Passa pouco das seis da tarde e as luzes do trânsito em redor do Terreiro do Paço, em Lisboa, quase parecem coreografadas com as luzinhas de Natal que enfeitam esta parte da cidade. É sexta-feira – há precisamente uma semana, para sermos exatos – e apesar da hora que coincide com o horário de saída de trabalho de tanta gente, o grupo de pessoas que se inscreveu para a caminhada ultrapassa a meia centena. Vão chegando aos poucos, uns a correr, afogueados, outros com mais tempo, já em modo de passeio. Dirigem-se, como nós, ao homem de lista em punho que, aos pés da estátua de D. José, vai riscando o nome e dando as boas-vindas aos participantes. Também ele se chama José: José Rodrigues.
Desde meados de 2015 que o antigo gestor de formação profissional, de 48 anos, se dedica a tempo inteiro à Caminhando, empresa que começou informalmente, quase por carolice, como continuação de um gosto antigo por caminhadas. Só que, de repente, começou a aparecer tanta gente que começou a pensar na “legalidade da coisa” – e também a ver uma oportunidade de mudar o rumo profissional. “Tinha este bichinho, até porque estive ligado a movimentos associativos em Alhandra e depois numa junta de freguesia”, há de contar-nos já no fim do percurso. Desde que transformou o bichinho em empresa – que tem licença de agência de viagens e de animação turística –, José organiza caminhadas e outros passeios subordinados aos mais diversos temas: há visitas guiadas ao Museu da Maçonaria, caminhadas por quintas de Belas ou na baía do Seixal, o Circuito dos Nove Miradouros de Lisboa… O de hoje ilustra bem a quadra: é a Caminhada das Luzes de Natal – 2018.
É o próprio José, ajudado por Jorge Gonçalves e Ana Baião, que servirá de guia. O trio está identificado com coletes refletores e walkie talkies, para irem comunicando e evitar que alguém fique para trás. Quando são passeios mais específicos – como, por exemplo, um percurso que nos leva pelos locais dos crimes em Lisboa ou a Lisboa do terramoto – as hostes são comandadas por um historiador. Noutros casos, como o recente passeio por Alenquer, vila presépio, José procura as câmaras e outras entidades locais para conseguir passar o máximo de informação e a mais fidedigna possível a quem se junta à caminhada.
Jorge, economista de profissão, já caminha há mais de dez anos com José, e continua a dar-lhe uma mãozinha quando os grupos assim o exigem. E o número de pessoas que procura a Caminhando faz com que o economista seja uma presença recorrente.
“Às vezes temos que dividir os grupos para isto não parecer uma manifestação”, conta com um sorriso, explicando que o rácio ideal é um guia para casa 25 pessoas. Por isso, também Ana Baião, psicomotricista, é chamada para acompanhar os grupos e garante que continua a descobrir sempre coisas novas, mesmo fazendo regularmente o mesmo percurso.
Hora de andar Grupo reunido, primeiras indicações: cuidado nas passadeiras e tentar não perder o pelotão. Seguimos pela Baixa, enchendo passeios e provocando um olhar curioso em quem se cruza em contramão.
As idades vão literalmente dos 8 aos 80 e temos alguns participantes repetentes, que já se tinham inscrito em caminhadas com José, mas a maioria são pés novos nestas andanças. Guida Santos, por exemplo, não é novata. “Já fiz as caminhadas dos miradouros da Expo a Belém”, conta a oficial de operações de voo, de 47 anos, enquanto vamos pisando o manto fofo de folhas caídas que cobre a Avenida da Liberdade. Desta vez, traz consigo consigo os dois filhos adolescentes e uma amiga. “Isto para mim é uma terapia interior, mais até do que da parte física. E vou conhecendo Lisboa de outra forma”, aponta.
Guida é natural de Óbidos, mas mora em Lisboa, ao contrário da maior parte dos caminhantes que veio de fora da capital: há cinco amigas de Santarém, quatro delas professoras; dez amigos e familiares de Torres Vedras que já caminhavam com frequência, outro grupo de amigas de Almada, onde se inclui Maria Clara Pato, reformada, que depois de 40 anos de trabalho no Banco de Portugal nos vai contando a história de um túnel que ligava o antigo edifício ao Cais do Sodré e que apareceu durante as obras da instituição.
A caminheira mais longe de casa é Sofia Caseiro, 37 anos. É bombeira e veio de Aguiar da Beira, acompanhada de Letícia, de 13 anos, uma amiga. Vieram de propósito ver as luzes depois de descobrirem este percurso na internet. “Já no ano passado tinha visto passeio no Facebook e fiquei com vontade de fazer”, conta Sofia que é a prova de que esta forma de conhecer os locais está cada vez mais a cair no goto da população. “Hoje ficamos cá a dormir e amanhã vamos fazer outra caminhada à noite”, conta.
