João Freire. “O acesso aos cuidados continuados é difícil ou impossível para doentes com cancro”

João Freire. “O acesso aos cuidados continuados é difícil ou impossível para doentes com cancro”


No Dia Mundial de Luta Contra o Cancro, o diretor clínico do IPO de Lisboa fala dos desafios de prevenção, do país que envelhece e de um SNS em que os profissionais vivem “assoberbados”


Diretor clínico do Instituto Português de Oncologia de Lisboa desde o início de dezembro, João Freire faz um diagnóstico incisivo sobre os desafios do hospital e do SNS. Perder profissionais para o privado – e não é só médicos, são todos – sem haver um reforço adequado está a tornar difícil tomar decisões que ajudem a melhorar o sistema e a tirar o máximo proveito de equipamentos como os aceleradores usados em radioterapia. O preço dos medicamentos inovadores tornou-se incomportável e os profissionais que ficam no SNS vivem assoberbados. Na data em que se assinala o Dia Mundial de Luta Contra o Cancro, o médico fala dos avanços, das falsas esperanças e do grande objetivo de promover estilos de vida saudáveis. Não se vai lá com “proibicionismos”, defende, mas com educação para a saúde desde a escola primária. Não a tem visto.

O IPO assinala esta data com uma mudança de imagem, um novo site e mupis espalhados por Lisboa com o slogan “A confiança vive aqui”. Que mensagem pretendem transmitir?

Uma imagem mais moderna e de confiança. Criar uma via não só de contacto, mas de informação à população. 

Ainda é a doença de que as pessoas têm mais medo?

As novas formas de comunicar e as redes sociais têm desmitificado muitas coisas. As pessoas perdem um bocadinho o medo ao nome. Mas continua a ser um diagnóstico que nos confronta com a nossa mortalidade e, enquanto seres pensantes, gostamos de viver na ilusão da saúde e da imortalidade. O cancro continua a ser algo que nos confronta com isso mais do que outras doenças. Como, noutros tempos, a sida tinha essa conotação.

A sida tornou-se uma doença crónica.

Sim, e o tipo de cronicidade que se consegue no cancro ainda não é comparável. 

O medo leva a diagnósticos tardios? 

Acontece. Não é por falta de informação, é uma reação que as pessoas têm de ocultar de si próprias a noção de que pode ser uma doença grave. Chegam-nos tumores ginecológicos avançados, tumores retais, tumores da mama. Há doentes que permitem que a doença avance até se tornar indisfarçável, uma pessoa que tem um alto, uma ferida maligna que sangra.

Tem havido sensibilização suficiente?

Sim, e também há problemas que nos chegam avançados e que têm mais a ver com o serem pessoas socialmente mais excluídas – por exemplo, tumores de cabeça e pescoço em pessoas que bebem e fumam e têm dificuldades de natureza económica, que têm menos acesso e até menos motivação para recorrerem a cuidados de saúde. Há pessoas a quem perguntamos por antecedentes e dizem que não têm doença nenhuma. Não é que não as tenham, mas não frequentam o médico. São estas franjas de pessoas que muitas vezes surgem com casos mais avançados.

Os cuidados primários e os rastreios têm mudado o panorama?

Nos tumores ginecológicos, só chegam casos mais avançados em pessoas que não têm um seguimento regular no centro de saúde, que não fazem rastreio. Na área do cancro colorretal, a maneira como os doentes nos chegam mudou um bocado. Com mais frequência chegam casos detetados no rastreio. O mesmo no tumor da mama: hoje chegam com mais frequência mulheres a quem foi detetada uma alteração numa mamografia do que por terem sentido um caroço. 

A incidência de cancro aumentou 40% nos últimos 15 anos. Em 2050, metade da população terá um cancro ao longo da vida. O país está preparado?

A pressão é o envelhecimento. Podemos ter mais doentes de cancro, mas não assim tantos, mas teremos muitas outras doenças que dificultam os tratamentos e implicam questões importantes de suporte sociofamiliar que têm de ser pensadas. A dificuldade futura do país passa por acolher, na saúde e no suporte social, uma população que incluirá não só pessoas envelhecidas mas também numa situação de isolamento, sem cuidadores que as tomem a cargo.

Isso já é muito notório hoje?

Temos pessoas com 70, 80 anos que até estarem doentes viviam autonomamente. Até têm filhos, mas eles não têm condições para as acolherem e também não podem de repente sair das suas casas para irem ser cuidadores dos pais. Foi criada uma Rede Nacional de Cuidados Continuados orientada para este problema, até no sentido de integrar prestadores no campo da saúde e segurança social, mas, no cancro, a cobertura que temos é insuficiente. As tipologias previstas não acolhem uma parte importante dos nossos doentes.

