Leonor, Nonô para os amigos, foi uma das primeiras cinco solistas da canção que mudou a banda-sonora do Natal português e é hoje responsável pelo coro infantil de Santo Amaro de Oeiras. Paulo fazia parte do coro juvenil e coordena agora o coro dos adultos. Ela é educadora de infância. Ele reformou-se há pouco tempo da vida de bancário. Em comum, muitos Natais de atuações e anos a fio de ensaios para que tudo saísse na perfeição, como sempre foi a marca do grupo e a exigência do maestro César Batalha, fundador do coletivo. Fomos ao baú da memória da música que ainda anima ruas, centros comerciais e o serão de muitas famílias na consoada e no dia de Natal. Encontramos Paulo e Leonor onde é normal estarem algumas noites por semana, na sede do coro, na cave do centro comercial Galerias Alto da Barra, em Oeiras. Na sala ao lado ensaia o grupo amador, com maestrina e pianista profissional. Nesta época são muitas as atuações. A mais fora da caixa este ano foi para o projeto “Revenge of 90’s”.
Recuando ao início dos anos 80, que memórias têm das primeiras vezes que se cantou o “A Todos Um Bom Natal” no coro de Santo Amaro?
Leonor Marques (L.M.): Indo o mais atrás possível, a minha primeira memória é estar a ensaiar a música em casa do maestro César Batalha. Ele estava o piano e tinha chamado os cinco solistas que iriam gravar o single que saiu em 1980 para conhecerem a música. Lembro-me de não entrar quando devia porque fiquei encantada de o ouvir tocar.
Ensaiavam sempre em casa do maestro?
L. M.: Na altura ensaiávamos nos bombeiros de Oeiras mas os solistas foram convidados para um ensaio mais preciso. Ele conhecia muito bem as nossas vozes e quando era para escolher os solistas de uma música nova, não hesitava. Nós não podíamos dizer que não (risos).
A Leonor estava no coro há quanto tempo?
L.M.: Tinha acabado de entrar. Devia ter uns sete ou oito anos. Era uma criança muito inibida, gostava muito de música e a minha tia achou que era boa ideia. A minha primeira aventura foi o “A Todos Um Bom Natal”. Acabou por mudar tudo. Hoje oiço a música e vêm-me todos os anos à cabeça. Nunca é repetitivo, sempre que cantamos é uma emoção muito grande. É como reviver 40 natais, nada é igual.
Qual é a história da música?
L.M.: Quem escreveu a letra foi Lúcia Carvalho, a mulher do maestro.
Que tratam por Ema.
L.M.: Sim, o nome artístico é Ema. Foi ela que escreveu muitas músicas desse tempo como o “Eu Vi Um Sapo”. Eram uma dupla excelente que viveu toda a vida este projeto [saíram há 10 anos]. Hoje não vêm cá mas continuam a saber de nós e a ouvir as nossas histórias.
O Paulo também cantou o “A Todos Um Bom Natal?
Paulo Cruz (P.C.): Acompanhei o nascimento. Estou cá desde os 17 anos, há 42 anos, sou o membro mais antigo. Para os meninos daquela altura foi uma novidade. Para nós, coro adulto, foi uma alegria vê-los. Longe de nós pensarmos que isto ia tornar-se o hino do natal.
Não perceberam logo isso?
L.M.: Não, era mais uma música que o maestro fazia com muito amor propositadamente para o Coro de Santo Amaro de Oeiras e que nós, como qualquer música que ele trazia, fazíamos o melhor para resultasse.
Era habitual lançarem um disco no Natal?
P.C.: Havia projetos no Natal e fora do Natal. Essa peça foi feita propositadamente para o Natal. Penso que saiu um bocadinho fora do habitual e acho que houve logo ali uma comunhão rápida entre maestro e coro. Depois tornou-se uma peça obrigatória de conjunto em todos os concertos.
Nunca se fartaram?
P.C.: Não, cantamos em todos os concertos. Começamos as atuações de Natal no início de novembro e este ano acabamos no dia 6 de janeiro.
Na altura, que miúdos é que andavam no coro? Os certinhos?
P.C.: Eu vim com 17 anos. Na altura para os meus pais era um sossego saberem onde eu estava duas vezes por semana. Não foi bem assim porque comecei a sair com mais velhos. Essencialmente éramos pessoas de Oeiras. Hoje em dia o coro já tem mais pessoas para além das de Oeiras.
Era muito difícil entrar?
L.M.: Tínhamos de fazer audições. Não sei se haveria candidatos excluídos, mas era essencial sermos afinados, cantarmos bem. Não era um coro de escola, tinha outro formato. Mas a ideia foi sempre sermos um coro amador.
