De como o Brexit modificou a Constituição britânica


O sistema de governo britânico dispunha de defesas contra as coligações negativas. Até que chegou o Brexit


As ideias feitas são um perigo. No caso das ideias feitas com curso legal, o perigo é ainda maior. No que respeita à Constituição britânica há duas ideias feitas que gozam do direito de cidade no reino dos clichés jurídicos e cuja cidadania está posta em crise. Segundo a primeira destas ideias, a Constituição britânica seria uma constituição não escrita (e pior, na perspectiva dos minuteiros constitucionais, não vertida para um instrumento identificado como tal, fugindo à categoria de constituição em sentido instrumental, segundo o cunho de Loewenstein). De acordo com a segunda ideia, a Constituição britânica glorificaria em todo o máximo esplendor o sistema de governo parlamentar.

A luta contra as ideias feitas alimentaria várias vidas de um Miguel de Cervantes ressuscitado. Continuemos a luta.

A ausência de uma constituição escrita não se satisfaz com a ausência de um texto escrito que se autodenomine constituição. Tal raciocínio limitaria a noção de constituição à constituição instrumental. Será mais frutuosa a análise que se debruce sobre um conjunto de textos escritos cuja modificação não é possível pela lei ordinária (o que no Reino Unido corresponde à formalização da vontade dos deputados através de um Act of Parliament). Esta impossibilidade de derrogação por via parlamentar confere a estes textos um valor supralegal que, associado a um determinado conteúdo, fornece pistas para o que seja a constituição em sentido formal e, mais importante, para identificar um conjunto mais restrito de conteúdos enformadores de uma determinada ideia de direito, para o que seja a constituição em sentido material. O Reino Unido tem vindo a vincular-se a convenções internacionais cujo conteúdo (incluindo os mecanismos institucionais de interpretação normativa e de composição de litígios, com destaque para os jurisdicionais) obrigou a modificações profundas e radicais das leis do reino. O caso mais antigo resulta da vinculação à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo Tribunal demoliu, com rigor e método, inúmeras leis britânicas. Ainda maior é o efeito do acto de adesão de 1972 às então Comunidades Europeias que criou, à margem e acima do Parlamento e dos tribunais britânicos, mecanismos de produção legislativa e da respectiva interpretação com eficácia externa. Nem todo o conteúdo das vinculações internacionais deve ser elevado à categoria constitucional. A posição hierárquica do direito internacional contribui para a mais fácil revelação da ideia constitucional, mas não se esgota nela. Mesmo um Brexit bem-sucedido, com denúncia do acto de adesão de 1972, deixará no ordenamento jurídico britânico uma materialidade constitucional que ficará para além da concreta abjuração do direito da União Europeia.

Mais fácil de desmontar, pela via anedótica, é a suposta natureza parlamentar do sistema de governo. De acordo com o purismo das ideias feitas, num tal sistema, um governo sem apoio parlamentar que seja derrotado em votações fundamentais deve cair e ser substituído por outro ou convocar eleições. Em sentido contrário, os elementos de racionalização do sistema de governo parlamentar estão em crise, muito por culpa do conflito entre a legitimidade referendária do Brexit e a legitimidade parlamentar de Westminster. As prerrogativas governamentais de agendamento de iniciativas parlamentares, criadas para garantir a governabilidade mas que comprimem a matriz parlamentar, têm sido postas em crise, desde logo pelo actual speaker da câmara dos comuns. Para mal do governo e maior bem do Parlamento.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990