A revolta dos coletes amarelos, que todos os sábados se exprime em França, demonstra um país completamente bloqueado e sem qualquer alternativa visível que possa exibir aos seus cidadãos. Depois da desastrada presidência de Hollande, julgava-se que Macron iria ser uma esperança, não apenas para a França, mas também para a Europa, com a reconstituição do eixo franco-alemão e a cessação da liderança isolada da Alemanha. Mas as ambições internacionais de Macron fizeram-no descurar a vertente interna e, hoje, parece prisioneiro no Eliseu, com o seu país a ferro e fogo.
Antes de tudo, há que reconhecer que as expectativas dos franceses em relação a Macron eram demasiado elevadas. Macron, tendo sido secretário-geral adjunto do presidente Hollande e, depois, ministro da Economia no governo Valls, dificilmente poderia representar alguma novidade. O movimento que criou de raiz, En Marche, não passou, por isso, de uma enorme mistificação em ordem a explorar o cansaço dos franceses com os partidos tradicionais, na tentativa de travar o acesso de Marine Le Pen ao Eliseu. Essa tentativa foi bem-sucedida, e o En Marche triunfou nas eleições, graças ao facto de a França ter um sistema eleitoral que permite a um partido com 1/3 dos votos ter 2/3 dos deputados. Mas essa alavancagem da representatividade eleitoral em que a França há muito vive não lhe permite ter uma resposta adequada nas alturas decisivas e, aí, basta uma fagulha para deitar fogo à pólvora.
A fagulha foi, neste caso, o aumento dos impostos sobre combustíveis, que é um símbolo da constante tributação dos cidadãos por um Estado cada vez mais voraz, com base em qualquer absurdo pretexto. O Estado francês é um dos Estados com maior pressão fiscal do mundo, existindo impostos para tudo. Ao mesmo tempo, e também devido às exigências da União Europeia, os Estados modernos impõem sucessivamente uma maior presença na vida dos cidadãos, sujeitando-os a regras cada vez mais absurdas, entre as quais se encontra a aquisição de produtos sem qualquer justificação. Há uns anos, em Portugal, todos foram obrigados a comprar palas para ter nas rodas traseiras dos automóveis, sob pena de pesadas multas, para que nos dias de chuva a água que os pneus projectavam não incomodasse os carros que vinham atrás. Imensas empresas devem ter ganho milhões com esse produto forçado, obrigando os cidadãos a uma despesa completamente absurda, já que, quando a regra foi abolida, desapareceram imediatamente as palas dos carros e ninguém se queixou de estar a levar com a água do carro da frente.
A transição energética tem servido de pretexto para aumentar ainda mais e exponencialmente os impostos e para obrigar à aquisição de produtos e serviços totalmente irrelevantes. Um bom exemplo são os certificados energéticos que as casas agora são obrigadas a ter e que apenas podem fazer algum sentido nos países do norte da Europa, com temperaturas negativas. Em Portugal, com as temperaturas amenas que o caracterizam, esta exigência não faz qualquer sentido, sendo mais um produto de compra obrigatória que os cidadãos são obrigados a adquirir sem qualquer justificação. E os impostos sobre os combustíveis são também mais uma das formas de o Estado se enriquecer às custas dos cidadãos, quando não existe qualquer alternativa consistente para a circulação das pessoas. Foi assim que a prometida baixa dos impostos sobre os combustíveis se limitou a uns meros cêntimos na gasolina, com o secretário de Estado a proclamar que o imposto não podia baixar, como fora prometido, porque era um “imposto verde”.
Só que os cidadãos comuns, que têm de viver com o seu baixo salário mensal e que precisam do carro – que compraram com muito esforço – para as suas deslocações não se comovem com a transição energética e os “impostos verdes”, que os deixam vermelhos de fúria. E estão cansados de viver em países em que o Estado os persegue até ao tutano, de tal modo que até uns ridículos e inúteis coletes amarelos os obriga a ter no carro, sob pena de multa.
Não admira, por isso, que essa peça de vestuário que o Estado os manda adquirir, mais uma vez promovendo um negócio à força, seja hoje usada pelos cidadãos como sinal distintivo da sua revolta. Os coletes amarelos são hoje o substituto dos barretes frígios usados pelos que tomaram a Bastilha. Mas, se a França ainda não recuou a 1789, está pelo menos perto de Maio de 1968, tal a dimensão dos protestos que surgiram no país. E, ao contrário de então, não tem um De Gaulle capaz de a repor no caminho certo.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990