Rembrandt.  O Espírito passou  pelo estúdio do artista

Rembrandt. O Espírito passou pelo estúdio do artista


Um convite a conhecer a figura e a obra do pintor holandês, nascido em 1606, num ensaio de Jorge Filipe de Almeida


Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669) nasceu na cidade holandesa de Leiden, no início do século de ouro daquele notável país. Terá sido um verdadeiro original, numa sociedade dividida, de forma só aparentemente paradoxal, entre a construção persistente da riqueza e a não menos obstinada procura da via de salvação pessoal, face a um Deus apelado familiarmente na segunda pessoa. 

Como pintor, não foi fadado com todos os dons, ao contrário do seu quase exato contemporâneo, o espanhol Diego Velázquez (1599-1660). No entanto, o holandês é, sem qualquer dúvida, um dos artistas supremos do Ocidente. A sua longa série de autorretratos – que melhor prova de profunda originalidade poderia pedir-se a quem nos legou mais de meia centena de confissões visuais, desde a sua assertiva juventude até aos perturbadores “De Profundis” pintados nos seus anos derradeiros ? – é uma das glórias da nossa civilização. Contudo, nem sempre a individualidade do rosto de Rembrandt é aparente nas dezenas – cerca de seis, crê-se – dos seus autorretratos. Talvez, por isso mesmo, a sua carreira profissional tenha sido acidentada e o pintor tenha sofrido duros reveses, após ter vivido uma década inicial, durante  os anos de 1630, de sucesso  profissional e de abastança na próspera Amesterdão. A ulterior falência financeira pessoal – certamente, um assunto sério entre todos na materialista Holanda do seu tempo – terá sido uma consequência da sua prodigalidade. 

No inventário dos seus bens que foram a leilão em 1656 figuram obras de arte que fariam hoje rebrilhar os olhos cobiçosos de qualquer diretor de museu: Rafael e outros grandes mestres italianos de Quinhentos; Jan van Eyck; uma cabeça esculpida por Miguel Ângelo; gravuras e desenhos em pasta após pasta; bustos romanos e peças dignas da Schatzkammer de um príncipe. Como se torna evidente, apesar de negociar em arte, Rembrandt excedera-se! Componha-se tal prodigalidade com a periclitante afluência de encomendas vindas da burguesia mais convencional de Amsterdão e o caminho para o desastre financeiro de Rembrandt estava traçado. Tanto mais que a própria vida pessoal do pintor se tinha afastado do rumo mais consensual para o seu tempo, pois vivia por esses anos em concubinagem com Hendrickje Stoffels, uma sua criada, que lhe daria uma filha. A sua prévia mulher, Saskia van Uylenburgh, essa um excelente partido da burguesia holandesa, morrera jovem em 1642, após ter sido mãe, no início da década que veria a sorte profissional do pintor deteriorar-se progressivamente. 

Restam dúvidas sobre qual terá sido  a receção dos burgueses de Amesterdão à célebre Ronda da Noite (1642; Rijksmuseum, Amesterdão), terminada no ano da morte de Saskia. 

Terá esta obra – destinada a tornar-se, séculos mais tarde, num verdadeiro símbolo nacional para os holandeses,  um pouco como o Políptico de Nuno Gonçalves o é para os portugueses – iniciado o princípio da desventura profissional de Rembrandt? Curiosamente, os  retratados pagaram ao pintor na proporção devida ao destaque que lhes fora reservado na grande composição pictórica. Para além disso, a visão tenebrista, associada com o estilo de Caravaggio, permeou de tal forma a obra que induziu o título erróneo de Ronda da Noite para uma cena que se supunha diurna: a companhia de arcabuzeiros do capitão Cocq põe-se em movimento para efetuar a sua ronda. Contudo, a façanha pictórica de Rembrandt não deixava de ser evidente para Samuel van Hoogstraten, um seu aluno. Censurando ao mestre um excesso de originalidade e uma falta de concentração na legibilidade dos retratos individuais, reconhecia, no entanto: [a obra] sobreviverá às de todos os seus competidores porque é tão pictórica na sua conceção, tão engenhosa nas variadas colocações das figuras e tão poderosa que, em comparação, segundo alguns, todas as outras peças vizinhas [no Doelen – um edifício de prestígio reservado às milícias cívicas de arcabuzeiros,  o local de exposição de então] parecem meros baralhos de cartas de jogar.

Certo é que, já duas décadas mais tarde, uma outra grande encomenda feita ao pintor – A Conjura de Claudius Civilis ¬(1661-1662; Nationalmuseum, Estocolmo) – se viu recusada pela Câmara de Amesterdão. Esta extraordinária peça de pintura, hoje reduzida à sua cena central, significou um verdadeiro repto de Rembrandt às autoridades comunais. Quando se contempla esta visão deslumbrante, tem-se a perfeita consciência, não só da gritante genialidade do pintor, mas também do seu espírito desafiador. Quase se adivinham os abanares de cabeça e os sobrolhos franzidos dos burgueses patrícios, reprovadores face ao que considerariam o desperdício do talento de Rembrandt; consequência fatal, assim julgariam eles, reservada a todo o artista que se afasta da saudável via da aceitação comum e se compraz na aventura por caminhos solitários.

