A moda do gluten free mudou a vida dos celíacos em Portugal?

A moda do gluten free mudou a vida dos celíacos em Portugal?


Sofrem sem que ninguém os ajude, pois a doença é de difícil diagnóstico. Emagrecem muito, sofrem dores agudas, perdem energia e ficam sem apetite. Felizmente, nos últimos anos os médicos estão mais sensíveis para o problema e um diagnóstico precoce favorece a vida dos celíacos. Histórias de quem se habituou a viver sem glúten


Comer produtos sem glúten tornou-se uma moda. Além dos primeiros espaços gluten free, encontrar produtos isentos não parece uma tarefa difícil, sobretudo nos supermercados que hoje têm secções específicas para este tipo de produtos. Será que esta moda mudou a vida dos doentes celíacos em Portugal? O i procurou pessoas que sofrem da doença e quis saber o que mudou nos últimos tempos.

Manuel Rodrigues tem 76 anos. Desde o dia em que recebeu o diagnóstico – já lá vão mais de dez anos – garante que o acesso a produtos nem sempre foi fácil, mas que a moda de comer sem glúten levou a um investimento favorável no mercado. Antes, comer pão ou massas era impensável. Agora, tudo é mais fácil: “Hoje há cada vez mais produtos, é fácil ir aos supermercados e encontrar variedade. A maioria são produtos importados, mas nota-se o desenvolvimento e progresso que há uns anos não existia. Dar a conhecer o glúten e o que pode acontecer com a ingestão deste fez toda a diferença”, contou. Contudo, no que toca a espaços 100% isentos de glúten e que tragam a garantia de segurança, Manuel defende que estes continuam a ser poucos, acrescentando que é fácil encontrar estes espaços em grandes centro urbanos, mas que fora se torna difícil.

Cinquenta a três anos separam Manuel de Inês, uma jovem que foi diagnosticada aos 18 anos, mas ambos partilham a mesma opinião. “Acho que com as modas e a preocupação pelo ser saudável trouxe coisas boas. As pessoas que têm a doença celíaca hoje têm muito mais oferta do que há 5 anos. Eu sinto que quando descobri não havia muita oferta”, começou por dizer Inês Cunha, acrescentando que os espaços com certificado gluten free “são tão importantes que é difícil encontrar uma resposta”.

“Quando dou por mim a comer num espaço certificado pareço uma criança a ver doces pela primeira vez ou alguém que nunca viu o mar. Acho que é uma boa comparação para se perceber a importância que têm para mim e para a minha vida. É pena que ainda sejam tão poucos”, frisa. Para os celíacos estes espaços representam comer com segurança e sem receio de contaminação, ainda assim a qualidade tem um preço.

Preços O acesso a produtos sem glúten começou a ser mais fácil, mas também implica um maior investimento. Marta Pires, de 35 anos, é da opinião que “os preços são mais altos”, talvez pelo trabalho que requer “a ausência de contaminação cruzada”. “Pela experiência que tenho, alguns produtos, como por exemplo o pão, podem chegar a ser três a cinco vezes mais caros”, diz Marta. “Tenho sorte de ter a possibilidade de poder comprar estes produtos, porque acredito que algumas pessoas não possam fazer o mesmo”, refere Manuel. Mas nem todos partilham da mesma opinião. Lídia Luís, de 47 anos, considera que a maior parte dos espaços são acessíveis e que a segurança é o mais importante. “Acho que a maior parte dos espaços são acessíveis, talvez alguns produtos do supermercado sejam mais caros”, afirma Lídia, acrescentando que o certificado permite que se sinta segura, já que “não basta estar assinalado que não tem glúten”.

