Em 2016, Leonor Teles estava já em rodagem de “Terra Franca” quando soube que a sua curta “Balada de Um Batráquio” acabava de ganhar um Urso de Ouro em Berlim. A magnitude da conquista, confessa, poderia tê-la feito, aos 24 anos, sentir-se “um bocado perdida”. O tempo que passava a filmar a família Lobo, numa comunidade piscatória de Vila Franca de Xira, salvou-a da deriva: “Como já sabia o que ia fazer [a seguir a ‘Balada’], simplesmente continuei a fazê-lo.”
Desse longo convívio de mais de três anos com Albertino Lobo e a sua família nasceu este “Terra Franca”, a sua primeira longa-metragem. Ao medir forças com um pescador do Tejo em situação precária e clandestina, a realizadora corria o risco de cair na maldição da irrealidade que cobre quem procura representar o “país real”. Perante o velho rosto agreste, ameninado, por vezes sardónico de Albertino, um olhar incauto revelaria apenas o seu próprio exotismo e inconsistência.
Não é assim com Leonor Teles, que mostra ter superado o agridoce cognome de “a conquistadora de um prémio importante” que arriscava pespegar-se–lhe como a etiqueta de um casaco que nos esquecemos de arrancar. Dir-se-ia que uma certa irrequietude gentil, própria da juventude, e uma bonomia que não se confunde com ligeireza de escrúpulos são aquilo que lhe permite ir trepando com firmeza pela corda que Albertino e a sua família lhe lançam, sem perder agilidade, exatidão ou humor.
O paradoxo do “país real”, incubado no cenário unidimensional e aclimatizado das televisões, é que se esfuma a partir do momento em que o nomeiam. Torna-se inviável, arredio, assobia para o lado e ignora a convocatória, num estranhamento que guarda qualquer coisa de felino, um amor-próprio que assiste embaraçado ao sobressalto alheio. Logo que uma estrada derrui, que fogos, cheias, acidentes de automóvel ou histórias de crueldade medrada na miséria refluem à boca ávida das redações e programas de entretenimento, as cabeças falantes esgrimem-se em nome desse país real, nem se apercebendo, afinal, que invocá–lo é a marca do seu próprio expatriamento. E, mesmo quando espetam microfones diante de alguém embrutecido pela dor ou pelo choque, pretendendo dar voz aos desapossados, é apenas o que existe de postiço e condicionado na sua mundividência que estas plantas de estufa deixam a nu.
De boas intenções, já se sabe, está o inferno cheio, e não raro uma esquerda gentrificada, entre a qual uma leva de artistas, exalta os pobres e os trabalhadores, sem se dar conta de cair no mais salazarento dos idílios. É que a rudeza tende a ser uma língua cuspida, feroz e escarninha, incompatível com exercícios de conceptualização, indigesta a estéticas ou à nostalgia de um mundo simplificado, maniqueísta, esse em que a pobreza cauciona os bons sentimentos dos que pretendem representá-la.
Mas o que temos, ao cabo dos 80 minutos deste documentário (insuficiente etiqueta para aquilo de que aqui falamos), não é nem um vazio deixado pela incomparência ou fuga de Albertino à imagem que dele pretendessem enlatar, e disfarçada com uma espécie de homenagem póstuma, nem o cordão sanitário do respeitinho em torno de um homem por quem um dia, como ele diz, a fome passou.
“Para não se ser devorado pelo nada ou pelo vazio, há que fazê-los em cada um de nós”, escreveu Maria Zambrano em “Clareiras do Bosque”. E o que a lente de Leonor Teles nos traz é o respirar de uma clareira, o pulso com que cada homem abre a sua. Quando Albertino remenda as suas redes, essas que não está certo de um dia poder voltar a usar legalmente, é esse labor íntimo, e o pudor que lhe corresponde, que se deixa adivinhar. Nas cenas solitárias de pesca no barco, quando o rosto de Albertino se abre numa “espessura inicial entre o céu e a terra”, mas também nas cenas de convívio entre a família Lobo, é a “vida verdadeira, surpreendida somente em algumas clareiras”, aquilo que sem hesitação reconhecemos, ao ponto de precisamente nos vir da absoluta familiaridade o fascínio que o cinema, com o seu quê de longínquo, incomportável na vida quotidiana, tem por alma convocar.
Feito em HD, certos momentos de “Terra Franca”, sobretudo as cenas de pesca e as imagens do rio, quase sugerem “o grão, o desfoque, uma aura” das imagens que Leonor, aqui também responsável pela direção de fotografia, diz exclusivos da película, e que prefere ao digital. “Para mim, um filme em alta definição não me traz a mesma coisa que filmar em película”, dizia a cineasta ao “Expresso”, numa entrevista anterior a este filme. Era o enunciar involuntário de uma ética, expressa no rosto seco e enrugado de Albertino, quase palpável, um rosto livre e intocado na sua dignidade.