Ao longo destes anos, qual foi o convite natalício que mais vos surpreendeu?
L.M.: Neste momento foi o Revenge of 90’s (são os protagonistas de um vídeo publicado nas redes sociais pelo projeto que recupera êxitos do final do século passado). Cantaram os coralistas atuais e alguns antigos.
Já foram convidados para aparecer mesmo no palco do Revenge?
L.M.: Não, mas estamos à espera! Depois há aqueles convites que não surpreendem. Do Natal dos Hospitais não prescindimos, nem nós de irmos nem eles de nos terem lá.
Lembram-se dos programas a que foram nos primeiros tempos?
L.M.: Tantos. “Minas e Armadilhas”, “1, 2,3” do Carlos Cruz e fizemos várias gravações no teatro Villaret.
A Leonor solista ficou vaidosa?
L.M.: Acho que nem eu nem os meus amigos. Ainda hoje somos amigos. Nós não tínhamos a noção. Éramos miúdos e cantávamos com o maior gosto, mas não tínhamos a noção da grandiosidade do que se passava, do emblemático que era.
Mas reconheciam-vos?
L.M.: As pessoas mais próximas, os amigos da escola. Quando saía alguma coisa na imprensa recortavam e punham na parede da escola. Se for algo acompanhado, não sobe à cabeça.
Às vezes podia haver esse receio.
L.M.: Não, porque há essa disciplina no coro. Já tivemos meninas que participaram no “The Voice” ou no “Festival da Canção”, mas mantêm-se discretas como qualquer membro do coro. As pessoas sabem que, no coro, os solistas não são superiores ou inferiores. São apenas vozes diferentes, não são mais importantes. Tivemos uma menina que chegou à final do “The Voice”. Ela, com seis ou sete anos, dizia que era como se o coro estivesse atrás dela a apoiá-la. São crianças que, aqui, aprendem a valorizar os outros. Não há melhores, não há piores, somos todos diferentes.
Já passaram quantas pessoas pelo coro?
P.C.: Ao todo não sei. Há dois anos fizemos uma gala só com o coro adulto e havia 600 pessoas.
Há muitas candidaturas para entrar para o coro?
P.C.: Vai havendo. Não pomos anúncios.
Não têm olheiros?
L.M.: Não. Às vezes vamos sabendo que um miúdo canta bem e convidamos. As regras são sempre as mesmas: há uma audição e é visto se tem capacidade.
E depois são rigorosos nos ensaios: duas noites por semana, à exceção dos mais pequenos do coro infantil e do coro juvenil. Que percentagem é talento e que percentagem é treino?
P.C.: Há pessoas que nasceram com um dom maior do que outras. Foi só apurar. Há outros que têm de trabalhar mais para acertar melhor a nota. Há pessoas com ouvido, afinação, mas que ainda não fizeram essa aprendizagem.
Mas aceitam desafinados?
L.M.: Não, têm de ser afinados. Se pusermos aqui uma pessoa desafinada pode estragar o trabalho dos outros elementos.
Algum dos cinco solistas iniciais do “A Todos Um Bom Natal” seguiu a música como profissão?
L.M.: Não, nenhum de nós. Eu sou educadora de infância (A Marta é bancária, o Ruca gestor desportivo, a Sara psicóloga e a Ana Paula terapeuta ocupacional). Claro que, como educadora de infância, é música o dia inteiro. O “A Todos Um Bom Natal” é um clássico. Mas quando vou ensinar eles já sabem. Isto já é quase genético. Os pais sabem, os avós sabem, os miúdos já nascem ensinados.
Nunca teve o sonho de ser cantora?
L.M.: Não. E passei pelos Ministars, que se calhar nos dava uma exposição pública ainda maior.
São outro produto do Coro de Santo Amaro de Oeiras. Como foi esse tempo dos grupos musicais juvenis? Vocês e os Onda Choque eram rivais?
L.M.: Não, isso era o que faziam parecer cá fora. Eram grupos idênticos, mas com temáticas diferentes. As nossas músicas eram escritas pelo José Niza e eram mais “vamos para a festa” e coisas da escola. As deles eram mais o amor…
Hoje não há grupos desde género. Há projetos para os mais novos, a Xana Toc Toc, os Caricas. Os adolescentes na altura eram mais inocentes?
L.M.: Acho que algo dirigido à adolescência, aquele tipo de musica, não ia pegar neste momento. Eles gostam de outras coisas. O nosso lema era cantar em português.