As idades, profissões e terras são diferentes, mas, numa Baixa cheia de turistas, este é, curiosamente, um grupo quase exclusivamente de portugueses – e tem sido assim nos eventos da Caminhando. “No nosso caso, os participantes são 99% portugueses”, confirma Jorge, que esta noite tem a função de “carro-vassoura” e, no fundo do pelotão, vai-se certificando que ninguém fica para trás. Mas há, por vezes, participantes estrangeiros, como um “senhor espanhol que já veio duas vezes de Madrid propositadamente para uma caminhada”, recorda Ana, que ficou espantada com o empenho.
Andando, aprendendo e… Para lá de ver as luzes de Natal e do exercício físico que, em jeito profilático face aos excessos da época, vem mesmo a calhar, os participantes com quem falámos são unânimes em destacar uma grande mais valia: a aprendizagem. Isto porque José Rodrigues vai parando em locais estratégicos – a praça do Martim Moniz, o miradouro de São Pedro de Alcântara, a praça do Município, etc. – para, de uma forma sucinta, apresentar uma curiosidade sobre cada um dos locais. Logo no início, a título de exemplo, contou que a estátua de D. José demorou 63 dias a ser feita, ou, já a meio, que há uma parte da muralha fernandina que está dentro do Centro Comercial do Chiado. Pormenores que, no fim, fazem a diferença.
Nuno Santos (38 anos), gestor, diz que ficou surpreendido por descobrir que já há uma ligação direta – a ciclovia – que une o Parque Eduardo VII a Monsanto. Já Sofia Caseiro, por exemplo, não sabia que a “muralha fernandina” era tão longa.
Se aprender é valorizado por quem se junta a este tipo de iniciativas, a interação humana é também ponto de interesse para alguns dos participantes. “Também podia fazer isto sozinha, mas não ia prestar atenção aos pormenores nem aprender tantas coisas”, conta-nos Lesya Svysch num português fluente. Natural da Ucrânia e a viver em Portugal há 20 anos, Lesya é vigilante na Sonae e veio da Azambuja com o filho, depois de encontrar este evento no Facebook. E acha o preço que pagou pelos bilhetes justo. “Seis euros também não é assim uma coisa de outro mundo”, diz a rir – até porque o seguro de responsabilidade civil está incluído e, depois da caminhada, todos recebem a respetiva fatura por email.
“Os preços variam consoante a caminhada – por exemplo, se incluir uma visita guiada a um museu, terá mais esse custo”, explica José, o fundador da Caminhando, que também organiza outras atividades, como passeios de barco, e que faz um “balanço positivo” da atividade, até pela componente humana.
Lesya, que durante todo o caminho não largou o sorriso nem um saco que levava nas mãos, continua a reforçar que, no seu caso, uma das grandes mais -valia é o convívio. “É sempre mais divertido fazermos estas coisas em grupo e podemos conhecer outras pessoas”, destaca, antes de, fazendo jus às suas próprias palavras, nos contar pormenores curiosos da sua vida: incluindo a memória de uma bisavó nascida em Nova Iorque, onde chegou a ter uma fábrica de tijolos que vendeu para voltar à Ucrânia; ou de uma vez, ainda quando a Ucrânia fazia parte da União Soviética, quase ter sido expulsa da escola por ter levado uma t-shirt com a bandeira francesa. “Também gosto muito de História de Portugal e gosto muito de cá estar. Não penso voltar, mas a Ucrânia é o meu país,”, diz, enquanto, sem largar um sorriso, vai lamentando tensão crescente na Crimeia. “Sabe quantos anos tenho? 48! pareço mais nova porque sou alegre!”.
E Superando Já falámos do gosto pelo exercício físico, da vontade de conhecer novos sítios e do convívio, mas Ana Baião, a guia, conta que há um outro motivo que leva as pessoas a inscreverem-se nas caminhadas: a superação. “Há quem venha pela fotografia, outros pela história, mas também quem venha para superar desafios. Já tivemos um senhor que foi operado ao joelho, outro ao pé e até um que tinha estado acamado. E vêm testar os seus limites, perceber o que já conseguem fazer”.
Neste grupo, também há um exemplo: uma senhora com esclerose que, apesar de ir ficando para o fim, caminhou debaixo das luzes durante quase três horas, de braço dado com a nora, para no fim confessar que há muitos anos que não andava tanto. É que, entretanto, são quase 21h30 e, um pouco mais de 9 km depois, voltámos ao Terreiro do Paço. Fizemos uma média de 3 km por hora, o normal para um grupo tão heterogéneo. Gente mais habituada a estas lides consegue fazer uma média “de 4,5 ou 5 km por hora”, explica Jorge, que está quase a despir o colete de guia para voltar a ser economista. Pelo caminho, alguns mandaram a toalha ao chão, mas a maioria chega ao fim, de faces ligeiramente rosadas, muitas fotografias novas no telemóvel e aquela pontinha do sentimento de missão cumprida.
“Espero ver-vos por aí, caminhando”, despede-se José. Amanhã, há mais, pelo menos para ele: mais luzes de Natal e uma caminhada pelas galerias do Loreto. Já são quilómetros nas pernas e muita saliva gasta a dar a conhecer os sítios por onde vai passando. E, pela adesão, a procissão parece ainda ir no adro.