia porque gosto mais de peixe. Acho que o ser humano existe e não temos de o tirar do ecossistema, mas podemos usar a nossa inteligência para não dar cabo disto.

Tem-se usado a pobreza do passado para explicar a má qualidade de vida na terceira idade. Com o stress de hoje, como é que lá chegaremos?

Pois, não sei. Não defendo a miséria do tempo de Salazar, mas a vida rural tinha alguns fatores protetores que importa resguardar, a confraternização entre as pessoas. Encontrar os vizinhos, conversar. O relacionamento social é altamente protetor.

É outro conselho aos pais, tentar fazer mais vida de bairro?

Sim, não ter medo de deixar as crianças saírem à rua. Este medo que se estabeleceu então depois do caso Casa Pia é terrível, como se houvesse um pedófilo em cada esquina. As crianças correm muito menos riscos hoje do que antes.

Porquê? Essas pessoas continuam a existir.

Era normalíssimo, nem era denunciado. Às vezes até era incentivado pela comunidade. Tive um caso na Madeira há muitos anos em que era uma comunidade em que era costume o pai da noiva, em frente ao noivo, ter relações com ela na véspera do casamento para mostrar que era virgem. Fui chamado para tentar explicar às pessoas que aquilo não era correto. Como o pai estava emigrado, foi a própria população que se quotizou para pagar o avião, se não o senhor não tinha dinheiro para vir.

Foi quando?

Nos anos 80. A questão que se punha era se era considerado um maltrato, mas para ele ir para a cadeia toda a aldeia tinha de ir. Era o normal. E a conclusão foi que só através de um trabalho enorme de fazer as pessoas perceber que aquilo não era ético é que foi possível mudar.

Há pouco não concluiu: sentir que esteve à beira da morte mudou o quê?

Vejo talvez a vida com mais calma, a expressão é difícil de arranjar. Sinto-me bem. Não queria perder muito tempo com discussões estéreis. Procuro ter momentos de paz. Uma coisa que me faz a tal angústia existencial, que agora obviamente me persegue um bocadinho mais, é levar-me a aproveitar a beleza. Sempre fui muito desprendido materialmente, livros e música são a minha adição, de resto gosto de passear e ver coisas bonitas.

Não fez as pazes com ninguém?

Tenho procurado estar mais com amigos. Aquela coisa do “um dia temos de almoçar” não é nada. Digo mais vezes “pega na agenda e marcamos”. Gosto muito da beleza das coisas e olho cada vez mais. Chamo cada vez mais atenção dos meus filhos e até dos clientes. Noutro dia estava a mostrar a uns pais aqui pela janela: podem olhar para uma árvore aqui em frente que está ainda muito invernosa, mas já há aí árvores com gomos e folhinhas a nascer. Isto é um ciclo. Fazer parte disto é um privilégio. É um privilégio estar vivo.