Poesia em resposta à vida nua


Crónica em resposta a dois acontecimentos marcantes das primeiras semanas da presidência de Bolsonaro, no Brasil: a extinção do Ministério da Cultura e a liberação da posse de armas. Duas medidas que demonstram características marcantes do fascismo: o desprezo pela arte e pela cultura e a forma simplista de resolver questões complexas por meio da violência


 

PAVILHÕES

 

Atrás de barras de ferro, negras contra a neve

ou contra o sol a nascer quadrado de tédio,

atrás das grades forjadas para conter o berro

não domesticado dos filhos de toda espécie

 

de miséria, revolta, abandono, fúria, pena

de morte em vida açoitada pela gargalhada

dos que passeiam nas calçadas à sombra

das muralhas erguidas pelas mãos do desprezo,

 

atrás dos muros, atrás dos murros, dos erros

do lado de fora, dos urros do lado de dentro,

reina, só, no centro, o cetro do medo – rei

da pobreza, da dor, da raiva, do encolhimento

 

do corpo e do espírito, ambos prisioneiros

de um mesmo encarceramento – pois a alma

do homem que mantém outros homens detentos

é a cela do Homem que se mantém preso por dentro

 

Inicio este texto com a reprodução de um poema de meu mais recente livro, "A outra voz" (Editora Patuá, 2018), em resposta a dois acontecimentos que considero dignos de nota neste mês de janeiro no Brasil: a extinção do Ministério da Cultura e a liberação da posse de armas. Duas medidas impostas por decreto, ou seja, de forma autoritária, o que, é claro, já é de se esperar de um governo neofascista. Duas medidas que demonstram características marcantes do fascismo: o desprezo pela arte e pela cultura e a forma simplista de resolver questões complexas por meio da violência. O combate à violência com mais violência.

A destruição do Ministério da Cultura vem coroar de forma institucional a patrulha e os ataques que a arte já vem sofrendo como um inimigo a ser combatido e que agora ganha um selo oficial. O que vem a calhar muito bem ao projeto de desmonte da cultura, num país em que parece que o apreço ao conhecimento passou a ser considerado um defeito. Afinal, o questionamento, a reflexão, o esclarecimento, o humanismo, próprios da arte e da cultura, não podem ser considerados bons parceiros para um projeto de poder baseado na ignorância e na barbárie.

No que tange à liberação das armas, tal medida foi dura e amplamente criticada por especialistas, estudiosos do assunto que demonstram claramente, baseados em análises e dados, que tal medida só vai agravar potencialmente o quadro de violência no campo e nas cidades, que torna as pessoas ainda mais vulneráveis. Mas isso não tem importância, pois, como já mencionei acima, o que vale a palavra de um verdadeiro estudioso no Brasil de hoje? Nada ou quase nada. Vale mais a palavra de um atual ministro que diz que ter uma arma em casa é como ter qualquer eletrodoméstico, como um liquidificador, por exemplo. Basta saber somar dois mais dois, ou até menos do que isso, para perceber que – não por trás disso – mas à frente mesmo, está a indústria armamentista sedenta de sangue para vender seus produtos com os quais o governo-garoto-propaganda promete pacificar a sociedade. Ao assinar o decreto, ou seja, sem consulta popular, o presidente declarou sem nenhum constrangimento que “o povo decidiu por comprar armas e munições, e nós não podemos negar”, uma afirmativa totalmente falsa, ignorando solenemente a mais recente pesquisa em nível nacional que teve como resultado que mais de 70% dos brasileiros consideram que a posse de armas de fogo deve ser proibida. Portanto, o “mito” é, na verdade, mitomaníaco.

A tomada destas duas medidas quase que conjuntamente, muito próximas uma da outra, o desprezo à cultura e o incentivo à violência, são demonstrativos do caminho anticivilizatório que está sendo preparado e já precocemente executado de forma arbitrária. Essas duas ações combinadas apontam para o conceito daquilo que Giorgio Agamben chama de vida nua, uma forma de desdobramento do termo biopolítica, de Michel Foucault. No estado de vida nua o indivíduo deixa de existir de forma ética, é retirado do seu ethos para existir apenas como corpo, como organismo. Basta estar vivo. O simples fato de estar vivo já é suficiente. Trata-se da redução do ser humano do estado de direito para o mero estado de sobrevivência, ao seu estado animal. Uma forma de viver em que o campo de concentração é a sua mais alta expressão, mas, que, por meio de estratagemas, discursos e medidas burocráticas e ditatoriais, como o tal decreto, vai tomando conta da sociedade em uma aparente forma de legalidade. Se basta sobreviver, se é suficiente apenas o corpo estar vivo, sem noção de dignidade, não é necessário ter direitos ou muito menos aquilo que Hanna Arendt postulou “o direito de se criar de direitos”. Hoje no Brasil vigora, cunhado pelo neofascismo, o ofensivo lema “direitos humanos para humanos direitos”, o que contraria toda a Declaração Universal de Direitos Humanos.

