Brexit: on constructive ambiguity


De como o Conselho Europeu querendo ajudar Theresa May adiou por mais uns dias o inevitável


O Conselho Europeu voltou ontem à tradição de empapelar uma decisão política na esperança, vã, de transformar, aos olhos do cidadão europeu incauto, o conteúdo da decisão por via do respectivo embrulho. O acordo para o Brexit permanece intocado mas surge agora acompanhado por uma declaração política dos 27 e da Comissão Europeia onde se reitera a boa interpretação do texto. O exercício procura dar algum conforto a Theresa May, a “dead woman walking” que insiste em permanecer Primeira Ministra, não obstante não conseguir uma maioria em Westminster para sufragar os resultados da negociação que levou a cabo com a União Europeia.

O recurso a declarações políticas que possam servir de cartas de conforto a um ou mais Estados-membros é moeda corrente em Bruxelas e daí não vem mal ao mundo. Em casos mais graves já se recorreu ao tal mecanismo no relacionamento com Estados terceiros, como aconteceu recentemente aquando da vinculação ao acordo comercial entre a UE e o Canadá. Se as declarações políticas assumem a modalidade de declarações interpretativas em relação ao conteúdo negociado poderemos facilmente resvalar para o universo das reservas apostas a acordos internacionais. Basta que a interpretação defendida se revele incompatível com o fim e o objecto do acordo. A obra ontem revelada não vai tão longe mas é provável que esta declaração política sobre o Brexit seja como o proverbial aviso nas imediações das passagens de nível: “Cuidado, uma declaração política pode esconder uma outra!”

Este tipo de declarações políticas, para consumo interno de um Estado-membro cuja liderança se encontra em sérias dificuldades, vive daquilo que os negociadores internacionais caracterizam como “constructive ambiguity”, um fraseado que permite a cada uma das partes nele encontrar um significado diverso mas mutuamente reconfortante. A ambiguidade construtiva serve para permitir o progresso das negociações, embrulhando durante algum tempo um determinado ponto particularmente contencioso e ao qual se poderá regressar quando as partes estiverem mais próximas de um acordo global.

No caso do Brexit a ambiguidade é da escola Derrida, ajuda a desconstruir qualquer possibilidade de acordo que possa agradar ao Parlamento britânico e ao respectivo eleitorado. Para tornar a situação mais melindrosa não há, por ora, qualquer alternativa viável a Theresa May. Nem pelos Tories nem pelo Labour (a perspectiva de Corbyn como PM não entusiasma muita gente).

Depois da teimosia, May aposta agora na aparência de desprendimento, anunciando que não será candidata à re-eleição em 2022. Não precisava de o fazer. Poucos acreditam que se manterá como PM muito mais tempo, o mesmo acontecendo como líder dos conservadores. Mas o que ninguém acredita é que não haja eleições antecipadas. O Brexit tem de estar concluído no final de Março de 2019. Descontadas as festividades, faltam menos de 3 meses. Uma eternidade do ponto de vista político. Mas provavelmente menos do que o tempo necessário para produzir um novo PM que seja viável.

No entretanto os negociadores de Bruxelas puxarão mais uma vez da carta da ambiguidade construtiva e prolongarão a duração de um qualquer período transitório pós-Brexit. Os Brexiteers terão o seu Brexit e os remainers ficarão com o regime jurídico actual. Pior ficará o Reino Unido que terá de aplicar e obedecer às normas em cuja negociação não participa.

A ambiguidade construtiva também é capaz de proporcionar o pior de dois mundos.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990