Considere-se, para comparação, a estonteante perfeição artística do Inocêncio X (Galleria Doria Pamphilj, Roma), pintado por Velázquez  cerca de 1650. Nesta obra-prima do retrato europeu – o melhor quadro em Roma, segundo o pintor Reynolds, o que não é afirmar pouco – o mestre espanhol evidencia perante os romanos os dons absolutos de que dispunha. “Troppo vero” terá afirmado o papa retratado. O mesmo poderão não ter dito muitos dos burgueses de Amesterdão, ao constatarem como os seus rostos haviam sido apropriados pelo pincel de Rembrandt para este  prosseguir na sua longa ruminação sobre a condição humana. No entanto, por esses anos, Rembrandt pintava tanto para si próprio como para os seus encomendadores – para aqueles que, demonstrando algum arrojo, ainda arriscavam no mestre, ao intuir, apesar de tudo, o seu peculiar talento. 

É compreensível, assim, que o final da carreira de Rembrandt tanto tenha atraído a crítica de arte posterior – a romântica, sobretudo. Paleta e pincéis visivelmente empunhados com orgulho, barrete displicentemente assente sobre a cabeleira revolta, nariz protuberante, representado sem qualquer pudor, Rembrandt encarna o arquétipo do artista, independente e seguro do seu mester. Não custa crer na veracidade do dito de que aconselhava os visitantes do seu estúdio a não se aproximarem demasiado das telas para não se repugnarem com o cheiro das tintas, que usava com liberalidade, muitas vezes em espesso impasto e que desleixadamente limpava às suas vestes. 

O velho Rembrandt, abandonado pela fortuna, separado dos seus entes queridos, que a morte cruelmente lhe roubara ano após ano, pintando continuamente em profunda solidão intelectual, não é um mito: no silêncio do estúdio daquele artista, ter-se-á vivido, de forma misteriosa, um dos momentos altos da nossa civilização: como não evocar a estranha gravura, que Rembrandt trabalhou em repetidas versões, de Fausto no seu estúdio, observando um disco mágico? Arrisca-se a frase eivada de alguma nebulosidade romântica: o Espírito passou pelo estúdio do artista, na modesta casa de madeira que ele ocupou durante a última década da sua vida, em Rozengracht, um bairro menos afamado de Amesterdão.

Convida-se o leitor, que não disponha do tempo – sempre tão  escasso nesta época natalícia – para abordar a extensa bibliografia sobre a fascinante figura do pintor holandês, que se limite a ver o filme Rembrandt, que Alexander Korda realizou em 1936 (procure no YouTube e encontrará…). Nele, o grande ator britânico Charles Laughton encarna com sensibilidade o percurso acidentado do mestre. Na cena final do filme, frente a uma tela onde o velho Rembrandt se aplica na feitura do seu autorretrato  – um dos derradeiros, supõe-se ¬– Laughton cita as linhas iniciais do Eclesiastes: “ilusão das ilusões, tudo é ilusão.” A obra de Rembrandt é um testemunho comovente de como, caso assim fosse, tal seria gritantemente injusto. Não será esta, afinal, a razão profunda para a perenidade da sua arte?  

Rembrandt e a Bíblia Os temas bíblicos ocuparam Rembrandt ao longo da sua carreira, desde os finais dos anos de 1620, em Leiden, até ao Simeão no Templo (Nationalmuseum, Estocolmo), provavelmente a sua derradeira pintura, deixada incompleta pela morte do artista (1669).

O “Bom Livro”, Rembrandt já o tinha pintado, majestosamente aberto nas mãos de sua velha e mirrada mãe, representada como profetisa Ana (1631; Rijksmuseum, Amesterdão). Rembrandt, também ele, terá sido um bom conhecedor da Bíblia e o vasto conjunto pinturas, gravuras e desenhos que sobre os temas do Velho e do Novo Testamento nos deixou são um testemunho sincero e comovente de uma fé, quiçá algo heterodoxa – o que não resulta surpreendente face à peculiar personalidade do pintor. Assim, Rembrandt terá sido próximo dos Menonitas, uma seita Anabatista que pregava a humildade e o pacifismo e que ganhara então finalmente a tolerância, após ter sido perseguida na Holanda do século anterior. 

Como introdução ao universo religioso de Rembrandt, apresentam-se ao leitor três das suas imagens bíblicas – uma pintura, um desenho e uma gravura –, um pouco prises au hasard entre a vastíssima obra e representando os três meios distintos em que aquele artista nos deixou expressa a sua fé cristã.

Professor universitário