Desde os anos 90 do século passado iniciámos um processo de recuo civilizacional global. Fomos perdendo direitos e democracias e chegámos ao ponto de se assumir que, apesar do desenvolvimento tecnológico, as atuais gerações viverão pior que as anteriores. Por isso não é surpreendente que se reacendam em países como Portugal as fogueiras do fascismo, consideradas extintas e/ou circunscritas a bolsas residuais. Após anos a ignorar a expressão de diferentes fascismos em Portugal, começa a ser perigoso não o combater de forma mais robusta, visível e política.
Muito se escreveu e disse sobre o convite da TVI ao cabeça-rapada Mário Machado para estar presente no programa da manhã e, passadas umas horas, num programa de informação. Apesar da tentativa de recauchutagem, não creio que o principal problema possa vir desta figura que, aos olhos de todos, não consegue deixar de ser o skinhead que matou Alcindo Monteiro por ele ser negro. O perigo, o elefante na sala, está na tentativa de criar uma massa eleitoral capaz de apoiar eleitoralmente ideias fascistas – ainda que o não sendo – a partir da normalização do seu discurso e da assunção da sua terminologia. Note-se que não estou a retirar responsabilidades de quem está disponível para integrar esta massa eleitoral, mas também entendo ser errado banalizar a caracterização de fascista. Obviamente, neste processo ardiloso que tem vindo a acontecer em diversos países, Machado é uma figura menor e descartável – uma lebre.
Quem não é tão irrelevante neste processo é o portador do convite. Apresentando-se indevidamente como “repórter” – não tem carteira profissional – e ocultando já ter entrevistado o cabeça–rapada, Bruno Caetano explicou que lhe parecia importante ouvir pessoas como Machado e declarou, passo a citar, “em certas partes da vida de Salazar, acho que faz falta, nomeadamente no que diz respeito a autoridade”. Autoridade. Seja por militância fascista encapuçada, seja por analfabetismo político, Bruno Caetano é uma figura muito mais relevante neste processo de recomposição do eleitorado fascista, pois publicamente aparece como não inscrito. Há-os, em todos os canais de televisão. Com presença assídua, indignada e com aspirações a ocupar posições de poder.
Outro nível desta construção é a penetração no senso comum de uma novilíngua de conceitos simplistas falsos – enraizados num profundo desprezo pelo conhecimento e pelo ensino não dogmático, laico e das liberdades –, apresentados como factos ou pontos de vista expurgados de ideologia. Deverá uma democracia saudável permitir que movimentos racistas ocupem o mesmo espaço, ainda que com o contraponto de movimentos antirracistas? Será que doravante teremos debates em que se confronte a opinião de um violador com a de um violado, de um defensor dos direitos LGBTI com a de um homofóbico? Obviamente que não, mas a maioria das justificações que se sucederam foram no sentido da promoção desta novilíngua sobre “democracia”. Não se trata de debater ou contraditar opiniões, trata–se de princípios civilizacionais, de liberdades e de tolerância de que a democracia não pode abdicar e/ou aceitar discutir.
Escreve às segundas-feiras