O conflito entre a democracia representativa e a democracia directa é velho como o mundo. Terá começado quando Adão abandonou o partido de Deus e, depois de ter comido da maçã do conhecimento, votou por Eva. A multiplicação dos descendentes só agudizou o problema. A democracia funciona lindamente em universos restritos, quando os eleitores coincidem em número com os eleitos. Esta é a fórmula mágica da democracia directa. Fora dos pequenos grupos, a democracia directa tende a perder em eficácia para a democracia representativa.
A democracia representativa fomenta a esquizofrenia: “eles”, os eleitos, que não respeitam os eleitores, curiosamente os responsáveis pelos resultados das eleições. Como terapia mitigadora há quem procure temperar a democracia representativa com elementos de democracia directa. O apelo ao referendo permite, em caso de vitória, saltar à vara por cima dos bloqueios da democracia representativa.
O que seja uma vitória num referendo depende de várias circunstâncias, algumas muito difíceis de controlar. A principal circunstância e a mais difícil de domesticar resulta das fasquias de participação ou de resultado. Uma taxa de participação abaixo de 50% dos eleitores recenseados ou um resultado por maioria simples podem ficar abaixo dos limites legalmente fixados para a validade do referendo.
Os referendos prestam-se facilmente à manipulação, não só pela redacção das perguntas de forma ardilosa como pelo tempo da consulta e pela iniciativa de a desencadear. A Constituição Portuguesa afasta expressamente o referendo por iniciativa presidencial, numa desfeita tardia aos defensores da matriz presidencialista em geral e do eanismo em particular.
A prática referendária recente na Europa ocidental mostra que os referendos são como os comboios: um pode esconder outro. Foi assim por duas vezes na Irlanda, com um segundo referendo a revogar a decisão do primeiro (tratados de Nice e de Lisboa), e o mesmo pode vir a acontecer com o Brexit. Mais recente, o referendo italiano para modificação da Constituição derrotou o promotor da iniciativa, fez cair o governo Renzi e abriu o caminho para o actual governo de matriz populista.
A crise da representação política, velha desde que o primeiro governo representativo foi experimentado, agudiza-se numa sociedade que, por via das novas tecnologias, existe em rede mas vive atomizada, balcanizada em pequenas bolhas identitárias, de onanismo ideológico auto–referencial. As novas tecnologias poderiam permitir, como na audiometria das televisões, a democracia directa permanente, à distância do botão “vote” do telecomando. Mas, nas imorredoiras palavras de uma democrata televisiva, “isso agora não interessa nada”.
Sobra o referendo tradicional. A escolha do tempo e da pergunta podem devolver um sopro de vida a um dirigente politicamente moribundo. Macron, pela tenra idade e pela vontade de emancipação, deveria dizer que nunca foi gaullista. Já Mitterrand afirmava que tinha sido muita coisa, mas não gaullista. Por estes dias, a entourage de Macron faz contas de cabeça ao melhor momento para convocar um referendo e tenta ler nas folhas do chá que não foi bebido pelos coletes amarelos a pergunta a colocar ao povo francês (“a nação” está recolhida e barricada). A data mais provável coincide com a das eleições para o Parlamento Europeu, a 26 de Maio. Mais difícil será a escolha da(s) pergunta(s), tendo sido posta a correr a possibilidade de um questionário de escolha múltipla…
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990