Porquê?

Temos os cuidados paliativos, temos uma tipologia dedicada à convalescença e outra a cuidados de média duração, um ou dois meses, no sentido de se recuperar autonomia. Depois temos a longa duração, que equivale, no fundo, a um lar, com algum suporte de cuidados. Hoje, o acesso a qualquer uma destas tipologias é difícil ou impossível; na longa duração, então, é impossível. Quando isto foi desenhado pensava-se que os doentes iam todos para as unidades de paliativos. São unidades dispendiosas e, às tantas, foi definido que as pessoas têm de ter determinados critérios, não só de descontrolo sintomático, mas uma esperança de vida mais limitada. O problema é que há toda uma franja de doentes que têm uma doença avançada, com poucas opções de tratamento e com maior ou menor dependência, que não se enquadra nos critérios estritos das unidades de paliativos mas também não se enquadra nas outras tipologias. Não têm capacidade de reabilitação, mas a sua esperança de vida também não se compadece com o tempo de espera para uma unidade de longa duração.

É de quanto tempo?

Temos dois doentes em espera, não tarda, há dois anos.

Estão onde?

Numa unidade com a qual tivemos de convencionar esta resposta, com o hospital a pagar. Se não estivessem lá estariam aqui a ocupar duas camas, impedindo que fossem usadas para tratamentos. Em relação aos cuidados paliativos a nossa política no IPO foi sempre integrar os cuidados na prática de oncologia, e não criar coisas separadas para onde se enviam os doentes quando se acha que não há nada a fazer. Fomos a primeira instituição do SNS a ser acreditada nesta área pela Sociedade Europeia de Oncologia Médica, em 2016. Temos uma equipa intra-hospitalar de cuidados paliativos. A equipa de apoio domiciliário tem mais de 50 anos. 

Estima-se que haja 70 mil pessoas por ano no país que poderiam beneficiar de cuidados paliativos e que acabam por morrer sem resposta a este nível. Estamos muito atrasados?

É preciso perceber que a necessidade de cuidados paliativos não tem a ver com fim de vida, tem a ver com sofrimento. Não tem a ver com a morte, tem a ver com a vida. Trata-se de a pessoa viver o melhor possível a vida que lhe resta. Nem todas as pessoas que morrem precisam de ter cuidados paliativos, mas hoje há áreas que estão pouco cobertas. Uma área em que possivelmente fazia sentido criar alguma resposta são os lares: têm pessoas com doença avançada, quadros demenciais, acamamentos prolongados e, a certa altura, as pessoas começam a ter complicações e muitas vezes entram num movimento do tipo porta giratória em que vão para o lar, depois vão para o hospital, depois regressam ao lar…

Este ano, o mote do Dia Mundial de Luta Contra o Cancro é “eu sou e vou”: como contribuir para um futuro com menos cancro. Qual é o principal desafio?

Os estilos de vida saudáveis: previnem o cancro e têm muitos outros benefícios. Os cuidados com a dieta, o exercício físico, o não fumar, que é a principal causa evitável de cancro. Cada vez mais se sabe que não beber bebidas alcoólicas também é uma questão importante.

Nem um copo de vinho tinto por dia?

Pelo menos, que as pessoas não o façam por receita médica. Parece-me que devemos ser pouco proibicionistas. As pessoas terão de fazer as suas escolhas. 

Há uns anos foi feito um inquérito aos médicos ingleses e metade achavam bem que se negassem tratamentos não urgentes a quem não deixasse de fumar ou não perdesse peso. Vê esta discussão a ter lugar no futuro?

Não me parece. Só faz sentido dizer que certas terapêuticas não devem ser usadas em pessoas que mantêm certos hábitos se estiver demonstrado que o resultado será substancialmente diferente. Não pode ser uma questão de castigo ou de moralidade, mas de comprovada ineficácia. 

Como se resolve o desafio de promover estilos de vida mais saudáveis? 