Sem glúten, mas não isento Se há coisa em comum entre Manuel, Inês, Marta e Lídia é o facto de todos já terem tido problemas com produtos que diziam não conter glúten e é por isso que valorizavam tanto a importância de um certificado glúten free, já que muitas vezes os produtos podem ter assinalado que não contêm glúten, mas têm vestígios. “Não me sinto sempre segura, se não tiver certificado, fui a um restaurante que na ementa estava assinalado que não tinha glúten, mas quando recebi o prato vi que tinha pão. É preciso ter atenção, mais cuidado, no meu caso foi fácil perceber, mas e se fosse uma criança com o mesmo problema? Possivelmente comia tudo sem que os pais se apercebessem”, conta Lídia. “Acho que há vários espaços que oferecem opções sem glúten, onde há sempre o risco de contaminação”, acrescenta Marta. Também Manuel teve uma experiência semelhante: “Uma vez pedi uma pizza sem glúten, esperei três horas para ser servido e quando regressei senti-me mal disposto. Existia uma percentagem de glúten”, queixa-se. Para Inês, explicar esta intolerância pode ser difícil: “Aconteceu várias vezes dizerem-me que o produto era sem glúten e eu dizia que era celíaca e nem os próprios funcionários tinham formação sobre isso. Outras vezes, digo que tem que ser com talheres diferentes, que não posso ter pão no meu prato ou certos artigos para não haver contaminação e as pessoas ficam desconfiadas e acham que eu estou ali só a dificultar o trabalhos e sinto-me mal por isso, mas tenho de evitar a todo o custo a contaminação”, relata.

A dieta Ser celíaco significa ter uma dieta regrada e uma mudança de vida, mas para a maioria esta já não é uma dificuldade. “Para mim tomar medicação era pior do que fazer uma dieta. Acho que não é difícil”, diz Lídia Cunha. Para Marta, por vezes, alguns alimentos “deixam saudade”, mas confessa que “quando se tem sintomas fortes pouco depois de ingerir alimentos com glúten”, percebe que “custa menos prescindir deles”. Da mesma opinião partilha Inês Cunha: “Só queria a solução para o meu problema. Se esses alimentos me fazem mal então não é difícil, penso logo nas consequências que trazem na ingestão”. “Hoje sei tratar-me perfeitamente e não é difícil, é uma questão de disciplina”, defende Manuel, que destaca o papel da Associação Portuguesa de Celíacos no pós-diagnóstico.

Diagnóstico Se há coisa que o tempo trouxe foi a facilidade de diagnóstico. Apesar de este ser um processo penoso e demorado, atualmente é mais fácil diagnosticar e estar atento à doença, do que era há uns tempos. Marta Pires relembra que os sintomas começaram por volta dos 12 anos com uma anemia por deficiência de ferro, mas foram precisos mais dez anos e muitos outros sintomas para finalmente perceber o que tinha. Hoje, quando olha para trás, garante que os próprios sintomas podem ter muitas causas e dificultar o diagnóstico.

Também Lídia, que recebeu o diagnóstico há menos de um ano, recorda que sempre teve “más digestões, barriga inchada e hemoglobina muito baixa”. Há anos que realizava a endoscopia alta por prevenção, depois de o pai ter sofrido um cancro no estômago, mas só recentemente descobriram os primeiros vestígios da doença celíaca. “Os casos estão a ser detetados muito tarde porque antes esta era considerada uma doença pediátrica. É um arrasto, arranjei sempre muitas desculpas, todas elas erradas, e depois traz muitos problemas”, conta.

Apesar de não terem sido tempos fáceis, Manuel recorda o diagnóstico com algum humor: “Quando o médico me disse ‘é celíaco’, eu perguntei se tinha algum cancro. Nunca tinha ouvido falar”, recordou, acrescentando que felizmente nunca teve “muitas dores”, mas que perdeu muito peso. Tal como Manuel, também Inês, hoje com 23 anos, recorda que na altura perdeu muito peso. Para a jovem o processo até ao diagnóstico foi uma das coisas mais difíceis pelas quais já teve de passar. “Quando não tens problemas de saúde, nem dás valor porque sempre te sentiste bem. Só sentes que a saúde é realmente importante quando não a tens. E eu senti isso na pele. Ter de ir dia sim, dia não ao hospital. Fazer exames constantemente, fazer dietas para certos exames como a endoscopia e a colonoscopia é muito desgastante, ainda para mais quando fazes isso tudo e chegas à conclusão que não sabes o que tens. Tinha 60kg no início, no final do processo tinha 42kg. O ano de 2013 para 2014 foi longo. Foi um ano de incertezas, magreza extrema, mas tudo o que é mau tem sempre um fim”.