Quase à frente do tempo.
L.M: Na altura era uma escolha óbvia. Hoje ouvimos um miúdo com 12 ou 13 anos falar fluentemente inglês. Há 30 anos isso não era tão natural. A ideia era pegar nas músicas estrangeiras que estavam no top e passá-las para português, para que as crianças pudessem cantar.
São um produto de um tempo nesse aspeto.
P.C.: Sim, há determinados assuntos que têm uma determinada época. Se os passarmos para a frente ou para trás, não faz sentido nenhum.
E depois há músicas que permanecem, como o “A Todos Um Bom Natal”.
P.C.: Acho que a diferença foi termos feito por apostar em músicas com valores que resistem no dia a dia. O “A Todos Um Bom Natal” teve esse intuito, de ser um hino de alegria para a família. E continua assim. Há pouco tempo ouvi que havia uma votação na RFM sobre a melhor música de Natal e continuamos lá.
Há direitos de autor? Ganharam alguma coisa com este sucesso?
P.C.: Não, não ganhámos nada.
L.M.: Ainda noutro dia me telefonaram a dizer que se estavam a meter connosco na Comercial, a dizer que o Coro de Santo Amaro de Oeiras devia estar cheio de dinheiro por causa do “A Todos Um Bom Natal”. Não estamos. Não estava registado em nome do coro, por isso não ganhamos nada… Ganhamos muito, continuámos a cantar.
P.C.: E as pessoas sabem que a música é do Coro de Santo Amaro de Oeiras.
São uma associação de voluntários?
P.C.: Sim. Alguns de nós põem dias de férias de propósito porque há alturas em que não conseguimos dar vazão. Quando nos fazem convites, gostamos de aparecer. Ensaiamos dez meses por ano, duas vezes por semana. Chegamos a ter cá famílias inteiras: avós, filhos e netos.
Os vossos filhos são do coro?
P.C.: Eu tenho a minha filha e a minha mulher e a Nonô tem as duas filhas.
L.M.: A minha filha é solista no “A Todos Um Bom Natal”.
Não foi por cunha?
L.M.: (Risos) Não, foi escolhida pela maestrina.
Como é olhar para ela?
L.M.: É muito bom, ver-me ali na idade dela. É pequenina como a mãe. Quem sabe um dia será ela o apoio do coro.
Alguma vez imaginou que chegaria a responsável pelo coro?
L.M.: Não, de todo. Mas isto tornou-se forte. Nunca pensei muito em casar, mas a certa altura comecei a pensar que tinha de casar um dia para o coro de Santo Amaro de Oeiras ir cantar ao meu casamento… No dia do meu casamento estava nervosa porque não sabia se alguém tinha ido buscar a chave da igreja para o coro poder entrar…
Tornou-se uma obsessão?
P.C.: Não é bem uma obsessão, é um sonho que temos. O coro faz parte da nossa vida e da nossa família. Estive cá uns 38 anos em que a minha mulher fez o favor de tomar conta das filhas para eu me manter fiel e assíduo ao coro. Isto é um casamento não só nosso, mas das nossas famílias.
L.M.: O meu marido está a tomar conta da minha mãe para eu poder estar aqui no ensaio. Há aqui uma comunidade não só dos coralistas mas das famílias.
O que sentem quando cantam?
P.M.: É ótimo no final do dia de trabalho. Às vezes vimos contrariadíssimos, metemo-nos no trânsito… Mas vamos daqui com outro astral, esquecemos o mau dia que passou e estamos com amigos que partilham o mesmo gosto que nós.
L.M: A música é uma terapia, algo relaxante.
Há pessoas que vêm para o coro à procura dessa terapia?
P.C.: Julgo que sim. Se calhar nós não tanto porque entrámos em miúdos. Eu fui para o coro porque era o coro da minha terra. Mas hoje a vida coral deu um salto, há muito mais coros, muito mais diversidade. Há coros para todos os gostos.
As pessoas querem um compromisso?
P.C.: As pessoas querem ter um compromisso, uma ocupação, qualquer coisa que, durante uma hora ou duas, as alivie da vida e das preocupações, da sociedade que nos rodeia e das coisas que nos atormentam um bocadinho, a preocupação com os filhos, com os netos.
Diz-se que os miúdos estão mais irrequietos. Largam os telemóveis nos ensaios?
P.C.: Para já é proibido, mas eles também que estão ali para ensaiar. Também não têm hora e meia, tem uma hora. Os mais pequeninos, o grupo de iniciados dos três/quarto anos, tem só meia hora de ensaio semanal.
Já tentaram arranjar outro sucesso?
