A minha vida tem banda sonora. Como a de quase todos nós. Umas vezes são os momentos marcantes da existência que emergem na nossa memória com a adequada composição musical; outras são os temas que nos desatam um rol de recordações alegres ou tristes. O “Ojalá” de Silvio Rodríguez leva-me sempre de volta para a Argentina (mesmo que Silvio seja o expoente máximo da trova cubana e a minha paisagem sonora argentina tivesse começado com Astor Piazzolla); o “Sin tu Latido”, de Luis Eduardo Aute, está associado a determinadas cumplicidades; o “The Power of Love”, dos Frankie Goes To Hollywood, foi decorado para impressionar as mulheres e representa para mim o entusiasmo do amor adolescente; “A Nau Catrineta”, do Fausto, é o princípio do meu entendimento do mundo, que todo o “Por Este Rio Acima” consolidou; o “Terça-feira”, do Sérgio Godinho, é uma canção perfeita que decorei e cantei vezes conta.
Sem música, a vida seria um erro, afirmava Nietzsche que, além de filósofo, também tocava e compunha. A julgar pelas suas próprias afirmações, o seu “Hino à Vida” contém nele as pistas para a sua filosofia. E se a minha vida pode ter erros (que os tem, em catadupa), não será por falta de música. E ainda hoje sinto uma inveja tremenda daqueles que leem e escrevem pautas e conseguem extrair notas dos instrumentos musicais – quando as minhas tentativas só extraíram dores de cabeça.
Guardadas no meu cérebro estão centenas (milhares) de composições musicais que, ouvidas, carregam botões em mim. Da mais pimba (se soar o “Glory of Love” do Peter Cetera, com toda a sua oleosidade resistente a qualquer tipo de champô, voltam-me as experiências da rádio pirata e a cumplicidade com o meu amigo Mató, com quem apresentei um programa de música semanal durante mais de dois anos) à mais erudita (o “Stabat Mater”, de Vivaldi, o prelúdio do “Tristão e Isolda”, do Wagner, o 1.o Concerto para Violino e Orquestra de Tchaikovsky), passando por momentos de autêntica emoção com o “Ederlezi”, a canção tradicional cigana que ouvi pela primeira vez em “O Tempo dos Ciganos”, de Emir Kusturica, e que aprendi foneticamente apesar de não fazer a mínima ideia do que estou a cantar.
A arte musical tem essa capacidade de, com uma linguagem completamente abstrata, criar-nos emoções reais, induzir-nos determinados comportamentos. Quando uma corda vibra, as moléculas de ar ao seu redor movimentam-se na mesma frequência, e o nosso ouvido capta essa vibração e transmite a informação ao cérebro, que a processa e, a cada frequência, atribui uma nota. E o incrível é como essa agitação de moléculas nos agita por dentro. Uma tarefa aborrecida como lavar louça ganha dimensão de experiência transcendente quando as passagens da esponja se transformam em coreografias. Há vídeos que provam momentos embaraçosos desse triângulo que estabeleço entre mim, os pratos e a música.
Esse estado de permanente emoção trazido pela música faz-nos sentir vivos. Mas a música, como a vida, precisa de estar em constante renovação. Mesmo um novo exercício de três minutos e meio de um rearranjo simples das mesmas sete notas revitaliza-nos as energias, faz-nos sentir mais existentes.
Uma das minhas frustrações atuais é a de não conseguir manter-me a par do novo que musicalmente vai aparecendo. Não só porque me falta tempo para acompanhar a imprensa musical como porque o ritmo de edição, a multiplicação de projetos, o nível de colaboração entre músicos tornou o navegar à bolina quase impossível, obrigando o melómano a arriscar uma rota e esperar que seja a melhor.
Claro que o Spotify, meu fiel escudeiro nesta luta inglória contra a ignorância, me vai ajudando a descobrir algumas coisas que poderiam ter-me passado despercebidas não fosse a sugestão do seu algoritmo (capaz de nos transformar a todos em escravos dos nossos próprios gostos, sem espaço para adquirir novos, embora se lhe deva reconhecer que nos vai dando algumas pistas válidas). E temos sempre o algoritmo especial dos amigos, que nos conhecem e com quem partilhamos afinidades musicais. Não é, no entanto, o mesmo que o garimpo quotidiano do nosso próprio ouvido.
Perante tudo isto, custa-me compreender quem não ouve música. Quem foi envelhecendo sem banda sonora. Quem diz “eu só gosto de música dos anos 1960” (o equivalente musical a afirmar que a Terra é plana) ou quem passa o dia a ouvir a M80 (ao terceiro tema começa a cheirar-me a naftalina e só vejo traças mortas).
Não me interpretem mal, sou o primeiro a alinhar numa cantoria (no sing-along), deem-me qualquer cançãozinha antiga e desato logo a arruiná-la com alento (“isto é bossa nova, isto é muito natural”) e sou capaz de irritar meio mundo quando me apaixono por canções e quero que os outros se entusiasmem tanto quanto eu. No entanto, se me mantivesse agarrado ao “Primeiro Dia” ou à “Barca dos Amantes”, imaginem a quantidade de grandes canções de Sérgio Godinho que haveria perdido e como estaria bem pior se não me tivesse apaixonado este ano pelo “Delicado”.