A carregar este estandarte temos hoje na política brasileira o que é chamada a bancada da bala, que, como o próprio agressivo nome aponta, representa a indústria armamentista; e a bancada evangélica. Esta última, de teor fundamentalista, que utiliza claramente a religião e a fragilidade das pessoas para seus próprios interesses políticos e financeiros, cultiva um tipo de Jesus muito particular, propagador de inúmeros preconceitos, falso moralismo, obscurantismo e desrespeito aos direitos humanos. A bala explora o sangue; o templo explora a fé. Uma alimenta a outra e ambas alimentam uma engrenagem que visa reduzir anseios de cidadania à mera existência orgânica. Ambas estão felizes com a liberação da posse de armas e a extinção do Ministério da Cultura. Ambas poderão ter mais estoque de duas matérias primas preciosas para obter cada vez mais lucro em seus negócios: morte e cegueira.

À ganância dos sugadores do corpo e da alma, aos promotores da vida nua, que fazem do menosprezo à beleza e à natureza sua maior fonte de lucro, contraponho mais poesia, de Paulo Ferraz, do livro “vícios de imanência”, que transcrevo aqui também na íntegra.

 

Os ESCRAVOS DE JÓ

 

Jó não tinha escravos que brincassem.

os escravos de Jó erravam

contra nuvens de areia para

que suas ovelhas pastassem

o verde e a vida das ervas

longe das ravinas e dos lobos.

Com pele e olhos feridos,

na hora certa as abatiam,

para o alimento e as vestes de

seu mestre, que dava graças ao seu

deus. Os escravos de Jó desde

a semente cultivavam o vinho,

o azeite e o pão. Ave alguma

pousava no lavradio limpo de pedras

e espinhos. As brasas dos fornos

ardiam sem cessar na casa de seu patrão,

que se prostrava em oração.

Os escravos de Jó varriam o chão,

consertavam o telhado, caiavam

as paredes, pisavam as serpentes

e de quando em quando algum

velho ou alguma criança era

vendida no mercado para pagar

um banquete aos convivas do soberano,

que em êxtase exaltava as obras

do senhor. Os escravos de Jó

armados com pau, pedra e foice

trucidavam os gentios, pilhavam

a coisa alheia, matavam o gado

e raptavam as mulheres para

seu amo, que se maravilhava com

a bondade da previdência. Os escravos

de Jó não tinham tempo para orar,

não idolatravam nem faziam sacrifícios

como seu dono, que aos olhos do criador

era o mais temente dos homens.

Os escravos de Jó, mortos

pela vaidade de Deus, nunca souberam

o que era brincar. E sem derrubar

uma lágrima pelos seus, Jó jamais blasfemou.

 

Poesia em resposta à vida nua


Crónica em resposta a dois acontecimentos marcantes das primeiras semanas da presidência de Bolsonaro, no Brasil: a extinção do Ministério da Cultura e a liberação da posse de armas. Duas medidas que demonstram características marcantes do fascismo: o desprezo pela arte e pela cultura e a forma simplista de resolver questões complexas por meio da violência


 

PAVILHÕES

 

Atrás de barras de ferro, negras contra a neve

ou contra o sol a nascer quadrado de tédio,

atrás das grades forjadas para conter o berro

não domesticado dos filhos de toda espécie

 

de miséria, revolta, abandono, fúria, pena

de morte em vida açoitada pela gargalhada

dos que passeiam nas calçadas à sombra

das muralhas erguidas pelas mãos do desprezo,

 

atrás dos muros, atrás dos murros, dos erros

do lado de fora, dos urros do lado de dentro,

reina, só, no centro, o cetro do medo – rei

da pobreza, da dor, da raiva, do encolhimento

 

do corpo e do espírito, ambos prisioneiros

de um mesmo encarceramento – pois a alma

do homem que mantém outros homens detentos

é a cela do Homem que se mantém preso por dentro

 

Inicio este texto com a reprodução de um poema de meu mais recente livro, "A outra voz" (Editora Patuá, 2018), em resposta a dois acontecimentos que considero dignos de nota neste mês de janeiro no Brasil: a extinção do Ministério da Cultura e a liberação da posse de armas. Duas medidas impostas por decreto, ou seja, de forma autoritária, o que, é claro, já é de se esperar de um governo neofascista. Duas medidas que demonstram características marcantes do fascismo: o desprezo pela arte e pela cultura e a forma simplista de resolver questões complexas por meio da violência. O combate à violência com mais violência.

A destruição do Ministério da Cultura vem coroar de forma institucional a patrulha e os ataques que a arte já vem sofrendo como um inimigo a ser combatido e que agora ganha um selo oficial. O que vem a calhar muito bem ao projeto de desmonte da cultura, num país em que parece que o apreço ao conhecimento passou a ser considerado um defeito. Afinal, o questionamento, a reflexão, o esclarecimento, o humanismo, próprios da arte e da cultura, não podem ser considerados bons parceiros para um projeto de poder baseado na ignorância e na barbárie.

