Tenho saudades de Quinito. Não saudades apenas do Quinito do futebol, jogador, treinador, homem do verbo fácil e criativo, inimigo figadal da banalidade do discurso, poeta de um jogo que cada vez precisa mais de poetas, ele que nasceu em Setúbal, na freguesia do Bocage, e que também poderia ter como nome arcadiano Elmano Sadino. Tenho saudades do Quinito amigo, camarada, do Quinito das conversas ao almoço, das entrevistas que nunca seguiam os parâmetros, das histórias soberbas, das tiradas repentinas, dos programas de rádio – sim, sim, também fui a uns dos seus programas, “A Magia da Bola”, solidários, preocupados, que auxiliavam a Casa do Gaiato.
Quinito, o Poeta do Sado, foi um cometa que passou e se recusa a voltar, fechado lá na sua própria tristeza, que parece ter vencido definitivamente a sua contagiante alegria de outrora. Faz-me falta. Faz-nos falta.
Ele foi o primeiro treinador português a trabalhar aqui, no Koweit, trazido pelo Manuel Barbosa (outro injustamente caído no olvido) para o Yarmouk, em 1985, vindo do Braga. Yarmouk é uma cidadezinha que fica na ilha de Failaka, fundada pelos gregos, e o seu clube esteve sempre longe dos grandes títulos, embora tenha fama de haver produzido alguns dos melhores jogadores do Koweit nos anos 80.
Quinito esteve no Yarmouk durante duas épocas e pode dizer-se que apanhou a parte final da idade de ouro do futebol do país. Presença no Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos de 1980, em Moscovo; vencedor da Taça da Ásia no mesmo ano; terceiro qualificado na Taça da Ásia, em 1984; e, sobretudo, qualificado para a fase final do Campeonato do Mundo de 1982, em Espanha, a única até ao momento. Comecei pelo meu bom amigo Quinito e era aqui que eu queria chegar.
Ridículo!
Infelizmente para o Koweit, a sua presença única num Mundial ficou mais marcada por um episódio ridículo do que pela valia de jogadores como Al Houti, Faisal Al Dhakil ou Abdullah Buloushi, que cometeram a proeza de empatar 1-1 com a Checoslováquia no jogo de estreia, em Valhadolid, golo de Dhakil em resposta a um penálti de Panenka que Panenka não marcou à Panenka. O selecionador do Koweit era o brasileiro José Alberto Parreira, mais tarde campeão do Mundo com o Brasil, e se a derrota derradeira perante a Inglaterra (0-1, em Bilbau) foi quase uma vitória, os acontecimentos do dia 21 de junho, no Estádio José Zorrilla, marcaram para sempre a história dos campeonatos do Mundo.
O segundo encontro do grupo pôs frente a frente a França e o Koweit, igualmente em Valhadolid. Era, decididamente, uma França forte demais: Trésor, Bossis, Genghini, Platini, Giresse, Six, Lacombe… Ninguém se espantou que ao intervalo o resultado já estivesse em 2-0, favorável aos franceses, está claro!, com golos de Genghini e Platini. Toda a gente, ao vivo ou pela televisão, percebeu que as coisas seriam tranquilas. Sem espinhas. Mas as espinhas entraram no José Zorrilla como lanças em carne mole.
Aos 48 minutos, Six fez o 3-0. Aí, os rapazes de Parreira encheram-se de brios. Foram para a frente na busca incessante de pelo menos um golo. E conseguiram-no: Buloushi, 75 minutos.
Só que, logo a seguir, Giresse fez o 4-1.
Charivari!
Os jogadores do Koweit recusaram-se a retomar o jogo. Queixavam-se de uma irregularidade. Insistiam na anulação. O árbitro soviético, Stupar, perdeu o pulso. Por mais que insistisse, não havia forma de os koweitianos abandonarem a sua posição inerte. Falavam uns com os outros, com os adversários e com quem quer que fosse, mas mantinham uma teimosia de muar.
Nas bancadas, o momento surreal: uma figura de dishdasha começou a descer imponentemente a escadaria e entrou em campo com um descaramento divino – era o príncipe Fahad Al-Ahmed Al–Jaber Al-Sabah, presidente da federação e irmão do emir do Koweit, Jaber Al-Ahmed Al-Sabah. Príncipe que é príncipe está habituado a que lhe obedeçam. Dirigiu-se ao árbitro, impôs a sua condição e as suas razões. Para surpresa geral, o golo foi anulado. Quem pode, pode!
A França cumpriria o seu 4-1, por Bossis, à beira do fim.
Miroslav Stupar foi banido da arbitragem. O príncipe Fahad, multado em 8 mil libras esterlinas. Nem lhe deve ter feito comichão no bolso…