P.C.: O maestro tinha músicas lindíssimas, mas não pegaram da mesma forma. Esta tem carisma mas tínhamos outras, como “A Prenda de Natal”. Hoje diria que em 75% das famílias portuguesas mais tradicionais, na noite de Natal, toda a gente canta o “A Todos Um Bom Natal. Mais afinado, menos afinado. Às vezes os mais velhos lembram-se da música, mas os mais novos sabem os solos todos. Não tem uma explicação. Foi algo que foi feito com o mesmo amor mas que por uma razão alheia resultou. Como outras pegaram. Porque é que se canta uma “O Fortuna”? Um “Aleluia” de Handel? Foram peças que pegaram e ficaram e que serão, se calhar, para a eternidade. Deus queira que o “A Todos Um Bom Natal” também seja daqui a 100 anos conhecido.
A Leonor vai espreitar o vídeo ao YouTube, aquele em que aparece pequenina com a saia tirolesa azul?
L.M.: Ainda temos uma imagem mais antiga, saia preta, quase a imagem de um coro adulto. O coro infantil começou em 1976 com 17 crianças. [Hoje tem cerca de 80 crianças, dos 4 aos 13 anos]. Quando o “A Todos Um Bom Natal” começa a ter sucesso começámos a ser muito procurados. Tornou a acontecer em 2012 quando ganhámos um prémio da ONU, fizemos a música “O Meu Planeta Azul”. Salvo erro eram 370 músicas e o coro infantil ficou em primeiro lugar. Tivemos o privilégio de ir representar o país e o mundo na Cimeira da Terra. As pessoas de Oeiras voltaram a procurar o coro e foi nessa altura que alargamos para os mais novos.
Agora com o Revenge of 90’s é de esperar o mesmo?
L.M.: Foi uma honra participar. E fomos convidados para o “The Voice” também.
Vocês ainda cantam ou só chefiam?
P.C.: Claro que cantamos, temos de cantar para aliviar o stress. Cantamos sem presunção. Temos muita vaidade em pertencer ao Coro de Santo Amaro de Oeiras, mas não queremos ser melhor que os outros coros. Temos colegas e amigos noutros coros, até a dirigi-los e damo-nos 100% bem.
O que é que vos arrepia mais cantar?
P.C.: No “A Todos Um Bom Natal” não há arrepio, há alegria. Começa a ser aquela peça em que já não olhamos para a maestrina. Olhamos para o público para ver se estão a cantar connosco. Uma música que a mim me faz arrepiar é o “Foi Deus” e uma outra que cantamos que é a “Signore Delle Cime”. Foi feita em homenagem a um alpinista que morreu na montanha. Cantarmos aquela música, a letra, é muito tocante e acho que conseguimos passar esse sentimento.
L.M.: Depois tem muito a ver com as nossas próprias vivências. Esta música da “Signore Delle Cime” lembro-me que o coro a cantou pela primeira vez na altura em que o meu pai faleceu. A nossa vida está ligada às musicas.
P.C.: Estou aqui há 42 anos consecutivos, nunca faltei. Fui pai duas vezes. Fui operado duas vezes. Vim de muletas. Esta menina veio grávida, com as bebés. Muitas vêm a dar mama ainda. Há uma grande percentagem de bebés que passaram por este ambiente e que acabaram mais tarde por entrar no coro. Há qualquer coisa que é transmitido. Aquele primeiro contacto com a barriga resultou.
Que projetos têm em mãos?
P.C.: Criámos há seis anos um centro de estudos musicais, uma forma de dar resposta aos pais das crianças que perguntavam se não dávamos aulas de instrumentos. Vimos aí forma de ter receita para fazer face a algumas de despesas de deslocações do coro.
Há algum artista conhecido que tenha passado pelo coro?
L.M. O fadista Pedro Moutinho. E depois cantámos com os Anjos, com as Just Girls, com a Cuca Roseta, Amor Electro, Os Corvos, Nico da Câmara Pereira…
E fizeram os coros da Xana Toc Toc. Estão em casa das famílias de muitas formas.
P.C.: O coro tem muito que agradecer às suas próprias famílias, aos pais das crianças. É um apoio incondicional. Os pais vão pô-los, buscá-los, às vezes ficam à espera duas, três horas. Há um compromisso das famílias e acho que essa é uma das grandes razões para o coro continuar a existir.
Nasceram em 1960.
P.C.: Em 2020 vamos fazer 60 anos. Acho que devemos ser dos coros mais antigos do país. Há um projeto na minha cabeça mas ainda nem eles sabem.