No que tange à liberação das armas, tal medida foi dura e amplamente criticada por especialistas, estudiosos do assunto que demonstram claramente, baseados em análises e dados, que tal medida só vai agravar potencialmente o quadro de violência no campo e nas cidades, que torna as pessoas ainda mais vulneráveis. Mas isso não tem importância, pois, como já mencionei acima, o que vale a palavra de um verdadeiro estudioso no Brasil de hoje? Nada ou quase nada. Vale mais a palavra de um atual ministro que diz que ter uma arma em casa é como ter qualquer eletrodoméstico, como um liquidificador, por exemplo. Basta saber somar dois mais dois, ou até menos do que isso, para perceber que – não por trás disso – mas à frente mesmo, está a indústria armamentista sedenta de sangue para vender seus produtos com os quais o governo-garoto-propaganda promete pacificar a sociedade. Ao assinar o decreto, ou seja, sem consulta popular, o presidente declarou sem nenhum constrangimento que “o povo decidiu por comprar armas e munições, e nós não podemos negar”, uma afirmativa totalmente falsa, ignorando solenemente a mais recente pesquisa em nível nacional que teve como resultado que mais de 70% dos brasileiros consideram que a posse de armas de fogo deve ser proibida. Portanto, o “mito” é, na verdade, mitomaníaco.

A tomada destas duas medidas quase que conjuntamente, muito próximas uma da outra, o desprezo à cultura e o incentivo à violência, são demonstrativos do caminho anticivilizatório que está sendo preparado e já precocemente executado de forma arbitrária. Essas duas ações combinadas apontam para o conceito daquilo que Giorgio Agamben chama de vida nua, uma forma de desdobramento do termo biopolítica, de Michel Foucault. No estado de vida nua o indivíduo deixa de existir de forma ética, é retirado do seu ethos para existir apenas como corpo, como organismo. Basta estar vivo. O simples fato de estar vivo já é suficiente. Trata-se da redução do ser humano do estado de direito para o mero estado de sobrevivência, ao seu estado animal. Uma forma de viver em que o campo de concentração é a sua mais alta expressão, mas, que, por meio de estratagemas, discursos e medidas burocráticas e ditatoriais, como o tal decreto, vai tomando conta da sociedade em uma aparente forma de legalidade. Se basta sobreviver, se é suficiente apenas o corpo estar vivo, sem noção de dignidade, não é necessário ter direitos ou muito menos aquilo que Hanna Arendt postulou “o direito de se criar de direitos”. Hoje no Brasil vigora, cunhado pelo neofascismo, o ofensivo lema “direitos humanos para humanos direitos”, o que contraria toda a Declaração Universal de Direitos Humanos.

A carregar este estandarte temos hoje na política brasileira o que é chamada a bancada da bala, que, como o próprio agressivo nome aponta, representa a indústria armamentista; e a bancada evangélica. Esta última, de teor fundamentalista, que utiliza claramente a religião e a fragilidade das pessoas para seus próprios interesses políticos e financeiros, cultiva um tipo de Jesus muito particular, propagador de inúmeros preconceitos, falso moralismo, obscurantismo e desrespeito aos direitos humanos. A bala explora o sangue; o templo explora a fé. Uma alimenta a outra e ambas alimentam uma engrenagem que visa reduzir anseios de cidadania à mera existência orgânica. Ambas estão felizes com a liberação da posse de armas e a extinção do Ministério da Cultura. Ambas poderão ter mais estoque de duas matérias primas preciosas para obter cada vez mais lucro em seus negócios: morte e cegueira.

À ganância dos sugadores do corpo e da alma, aos promotores da vida nua, que fazem do menosprezo à beleza e à natureza sua maior fonte de lucro, contraponho mais poesia, de Paulo Ferraz, do livro “vícios de imanência”, que transcrevo aqui também na íntegra.

 

Os ESCRAVOS DE JÓ

 

Jó não tinha escravos que brincassem.

os escravos de Jó erravam

contra nuvens de areia para

que suas ovelhas pastassem

o verde e a vida das ervas

longe das ravinas e dos lobos.

Com pele e olhos feridos,

na hora certa as abatiam,

para o alimento e as vestes de

seu mestre, que dava graças ao seu

deus. Os escravos de Jó desde

a semente cultivavam o vinho,

o azeite e o pão. Ave alguma

pousava no lavradio limpo de pedras

e espinhos. As brasas dos fornos

ardiam sem cessar na casa de seu patrão,

que se prostrava em oração.

Os escravos de Jó varriam o chão,

consertavam o telhado, caiavam

as paredes, pisavam as serpentes

e de quando em quando algum

velho ou alguma criança era

vendida no mercado para pagar

um banquete aos convivas do soberano,

que em êxtase exaltava as obras

do senhor. Os escravos de Jó

armados com pau, pedra e foice

trucidavam os gentios, pilhavam

a coisa alheia, matavam o gado

e raptavam as mulheres para

seu amo, que se maravilhava com

a bondade da previdência. Os escravos

de Jó não tinham tempo para orar,

não idolatravam nem faziam sacrifícios

como seu dono, que aos olhos do criador

era o mais temente dos homens.

Os escravos de Jó, mortos

pela vaidade de Deus, nunca souberam

o que era brincar. E sem derrubar

uma lágrima pelos seus, Jó jamais blasfemou.