Michael Jackson. Voltar a Neverland para desenterrar esqueletos debaixo dos lençóis

Michael Jackson. Voltar a Neverland para desenterrar esqueletos debaixo dos lençóis


Quase dez anos após a morte e 15 sobre a absolvição das acusações de pedofilia, Michael Jackson volta a ser desassossegado. Um documentário centra-se nos testemunhos de dois homens que haviam negado os factos. Família arrasa realizador


Foi talvez o julgamento mais mediático de um artista pop. Michael Jackson também passou por um Processo Casa Pia. Não teve nome, mas o epicentro é conhecido: o Rancho Neverland, a cerca de 200 quilómetros de Los Angeles, pelo qual se apaixonou quando visitou Paul McCartney durante as gravações do vídeo de “Say, Say, Say”.

Jackson e a família mudaram-se para a mansão em 1990. E é facto que convidava crianças para sua casa e se deitava com elas na cama, vivendo em adulto a infância a que não teve direito na meninice.

As primeiras acusações remontam a 1993, quando Jackson ainda era o artista pop invencível na terra dos mortais. A absolvição só foi decidida 12 anos depois, quando se transformara num farrapo. Um ser cada vez menos parecido com um humano, em desmembramento acelerado. Quando o juiz deu por concluído o processo, Michael Jackson estava em decadência. E na miséria, fruto dos custos de uma batalha jurídica extenuante e de um estilo de vida luxuoso que o êxito estrondoso até aos anos 90, as vendas e as digressões já não pagavam.

Jackson ainda tentou colar as peças, para se salvar, com o anúncio da digressão “This Is It”, em 2009, mas a menos de três semanas da estreia do espetáculo na O2 Arena – o primeiro de 50, todos esgotados, – o coração parou. E se a morte não foi capaz de apagar o rasto de autodestruição nem o desgaste da luta pela verdade na barra dos tribunais, trouxe algum silêncio ao homem e deixou, pelo menos, a memória de um “Thriller” sem delito.

Quando os esqueletos pareciam enterrados e de Michael Jackson restava apenas o eco da voz na memória coletiva, transversal a gerações, culturas, etnias e extratos, um documentário vem questionar as verdades judiciais e desassossegar a família.

O documentário “Leaving Neverland”, estreado na semana passada no festival de cinema de Sundance, retrata Michael Jackson como um pedófilo. Para defender a tese, o realizador Dan Reed (autor de “Three Days of Terror: The Charlie Hebdo Attacks”, da HBO) baseia-se nos testemunhos de dois homens com mais de 30 anos que, em criança, conheceram e lidaram com Michael Jackson. Wade Robson, coreógrafo e bailarino australiano, tinha apenas cinco anos; James Safechuck tinha oito e cruzou-se com o artista quando participava num anúncio para a Pepsi.

Ambos já tinham apresentado queixa, em 2013 e 2014, mas os casos acabariam por ser arquivados. “Esta é mais uma tentativa patética de explorar Michael Jackson e de faturar à conta dele. Wade Robson e James Safechuck testemunharam, sob juramento, que Michael nunca lhes fez nada de inapropriado. Safechuck e Robson, este último um autoproclamado ‘mestre da mentira’, apresentaram queixas em tribunal reclamando milhões de dólares. Essas queixas acabaram por não dar em nada. Este ‘documentário’ é um reaproveitar de alegações datadas e desacreditadas. É incompreensível que um realizador credível esteja envolvido neste projeto”, reagiu num primeiro momento a família.

As testemunhas alegam que Michael Jackson os despia, masturbava-se diante deles e mostrava-lhes pornografia com frequência. “De cada vez que estávamos juntos, acontecia. Começou com toques, depois passou a beijar-me, a beijar com a língua e, depois, sexo oral”, descreve Robson, sugerindo haver outros casos. Às crianças seria pedido segredo. No documentário é revelado que o sistema de alarmes do rancho impedia Michael Jackson de ser descoberto.

Após o primeiro visionamento (o documentário de quase quatro horas, dividido em duas partes, será exibido na HBO em março), a “Rolling Stone” define o filme numa palavra: “bomba”. E a “Variety” refere “um testemunho devastadoramente poderoso e convincente de que Michael Jackson era culpado”.

Ao “Hollywood Reporter”, Dan Reed defende-se. “Não caracterizei Michael Jackson, de todo. Se virem, vão concluir que é uma história sobre duas famílias e Michael Jackson é um elemento dessa história.” Ou seja, para o realizador, o documentário não é sobre Michael Jackson, mas antes acerca de “abusos sexuais, como eles acontecem e as consequências ao longo da vida”. Mas, para a família, trata-se apenas e só de “um linchamento público” sobre “um alvo fácil”, dizem. “O Michael não está aqui para se defender; caso contrário, estas acusações não existiriam”, atacam. “Não podemos ficar quietos enquanto este linchamento público continua e os abutres do Twitter e outros que nunca conheceram Michael vão atrás dele”, alegam os Jackson. E a comunicação social também não é poupada. “Estamos furiosos por, sem rasto de prova ou evidência física, terem decidido acreditar na palavra de dois mentirosos comprovados.” Acusações que não surpreendem o realizador. “Cada vez que uma canção toca, ouve–se uma caixa registadora. Eles têm de defender os seus interesses.”