Tem de ser na escola. É indispensável em Portugal, e não a tenho visto, uma educação para a saúde. Para a saúde, para a higiene. Isto é na mais tenra idade que se incute; mais tarde, já não vale a pena. Se queremos que as pessoas adotem comportamentos saudáveis, eles têm de ser incutidos logo na escola primária. Mas estará também aí a resposta para questões como as urgências: antigamente, as pessoas iam menos aos hospitais, as famílias passavam umas às outras a experiência de lidar com a doença, tinham a perceção do que podia ser mais grave ou menos grave e guardavam o recurso ao hospital para coisas sérias e complexas. Hoje, as pessoas percecionam a saúde como um direito, o que não é desajustado, mas isso faz com que haja um recurso aos serviços de saúde que podia ser mitigado por uma educação da população para o que fazer perante sintomas mais ligeiros e até para perceber melhor os sintomas mais graves em que não se deve esperar. 


Fotografia de Bruno Gonçalves

Vai fazer dois meses como diretor clínico do IPO de Lisboa. Qual tem sido a principal preocupação?

Tem muito a ver com um confronto com a modernidade. Viemos de um tempo em que ainda tínhamos arquivos em papel e houve uma grande informatização, mudámos sistemas, isto tudo com o hospital em funcionamento e à custa do esforço do pessoal. Agora temos novos desafios: centros de referência novos, processos de certificação e, no fundo, um grande objetivo de recentrar a organização dos cuidados mais no doente.

É uma das grandes quimeras da saúde. Como se concretiza?

Com consultas multidisciplinares por grupos de doença. Os serviços contribuem com especialistas que se dedicam preferencialmente a cada área e trabalham em conjunto para construir o tratamento mais adequado para cada doente. Este método de trabalhar já é antigo no IPO, mas agora temos de dar um passo em frente: em vez de ser a consulta o ponto de encontro das várias especialidades, elas têm de passar a viver juntas. Mudar o foco não é fácil.

O facto de muitos profissionais não trabalharem em exclusivo no SNS é um obstáculo?

As pessoas, para estarem em exclusividade, teriam de ser remuneradas para isso, ter incentivos nesse sentido. A questão da exclusividade impacta-nos por outro lado. Há uma oferta crescente de hospitais e clínicas privadas que depois vêm recrutar os profissionais que o SNS está constantemente a formar a vários níveis. Não são só médicos, são enfermeiros, auxiliares, secretários, técnicos de diagnóstico e terapêutica. Vão sendo todos recrutados, quer parcial quer totalmente.

Têm perdido muita gente no IPO?

Sim. Temos pessoas que se foram aposentando e não foram sendo repostas, e depois há pessoas que entram e, quando têm mais formação, saem com alguma rapidez do sistema. Somos um centro de formação, enfim… Depois há pessoas que vão ficando porque também têm menos empregabilidade fora do hospital, as pessoas com mais idade ou com limitações no trabalho que podem desempenhar. E depois, quando reportamos à tutela que temos falta de pessoal, eles contam cabeças.

Não veem se é alguém que está mais cansado, que tem mais períodos de baixa, que não consegue dar tanto?

Não, contam cabeças. Neste momento, do ponto de vista do pessoal, devia haver uma definição dos recursos mínimos garantidos para a instituição manter a sua produção. Para ter um acelerador linear de radioterapia, tenho de ter uma equipa. Se não tiver a equipa toda, não funciona, independentemente de quem falte. Temos uma dificuldade em fixar físicos, por exemplo. Para uma TAC espiral, se não tiver um número de técnicos de diagnóstico e terapêutica de radiologia suficientes, não consigo tirar a rentabilidade que preciso do aparelho. 

O governo já tem falado de instituir um pacto de permanência no SNS para os internos: quem quisesse sair mais cedo teria de indemnizar o Estado.

Essas soluções pretendem-se implementar como obrigações, mas não parecem ter custos associados. É como esta questão das 35 horas: devia funcionar como uma retribuição aos profissionais mas, em vez de se lhes aumentar o vencimento, diminui-se as horas de trabalho. Procuram-se soluções nas quais se tenta conseguir coisas mas que não passam pela retribuição financeira. Por outro lado, a questão da exclusividade parece-me que não é um exclusivo nem da saúde nem da medicina, penso que é preciso uma análise mais vasta.

O Estado está a encolher?

O Estado não está a encolher, está é a mudar de sítio. Há uma parte do Estado que está descentralizada; depois, outra parte está transformada em empresas privadas de capitais públicos. Neste momento, saber o que é o Estado é mais vago e nem tudo é medido. 

Mas que cenário traça? Continuar a perder profissionais para o privado?

Penso que haverá limites ao crescimento do privado. Mas o crescimento dos hospitais e das clínicas privadas é feito em grande medida à custa do Orçamento do Estado. No fundo, para não gastar dinheiro com uma certa rubrica, por exemplo com o pessoal, vai-se gastar dinheiro em pagamentos a fornecedores. O dinheiro não é posto num lado, é posto no outro. 

