Poesia, existência, resistência

Poesia, existência, resistência


Por sua própria natureza a poesia é uma forma de se contrapor à corrente anti-humanista, de se opor aos signos velozes de uma guerra híbrida que opera no sentido de entronizar regimes de ultradireita como no Brasil de agora


Les sanglots longs

Des violons

De l'automne

Blessent mon coeur

D'une langueur

Monotone

Os versos acima, que, mais exatamente, constituem a primeira estrofe do célebre poema Chanson de D´Automne, Canção do outono, de Paul Verlaine, (1844/1896), entrou para a história da Segunda Guerra Mundial, como muitos devem saber, numa ação que se tornou decisiva para o desenlace do conflito.

O trecho inicial do poema de grande refinamento lírico, espantosamente, foi utilizado como uma poderosa ferramenta de guerra ao servir de senha para a invasão da Normandia, norte da França, pelas tropas aliadas, no ano de 1944, episódio que ficou conhecido como o Dia D e que marca o início da vitória contra o nazismo.

Os versos foram transmitidos pela BBC de Londres para o povo francês, particularmente aos membros da Resistência Francesa, como um aviso de que o desembarque dos aliados na costa da Normandia estava sendo preparado.

A primeira parte da estrofe Les sanglots longs des violons de l'automne foi transmitida a partir do dia 1º de junho como uma mensagem de mobilização para a Resistência colocar em andamento um sistema de sabotagens como parte integrante do plano de invasão. Já a segunda parte Blessent mon coeur d'une langueur monotone foi transmitida no dia 5 de junho para avisar que a ordem da invasão havia sido dada.

Este fato épico da historia recente da humanidade ilustra os tipos de relação que, de uma maneira ou de outra, podem haver entre poesia, história e sociedade, mesmo que às vezes ela se dê das formas mais incomuns, inesperadas e quase fabulosas como no caso deste grande episódio, um poema extremamente lírico atuando como aliado na luta contra um  monstro que devastava tudo o que via e o que havia pela frente. Reflete também a ideia e o fato de que poesia e resistência sempre estão ligadas de um certo modo, pois mesmo quando isso não se dá diretamente associado ao campo do social e do político, até, porque, embora a poesia não deva, principalmente em determinados momentos históricos, fechar os olhos para estes aspectos da vida coletiva, estes não são, em primeira instancia, seu objeto principal de observação e ação, pois se assim fosse a poesia deixaria de ser uma arte verbal para se torna-se uma espécie de ramo da sociologia, da antropologia, do discurso político panfletário, abrindo mão de sua rica complexidade polissêmica para se reduzir a um didatismo a serviço dos mais variados interesses. Portanto, a relação entre poesia e resistência, independentemente de qualquer contexto histórico e político específico, começa no campo da linguagem, a considerar que na poesia a palavra deixa de ser apenas uma ferramenta de comunicação ou proselitismo para adentrar num universo estético que envolve, além do conceitual, também o plástico e o sonoro. Tanto o telescópio quanto o microscópio da poesia, em suas lentes que abarcam o macro do mundo e micro da vida, estão voltadas para a linguagem

E é justamente por não abrir mão deste principal alimento que a sustenta, que a arte da poesia deve ser a mais difícil de ser cooptada pelo mercado, por sua recusa a prestar-se a fins objetivamente utilitários, como o de apenas propagandear uma ideologia ou adequar-se superficialmente ao “gosto” do público e assim conquistar o seu acesso a um maior número de “consumidores” ou ainda de seguir certas “tendências”, que se aproximam mais de estratégias de marketing e de artefatos da indústria pop do que de um projeto poético, embora encontre-se alguns “poetas” que aderem a este canto de sereia e por ele são mais facilmente alçados a uma certa e imediata notoriedade, sobre a qual o tempo se encarregará de dar a última palavra. Os que agem dessa forma o fazem sob a premissa da contemporaneidade, quando na maioria dos casos é, simplesmente, o apelo aos recursos mais fáceis que torna “o produto” mais digerível e mais acessível, um tipo de adequação que os faz em vez de contemporâneos apenas datados. Não que os poetas não queiram ser lidos, sim, querem, mas não a este preço. A poesia não pode ceder a isto porque tal procedimento incidiria simplesmente na perda total de sua liberdade e densidade, que passaria a ser mais um produto sujeito às leis de consumo em vez de uma voz do ser e uma voz coletiva que também se faz necessária. Para que a poesia, sem se aviltar, chegasse a um público maior seria preciso ressignificar certas coisas como, por exemplo, a relação com o tempo. A poesia tem como primordial o ritmo, o ritmo é tempo, o tempo é vida. A poesia é uma reafirmação do tempo, uma reafirmação da vida. Em um mundo em que as pessoas dizem que não têm tempo, portanto não têm vida, a poesia é uma forma de resistir a este estado zumbi, pois ler um poema é, ao contrário do que nos é imposto, um desprender-se no tempo, é ir além da sobrevivência, é uma vivência, é experimentar uma forma de existência em um tempo sem amarras.

Por sua própria natureza a poesia é uma forma de se contrapor à corrente anti-humanista, de se opor aos signos velozes de uma guerra híbrida que opera no sentido de entronizar regimes de ultradireita como no Brasil de agora, de onde se avista um horizonte de retrocessos, ataques aos direitos e um massificante antiintelectualismo por meio do qual a burrice torna-se mais convincente que qualquer argumento fundamentado. O que notabiliza uma violência e um prejuízo incalculável ao país, não só em termos políticos, econômicos e sociais, mas em termos civilizatórios.

Se, em particular, a poesia brasileira precisa de resiliência, elasticidade, abrir-se cada vez mais para pluralidade de vozes que a compõem, já que por um longo período seguiu na busca de um caminho hegemônico que me atrevo a chamar, na  falta de outro termo, de “construtivismo ortodoxo”, ao tentar admitir apenas – não a concisão, um longo poema de Walt Whitman, por exemplo, pode ser considerado conciso – mas sim a máxima redução de elementos e a frieza em detrimento das possíveis e diversas formas de versos ou não versos, é preciso que a poesia brasileira esteja também agora na resistência, mesmo que de forma transversa – aliás, como sempre está – por meio da transgressão da linguagem padronizada ou até como uma arma involuntária de luta, ao modo do poema de Verlaine que aqui me arrisco a traduzir – tarefa malograda como quase toda tradução de poesia – na tentativa de manter a proximidade com a sonoridade original do poema, já que para o próprio Verlaine poesia é “a música acima de tudo” e “o resto é literatura”.

 

Os soluços longos

Dos violões

Do outono

Ferem minha dor

De um langor

Enfadonho