O Estado ocupante de imóveis


Depois de ter ocupado um imóvel durante quase uma década e de só aceitar regularizar a situação sete anos depois de o ter abandonado, o Estado ainda se recusou a liquidar as competentes indemnizações e a pagar juros moratórios


Os partidos da geringonça apresentaram no parlamento propostas relativas a uma lei de bases de habitação que têm em comum uma previsão de requisição forçada de imóveis aos particulares, teoricamente com indemnização e apenas por determinado prazo. Trata-se de mais um grave atentado aos direitos dos cidadãos praticado por esses partidos – para se perceber como procede o Estado quando decide ocupar imóveis alheios, basta olhar para a história que nos é contada na resolução do conselho de ministros 182/2018, que autoriza o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ) a realizar a despesa relativa à ocupação do imóvel (sic) onde funcionaram os Juízos Cíveis de Lisboa.

Segundo nos é explicado nessa resolução do conselho de ministros, no ano 2000, o Estado quis instalar os antigos Juízos Cíveis de Lisboa num imóvel situado na Rua Mouzinho da Silveira, que se propôs tomar de arrendamento à Petrogal. Foram assim desencadeados os procedimentos necessários à celebração desse contrato de arrendamento, tendo para o efeito a antiga Direcção-Geral do Património atribuído ao imóvel, em Julho de 2000, um valor locativo de €61.850,94. As partes estipularam, no entanto, apenas o valor de €59.855,74 como renda, tendo os Juízos Cíveis de Lisboa efectivamente sido instalados nesse edifício em 30 de Setembro de 2000.

Em 12 de Dezembro de 2002, o imóvel em questão foi adquirido pela Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores (CPAS), mantendo-se ocupado pelos Juízos Cíveis de Lisboa sem que fosse celebrado qualquer contrato de arrendamento entre o IGFEJ e a CPAS ou paga qualquer quantia a título de contrapartida pela utilização do imóvel. Tal situação durou até 5 de Agosto de 2011, data em que os Juízos Cíveis de Lisboa foram instalados noutro lugar.

Daqui resulta que o Estado se permitiu ocupar durante nove anos um imóvel pertencente a uma caixa de previdência, que tem por função assegurar o pagamento das reformas dos advogados e solicitadores, sem que sequer se tenha disponibilizado para efectuar o pagamento de qualquer contrapartida pela utilização desse imóvel. O caso é especialmente grave uma vez que o imóvel em questão estava afecto ao funcionamento dos Juízos Cíveis, cuja função é precisamente a de proceder à cobrança de dívidas a devedores relapsos. Como é que o Estado se pode permitir ser relapso no pagamento da devida contrapartida ao proprietário de um imóvel quando instala lá tribunais que têm precisamente por função reprimir esses comportamentos? O Estado, aqui, adopta o comportamento de Frei Tomás, que dizia para se fazer o que ele diz, não o que ele faz.

A CPAS também, pelo que se percebe, não exigiu durante todo este período em tribunal a restituição do referido imóvel, o que deveria ter feito logo que o Estado falhou os pagamentos, se calhar porque teve receio de pedir ao referido tribunal que se despejasse a si próprio. Mas este também não é um bom exemplo, já que, uma vez que tem de proceder à cobrança coerciva das contribuições devidas pelos seus beneficiários, o que tem vindo efectivamente a fazer, não se compreende como foi possível deixar esta situação arrastar-se durante tanto tempo.

Só agora, 18 anos depois de o Estado se ter instalado no imóvel, e sete anos depois de o ter deixado, é que o Estado resolveu celebrar uma convenção de pagamento com a CPAS no valor total de €6.837.717,63 e, “com este acordo, a CPAS renuncia expressamente a qualquer pretensão indemnizatória, incluindo juros moratórios decorrentes da ocupação do imóvel”.

Daqui resulta, portanto, que depois de ter ocupado um imóvel durante quase uma década e de só aceitar regularizar a situação sete anos depois de o ter abandonado, o Estado ainda se recusa a liquidar as competentes indemnizações e até mesmo a pagar simples juros moratórios, ao contrário do que sucederia com qualquer devedor que fosse demandado nesses juízos cíveis. E a CPAS também renuncia expressamente a receber esses montantes, enquanto todos os seus beneficiários pagarão, naturalmente, juros de mora se se atrasarem a liquidar as contribuições devidas.

Mas se o Estado agiu assim em relação a um imóvel pertencente a uma caixa de previdência, só liquidando uma parte das suas responsabilidades 18 anos depois, com enorme prejuízo para os beneficiários dessa caixa, cabe perguntar o que fará perante cidadãos comuns cujos imóveis decida requisitar, ao abrigo dos projectos-lei que os partidos da geringonça colocaram no parlamento. É manifesto que o direito fundamental à propriedade privada está a ser claramente posto em causa no nosso país e que o Estado português caminha para ser cada vez menos um Estado de direito.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção

das regras do acordo ortográfico de 1990