O debate da Lei de Bases da Saúde pode servir de clarificação? 

Uma lei de bases tem de ser conciliada entre os vários interessados, há visões políticas mais para um formato ou para outro. Eu acho que o SNS é essencial porque acode a coisas que encontram menos acolhimento nas instituições privadas, que são catastróficas para as pessoas e para as quais elas não têm recursos financeiros que consigam assegurar os cuidados. Para as famílias que não têm recursos, esse core tem de ser mantido o melhor possível. Depois, coisas menos prementes poderão sê-lo ou não: há modelos em que há cuidados de saúde primários e até cuidados domiciliários que podem ser concessionados, ser do Estado, de privados ou de instituições do setor social. O que me parece importante é que, se for esse o modelo a seguir, haja concursos e todos possam competir em pé de igualdade, incluindo o próprio Estado. 

Vive confortável com os tempos de espera no IPO de Lisboa?

Não vivemos, e neste momento, do ponto de vista organizacional, definimos como alvo preferencial a diminuição dos tempos de espera entre a chegada do doente ao hospital pela primeira vez e o início do tratamento, seja ele qual for.

Era de quanto tempo?

Pode variar entre 40 e 60 dias nos tumores sólidos mas, por exemplo, na pediatria é quase meio dia ou horas, são casos muitas vezes referenciados de outros hospitais. O mesmo na hematologia: o tempo de acesso de um doente com uma leucemia aguda que venha transferido de outro hospital é mais imediato. Estamos a fazer obras no bloco operatório e vamos duplicar a capacidade de resposta. Estávamos a funcionar com um bloco operatório dos anos 50. Esperamos depois que, do ponto de vista do pessoal necessário, seja possível explorar o seu máximo potencial. 

No ano passado houve várias greves, em particular na saúde. Afetam muito a resposta num hospital como o IPO?

Dezembro, entre feriados e greves, foi um mês difícil. O impacto da greve tem muito a ver com o que está definido como serviços mínimos. Dentro da área oncológica há coisas em que não há interrupção – radioterapia, quimioterapia, tratamentos em curso. Mas há outras que não estão definidas como serviços mínimos e têm impacto. As greves dos técnicos de diagnóstico e terapêutica têm um impacto importante porque limitam o funcionamento de laboratórios cujos resultados são indispensáveis para se conhecer o diagnóstico e para se saber se há condições para tratamento.

Antecipa que, em ano eleitoral, o impacto venha a ser ainda maior?

A contestação não decorre tanto do ano eleitoral, mas de uma noção de que o grosso da crise terá passado e que haverá mais dinheiro. Não é já só para repor, é repor com retroativos e aumentar. As pessoas passaram por momentos difíceis. Quando vai havendo menos recursos, aos que ficam, para se manter o mesmo nível de atividade ou próximo, é-lhes exigido um nível de esforço maior. As pessoas estão um bocadinho cansadas de um esforço constante para suprir as necessidades e, em alguns casos, a ineficiência do sistema. Não estou convencido de que aumentar as retribuições resolva tudo. Acho que passa por o sistema ter mais recursos e explorarmos bem os que temos. Mesmo na parte administrativa, hoje, o processo de aquisição de compras é muito mais complexo e não temos mais pessoas – são as mesmas ou menos. As pessoas vivem assoberbadas. E uma pessoa permanentemente assoberbada vive mal. O SNS precisa que lhe façamos o mesmo que fazemos aos doentes: olhar para tudo e intervir sobre as necessidades mais prementes. 

Gerir esse estado psicológico do pessoal é complicado?

As pessoas vêm falar-me das dificuldades e tento melhorar o que posso dentro dos recursos que há. O problema de um sistema com poucos recursos é que tem dificuldade em libertar recursos para os pôr em áreas que podiam otimizar o sistema.

O preço crescente dos medicamentos já foi várias vezes motivo de alerta. O IPO de Lisboa gasta um milhão de euros por semana em medicação. Quanto custa o medicamento mais caro que dispensam? 

O mais caro é capaz de ser 400 mil euros por ano por doente. São necessariamente para doenças raras, é incomportável para doenças frequentes.

Tem justificação, esse preço? 

O preço dos medicamentos deixou de ser feito para as pessoas e passou a ser feito para os serviços nacionais de saúde e para os Estados. Se, durante algum tempo, a inovação esteve ligada à medicina personalizada e a indicadores moleculares para grupos restritos, começam a aparecer cada vez mais medicamentos inovadores para doenças frequentes.

