Duas abordagens podem ser feitas a propósito de qualquer uma das várias tragédias com que a sociedade portuguesa se tem confrontado ou está em risco de se confrontar.
Uma, examinando as ocorrências do ponto de vista legal, escrutinando se as leis aplicáveis foram (ou são) ou não cumpridas e por quem.
Outra, tentando compreender a razão do sucedido, analisando a sua (in)evitabilidade e refletindo sobre as formas de eliminar ou minimizar riscos em ocorrências futuras.
Se da primeira se pode dizer que, muitas vezes, existe o único intuito de encontrar um culpado ou um bode expiatório do sucedido, relativamente à segunda é palpável que há algum sentimento de descrença na sua eficácia, até porque normalmente lhe é questionado o sentido de oportunidade e lhe falta relevância mediática.
Por outro lado, analisamos, e bem, se a falta de cumprimento da legislação está ou não relacionada com os incidentes, mas raramente nos questionamos sobre a relevância da ausência de fiscalização desse incumprimento e, porque tal não deve de todo acontecer, se as próprias leis aplicáveis foram, ou serão, um fator relevante para a ocorrência da tragédia.
A Constituição Portuguesa afirma, no n.o 1 do artigo 27.o (Direito à liberdade e à segurança), que “Todos têm direito à liberdade e à segurança”, e no n.o 1 do artigo 60.o (Direitos dos consumidores), que “Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos”.
Estes preceitos constitucionais sustentam “a expetativa de que a administração pública garanta a segurança dos cidadãos”.
Uma das tragédias anunciadas em Portugal é, fruto da inadequada segurança de muitas edificações, o resultado da inevitável ocorrência de um sismo intenso. Não sendo a única, nem a mais percetível para a população, é aquela que particularizarei, pelas suas consequências potencialmente elevadíssimas em termos de fatalidades e impacto social e económico.
No que considero ser um atropelo dos direitos e deveres constitucionais, o decreto-lei n.o 53/2014, no seu artigo 9.o, especifica que “As intervenções em edifícios existentes não podem diminuir as condições de segurança e salubridade da edificação nem a segurança estrutural e sísmica do edifício”.
O legislador não se preocupou com as condições de segurança nem com a sua ausência, mas apenas com a sua potencial diminuição. Admite-se, legalmente, a falta de segurança, impedindo-se apenas a sua redução.
No que também considero ser um atropelo dos direitos e deveres dos cidadãos, a administração pública está, na maioria das situações, legalmente dispensada, senão impedida (n.os 9 e 10 do artigo 13.o do decreto-lei 136/2014), da vistoria, certificação, aprovação ou parecer relativamente à conformidade dos projetos de edificações ou da sua execução, bastando a “emissão de termo de responsabilidade por técnico legalmente habilitado para esse efeito”, ou seja, o autor do próprio projeto ou da sua execução.
Em termos legais, importa questionar quem será responsabilizado, na próxima tragédia:
– pela falta de exigência legal de segurança sísmica em edificações pretensamente reabilitadas;
– pela ausência de fiscalização e garantia de segurança dos projetos de novas edificações ou de reabilitação das existentes, bem como da sua execução.
Se a lei dá respostas ínvias às questões da garantia de segurança sísmica das edificações, resta-nos que os donos de obra e os técnicos competentes a respeitem na letra, mas não no espírito (Mollis lex sed lex), exigindo mais do que a sua não diminuição.
Resta-nos que os técnicos competentes coloquem o seu dever ético acima do mero cumprimento da lei.
Professor no Instituto Superior Técnico