Sistema falha e deixa rim cinco dias à venda no OLX

Sistema falha e deixa rim cinco dias à venda no OLX


Empresa garante que anúncios ilícitos ficam online poucos segundos. Este foi uma exceção


“Vendo um dos meus rins. Sou uma pessoa saudável, vegetariano, não fumo nem bebo álcool. Bebo água em abundância e tenho uma vida saudável. Tenho uma vida calma”. Durante cinco dias, um anúncio no OLX com esta descrição pedia 100 mil euros pelo negócio. Acabou por ser retirado ao fim desse tempo, quando foi detetado pela plataforma de vendas online. A OLX garante ter mecanismos de alerta que detetam este tipo de ocorrências e anulam de imediato anúncios que possam ser ilegais ou problemáticos. Desta vez, uma falha de sistema manteve o anúncio online mais tempo do que o que seria normal. 

A venda foi publicada em novembro por um utilizador que tinha como registo a zona de Leiria. Nada mais se sabe e até poderá não ter passado de uma brincadeira. Spas Slivkov, responsável do OLX em Portugal, explicou ao i que, até aqui, a plataforma só tinha tido registo de um anúncio deste teor, que ficou apenas alguns segundos ativo, como é suposto acontecer nestas situações. “Normalmente estes anúncios são colocados por ‘piada’. Nestes casos avisamos os users e caso continuem com este tipo de comportamento bloqueamos a conta”, respondeu por email Spas Slivkov. Desta vez, uma falha no sistema levou a que o classificado só fosse identificado passado alguns dias, mas o procedimento foi idêntico. “O anúncio foi retirado por nós assim que o sistema ficou operacional e detetou um anúncio ilegal.”

 

Vigilância permanente

A empresa garante que a monitorização no site é permanente e está em constante aperfeiçoamento. “Adicionalmente à revisão manual feita pela equipa de apoio ao cliente diariamente, temos investido também no desenvolvimento de algoritmos de inteligência artificial que ajudam no despiste de anúncios que podem não cumprir com os termos e condições de publicação no site ou que suscitem dúvidas quanto à sua veracidade”, explica Spas Slivkov. Os critérios usados para monitorizar os anúncios assentam em travar tudo o que seja ilegal ou eticamente questionável. Além da venda de órgãos, Slivkov dá como exemplo classificados que visem trocar animais por produtos, que também são automaticamente eliminados da plataforma.

Se este é o primeiro nível de escrutínio, também as autoridades mantêm uma monitorização da internet para prevenir e identificar eventuais crimes, mas   a rede é demasiado ampla para que se possa ver tudo. Fonte da PJ explicou ao i que nem sempre é possível monitorizar a todo o tempo o que se passa neste tipo de plataformas, garantindo que quando surge um alerta a situação é logo investigada: “Temos de estar atentos, mas temos os nossos casos em mãos também. Obviamente que dado o alerta faremos tudo o que à investigação seja possível”.

A mesma fonte adiantou ainda que o primeiro passo é perceber se em causa está um ilícito, porque se se tratar de uma brincadeira, “não há nenhum crime, ainda por cima neste caso, em que em causa está o próprio corpo”.

Admitindo que numa primeira fase não é possível fazer muito mais do que distinguir o que é brincadeira do que são intenções reais,  o investigador explicou que, “das situações a que a PJ tem de dar mais atenção [na rede], normalmente nem são relacionadas com adultos, são muitas mensagens de suicídio, mais com jovens”.

E se por um lado o especialista diz que este episódio de venda de um rim “torna difícil percecionar qual o crime que está em causa”, também lembra que se houvesse intervenção de terceiros ou promessa real de venda de órgãos de outras pessoas não restariam dúvidas sobre os crimes em causa – dos quais destacou o tráfico de órgãos.

 

Tráfico de órgãos

Embora em Portugal não estejam documentados casos de venda de órgãos, o tráfico de órgãos é uma realidade preocupante a nível internacional e as transações online vieram tornar o quadro global mais complexo. A Organização Mundial de Saúde estima que, atualmente, 5% a 10% dos transplantes renais a nível mundial envolvem rins removidos ou adquiridos de forma ilegal.

Susana Sampaio, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação, disse ao i não ter conhecimento de nenhum caso de extração de rim para venda no país e estranha que tal ocorresse numa plataforma como o OLX, mas explica que as redes que operam neste universo tendem a aproveitar-se da vulnerabilidade do dador mas também dos doentes, que aguardam transplante, defendendo por isso uma monitorização dos anúncios e maior uma sensibilização da população.

Portugal ratificou a 8 de novembro a Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos e a especialista, que faz parte do grupo de trabalho que tem estado a preparar a transposição das disposições da convenção para o quadro jurídico português, acredita que consciencializar a sociedade civil e os profissionais de saúde será uma das mais-valias do novo enquadramento. “A questão não se tem colocado como em relação a outros países, que sabemos que estão referenciados por estas práticas”, diz Susana Sampaio. A médica explica que as únicas situações de que há conhecimento, muito residuais, são de doentes portugueses que recorreram a países onde existe turismo de transplantação e terão comprado um rim, acabando por serem identificados quando regressam ao país e começam seguidos nos hospitais portugueses. “A Convenção vem alertar os profissionais de saúde para que possam sinalizar estas situações.”

A criminalização de qualquer contrapartida financeira pela dádiva de órgãos é uma das exigências da Convenção, que exige também aos Estados Pares que criminalizem a extração ilícita de órgãos humanos de dadores vivos ou mortos, caso a extração seja levada a cabo sem o consentimento livre, informado e específico do dador. O grupo de trabalho que está a preparar propostas de alterações legislativas para adaptar a lei nacional a estas exigências deverá entregar a análise ao governo até ao final do ano, adiantou ao i Susana Sampaio. A Convenção deverá produzir efeitos legais no país a partir de 1 de março de 2019.

Portugal tem cerca de 2000 doentes à espera de transplante de rim. Para fazer face à escassez de órgãos para uma população mais envelhecida e com mais doenças, numa altura em que os avanços da medicina e a prevenção de acidentes têm tendência a diminuir os dadores disponíveis, a aposta a nível internacional tem sido na promoção da dádiva de rim em vida. Em Portugal é possível entre pessoas relacionadas, familiares, cônjuges ou amigos, mediante critérios clínicos e sempre de forma altruísta.