E curam essas doenças?

É inabitual. Um medicamento com custo aumentado e que tem uma taxa de cura significativa é o da hepatite C. Na área do cancro, na maioria das vezes estamos a falar em aumentar a sobrevivência ou aumentar o tempo em que a doença não progride.

Para as pessoas, é importante.

Claro, mas não sei se a magnitude do benefício se correlaciona com o preço. Hoje, para o mesmo número de doentes e mesmas patologias, temos um custo aumentado com medicamentos e exames.

Como se resolve essa equação?

Se calhar, alguns dos medicamentos mais onerosos terão de ter linhas de financiamento próprias, como houve para os transplantes. Na área do medicamento há uma experiência pouco relatada que foi a comissão de acompanhamento da hormona do crescimento, criada por causa do custo e do risco de uso indevido e desperdício. Avalia os casos em que a hormona é comparticipada a 100% pelo Estado.

No cancro fazia sentido ir por aí?

Temos uma tecnologia à beira de ser introduzida que é a terapia celular, que é pegar em células do sistema imune da própria pessoa e modificá-las para depois se dirigirem às células do tumor que se pretende tratar. Há o custo do procedimento e da tecnologia toda associada, será muito complexo. Neste momento há terapias aprovadas para o linfoma e a capacitação de unidades para se arrancar está para breve. Parece-me que é o tipo de área em que claramente é preciso pensar em qual vai ser a metodologia a seguir. 

Mas já sabem o preço?

Não, terá de ser negociado, mas começamos a chegar a uma área de valores que já não se consegue gerir dentro do orçamento do hospital. O Estado, quando faz um acordo com a companhia, prevê o número de doentes que irão precisar do medicamento e negoceia. A maneira como os hospitais são ajudados a suportar esse encargo não está totalmente definida.

Diz-se que os ganhos demonstrados nos ensaios clínicos nem sempre coincidem com os da vida real. Fica mais vezes desiludido ou surpreendido?

É difícil um medicamento na vida real aproximar-se totalmente do resultado dos ensaios. É como o consumo dos carros: o consumo otimizado em laboratório nunca é exatamente o que gastam na rua. Num ensaio há uma seleção de doentes. Não admitem tantos doentes mais fracos ou que tenham outras doenças; portanto, esses casos estão muito pouco representados nos ensaios e estão muito presentes na vida real. Há doenças em que a diferença [trazida pela inovação] é muito importante. A leucemia linfócita crónica ou o GIST (um tipo de tumor gastrointestinal raro) são duas patologias com um marcador específico para o qual foi lançada uma molécula e deu-se um salto importante. No GIST, a sobrevivência foi multiplicada por dez. Noutras doenças, o beneficio é menos evidente. E o custo não se relaciona diretamente com os resultados: para uma doença como melanoma posso usar vários medicamentos, várias combinações, e o preço de cada uma não se relaciona diretamente com os resultados.

Que leitura faz disso? O secretário de Estado Francisco Ramos chegou a dizer, quando estava à frente do IPO, que as farmacêuticas têm estado a testar os limites do dinheiro que os países estão dispostos a gastar.

As companhias de medicamentos tentam obter pelo seu produto o melhor valor que conseguirem. O preço é um bocadinho pelo contexto: se tiver um tumor da próstata resistente a hormonas e admitir um preço para o tratamento, os próximos que virão nessa linha terão essa referência. 

Nos últimos dias, uma equipa israelita anunciou uma cura para o cancro no espaço de um ano. Tem havido muitas falsas esperanças ou há otimismo?

Não existe a panaceia universal. É muito difícil que isso seja possível porque o cancro não é uma doença, são muitas, muito diferentes. Tem fases em que é facilmente curável, tem fases em que é mais difícil e é preciso combinar diferentes terapêuticas, e tem fases em que, com o conhecimento atual, sabemos que é incurável. Para alguns desses que até agora tinham sido incuráveis começam a aparecer medicamentos que prolongam muito a vida e outros em que há a possibilidade de cura, mas é algo recente.

São anúncios para ver com cautela?

Com algum ceticismo. Quando cancro e cura aparecem na mesma frase na comunicação social, de uma forma geral, desconfio. Mas certamente tem havido grandes desenvolvimentos e não temos capacidade de prever até onde isto vai. 

Recuando aos seus primeiros tempos de oncologista, o que achava impossível e hoje já não é?

Comecei em ‘95. Na oncologia digestiva, que é a área a que me tenho dedicado, havia praticamente só um fármaco. No melanoma, quando já era uma doença disseminada, fazia-se uma quimioterapia tóxica com resultados fracos, e hoje existem várias modalidades de tratamento.

Isso desabitua os médicos de reconhecer que não há nada a fazer?

É sempre mais fácil para o médico e para o doente dizer que há mais alguma coisa. Na doença avançada, isso é uma inevitabilidade e as pessoas vão ganhando competências de comunicação, e é bom termos mecanismos de suporte psicológico da família e do doente, além dos cuidados paliativos. Esse suporte tem de começar mais cedo. Hoje, as novas gerações vêm fascinadas com a cirurgia robótica, biopsia com realidade aumentada, inteligência artificial no diagnóstico, mas tem de haver sempre o treino da empatia, da perceção do enquadramento socioeconómico. A importância da comunicação tem sido um pouco negligenciada na formação e tem de ser reforçada, até pela importância crescente de questões como o consentimento do doente.


Fotografia de Bruno Gonçalves

Ainda há muito paternalismo?

Vai existindo algum, mas o próprio doente, numa primeira abordagem, mostra que tipo de resposta procura. Percebe-se o que espera, o que chama à doença.

Por vezes, os médicos não dizem diretamente à pessoa que tem cancro. É correto?

É preciso perceber o que o doente quer saber, até onde quer ir, e ajustar a comunicação. Naturalmente, ser verdadeiro, não defraudar, mas também não violentar os doentes e não lhes pôr as coisas de uma maneira que eles não precisavam. Tudo isto se treina. 

A Ordem dos Médicos fez recentemente um alerta sobre “pseudoterapias” alternativas e doentes que chegam em estado crítico. Têm casos desses? 

Situações em que se adia o tratamento são raras nesta área. Mas há coisas que podem interferir com o tratamento e, por outro lado, as pessoas que oferecem essas terapêuticas não o fazem a título gracioso, é um negócio. As pessoas têm de se sentir confortáveis para falarem com os médicos. Mesmo que o médico o desaconselhe e queiram, é preciso perceber se há algum risco que devem ter em conta. A opção de não tratamento é uma opção que as pessoas têm dentro da sua autonomia. O esperado é que a pessoa queira e, às vezes, lida-se mal com o não quererem.

Tem acompanhado casos desses, pressões dos filhos, por exemplo?

Há pressão das famílias e, às vezes, os próprios médicos têm dificuldade em aceitar que as pessoas não queiram fazer tratamentos. Para um doente que já passou pela experiência da quimioterapia, uma nova quimioterapia pode ser suficientemente penosa para achar que não se justifica, e isto, para as pessoas à volta, é complicado de aceitar, envolve desesperança, parece uma desistência. Acho que devemos ajudar os doentes a fazer as suas escolhas. A influência da família deve ser um bocadinho mitigada, o doente é que deve estar no centro da decisão. As expetativas das pessoas em torno dos tratamentos, com frequência, ultrapassam aquilo que eles podem na realidade dar, mas depois entra-se em coisas como taxas de probabilidade, depende muito da circunstância de cada um.

Hoje entramos em qualquer livraria e vemos vários livros sobre cancro, dietas, receitas para uma vida sem a doença. Costuma abri-los?

Não, uma parte importante tem pouco fundamento científico ou pretende vender qualquer coisa. Quando há coisas desse género na área da saúde e do cancro, a primeira pergunta é “a quem é que aproveita?”. Não é raro haver um interesse. Só vender um livro pelo título revela um interesse. Depois, isto é como tudo: há pessoas que não fazem prevenção de espécie nenhuma e têm uma vida longa, outras têm muita preocupação e restrição e têm doenças. Correr riscos significa ter um risco maior, mas são escolhas. A pessoa tem de pensar no futuro, mas tem de estar bem consigo.

Trabalhar nesta área tem mudado a sua maneira de ser?

Vai mudando um pouco a nossa perspetiva sobre a vida. Ficamos com a noção de que há coisas que valorizamos muito mas são acessórias. Haja saúde. 

Estão a começar a trabalhar nos planos para o centenário do IPO, em 2023. O que gostava de ver até lá?

Termos finalmente um edifício novo, de que se fala há décadas. E depois conseguir implementar esta nova forma de pôr o doente no centro do sistema: se não o conseguirmos preparar, não será um edifício novo que o vai resolver.

E no SNS?

Espero que subsista. Estou esperançoso, mas há questões a resolver.